POR RAFAEL GARCIA
NOTÍCIAS SOBRE BIOLOGIA voltadas ao
público geral com frequência fazem referência à briga de acadêmicos contra o
criacionismo –o movimento defensor de que seres vivos foram criados por Deus,
não pelos processos descritos na teoria da evolução. Ofuscado por essa
discussão infrutífera de cientistas lançando argumentos racionais contra mentes
religiosas impenetráveis, porém, existe um debate sério sobre se a biologia
evolutiva está ou não carente de atualização.
Esse movimento defende que a chamada
“nova síntese” –a teoria da evolução de Darwin reformulada à luz da genética e,
depois, da biologia molecular– precisa ser recauchutada. Liderados por biólogos
como Gerd Muller, da Universidade de Viena, e Eva Jablonka, da Universidade de
Tel Aviv, esses pesquisadores defendem aquilo que batizaram de EES (Síntese
Evolucionária Estendida). É um corpo de conhecimento baseado em fenômenos que
correm paralelamente aos descritos pela seleção natural de Darwin. Mas seria
esta nova biologia algo com força suficiente para tornar a nova síntese uma
teoria ultrapassada?
Para defender uma mudança radical,
Jablonka recorre a fenômenos como a epigenética –transmissão de características
que não requer mudança do DNA– e à construção de nichos –capacidade de animais
de alterarem seu próprio ambiente e, portanto, modificar as pressões que a
seleção natural exerceria sobre eles mesmos. Também são alvo de estudo da EES o
“viés de desenvolvimento” –a impossibilidade de organismos de adquirirem certas
formas enquanto evoluem– e a plasticidade –capacidade de um indivíduo de
adquirir diferentes formas reagindo a seu ambiente.
Todos esses fenômenos, que são tratados
pela (velha) nova síntese apenas como processos marginais, seriam sinal de que
uma teoria de evolução com excesso de foco na biologia molecular se tornou
incapaz de dar conta da explicação de processos que ocorrem sem interação com o
DNA. Só a incorporação desses outros fenômenos, argumentam, pode salvar a
teoria da evolução de se tornar algo ultrapassado.
TRAMANDO A REVOLUÇÃO
Entrevistei Jablonka em 2007 e achei
interessante e bem fundamentada sua
defesa de que a epigenética reabilita ideias malditas do naturalista francês
Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829). Mas fiquei incomodado com sua crítica ao
conceito de “gene egoísta”, a expressão criada pelo bólogo Richard Dawkins para
descrever a centralidade da biologia molecular no processo evolutivo.
No ano seguinte, um congresso organizado
por Jablonka e outros correligionários em Altenberg (Áustria) mostrou com mais
clareza qual era a intenção do grupo. Os 16 cientistas presentes finalmente
cunharam ali a sigla EES, para colocá-la em oposição ao que chamavam de SET
(Teoria Evolucionária Padrão), rebatizando a nova síntese com um nome que a faz
parecer algo ultrapassado. Ninguém ali se atreveu a usar o palavrão iniciado
com “P”, mas a intenção era claramente a de declarar que a EES seria um novo paradigma
na biologia.
Muita gente se impressionou. Outros,
incluindo Dawkins, nunca deram muita bola. Desde então, deixei de acompanhar
essa escaramuça, e confesso que a maior parte do conhecimento de almanaque que
tenho sobre evolução acabei adquirindo como ouvinte no curso de Hopi Hoekstra e
Andrew Berry, professores de Harvard que não simpatizam com o grupo de
Jablonka.
CONFRONTO DIRETO
Foi só lendo a edição desta semana da
revista “Nature” que finalmente tomei pé de como está essa discussão agora, ao
me deparar com dois artigos, um a favor e um contra decretar que a teoria da
evolução precisa ser repensada. Em contraposição estavam justamente as duas
biólogas que já tive o privilégio de ouvir pessoalmente, Jablonka e Hoekstra,
além de seus coautores.
Vale a pena ler. Como já deixer
transparecer meu viés aqui, posso dizer que a argumentação de Hoekstra me
convenceu de que a sigla EES é mais um adendo teórico do que uma revolução. É
uma tentativa de alguns biólogos de se autoatribuírem a responsabilidade por
uma mudança de paradigma, quando, na verdade, o que ocorre é um avanço gradual,
no qual epigenética, construção de nicho, plasticidade etc. vão se integrando à
teoria da evolução tradicional.
Mas o grupo da EES não quer saber de se
render. “Essa não é uma tempestade num copo d’água acadêmico, é a luta pela
própria alma da disciplina [da evolução]”, escreve o grupo de Jablonka, num
texto com Kevin Laland como autor principal. Hoekstra retruca: “Nós também
queremos uma síntese evolucionária estendida, mas para nós essas palavras estão
em letra minúscula, porque nosso campo sempre avançou assim”.
DE VOLTA ÀS ORIGENS
Talvez seja tudo uma questão de nome.
Darwin, por exemplo, publicou um livro inteiro sobre como minhocas alteram seu
próprio ambiente por meio de sua ação no solo. “Hoje nós chamamos esse processo
de construção de nicho, mas o novo nome não altera o fato de que biólogos evolucionários
têm estudado feedback entre organismos e seu ambiente por mais de um século”,
diz Hoekstra.
O problema, talvez, seja o de achar que
a biologia precisa de uma grande ruptura, para seguir em frente apenas por meio
de grandes saltos. A quebra de paradigma, o modelo de avanço científico
descrito pelo filósofo Thomas Kuhn, não se aplica muito bem à biologia, já
defendia o saudoso Ernst Mayr, biólogo com importantes contribuições
filosóficas à disciplina. “Precisamos também lembrar que Kuhn era físico e que
sua tese reflete o pensamento ‘essencialista’ e ‘saltacionista’ tão disseminado
na física”, escreveu.
Mesmo a teoria de Darwin, a coisa que
mais próxima de uma revolução que já ocorreu dentro da biologia, levou quase um
século de debates e avanços graduais para se consolidar na forma da nova
síntese. Não se estabeleceu de forma tão brusca quanto a relatividade de
Einstein, por exemplo. E mesmo a física pós-Einstein não parece estar avançando
em saltos tão grandes. Não há nada de errado com a ciência feita por Jablonka,
Muller e seus colegas, que têm dado boas contribuições para entender processos
biológicos complexos. Mas vender o advento da epigenética e companhia como uma
revolução me parece algo um tanto caricaturesco.
FONTE: Teoria de Tudo
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