terça-feira, 29 de abril de 2014

Descoberta aproxima ciência de desvendar origem da vida


Química da vida no tubo de ensaio


POR SALVADOR NOGUEIRA



Ao simular as condições dos oceanos da Terra primitiva, um grupo de cientistas liderado por Markus Ralser, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, testemunhou o surgimento espontâneo de reações químicas complexas que até então eram consideradas província exclusiva do metabolismo de seres vivos. A descoberta recém-publicada coloca a ciência um pouco mais perto de decifrar um dos maiores enigmas com que já deparou: a origem da vida.

O achado em essência demonstra que uma química muito complexa pode emergir sem a ajuda de enzimas — proteínas construídas por seres vivos que ajudam a promover as reações mais essenciais, como aquelas em que açúcares são convertidos em moléculas contendo energia para uso pelo organismo.

Mas, antes que você se anime demais, não, ainda não sabemos de fato como surgiram as primeiras formas de vida. O que temos até o momento são várias peças separadas de um quebra-cabeças que a natureza teve pelo menos vários milhões de anos para montar sozinha. Essa agora é só mais uma peça — e uma potencialmente bem importante.

ÁGUA, SUA LINDA

Não é à toa que os astrobiólogos hoje consideram a busca por água o fator primordial para tentarmos encontrar outras formas de vida no Universo. Ela cumpre papéis essenciais em todas as formas de vida conhecidas, e até agora não encontramos nenhuma outra molécula que possa servir de substituta.

Contudo, ela não faz todo o serviço sozinha — e em alguns casos pode até atrapalhar. Felizmente, os oceanos da Terra primitiva tinham muito mais que só água: em sua composição, identificada por meio de sedimentos marinhos, também havia grandes quantidades de ferro, além de fosfatos e outros metais.

Após recriar com a máxima fidelidade possível uma amostra desse oceano primitivo, que existia em nosso planeta cerca de 3,8 bilhões de anos atrás, os pesquisadores pegaram algumas moléculas complexas que eles sabem estar no “meio do caminho”, por assim dizer, de reações necessárias ao metabolismo dos seres vivos, e as adicionaram à mistura.

Nos seres vivos, essas moléculas são processadas com a ajuda de enzimas para chegar até suas formas finais, mais úteis. Ali, naquela amostra, não havia enzima nenhuma. O que aconteceria? Ficaria tudo na mesma? A água do oceano primitivo destruiria as moléculas?

O suspense tomou conta do laboratório durante as cinco horas em que as amostras permaneceram aquecidas a cerca de 70 graus Celsius. Quente demais para qualquer enzima que conheçamos, mas uma temperatura comum nas proximidades de fontes hidrotermais — estruturas que mais lembram chaminés no fundo do oceano, alimentadas pelo calor que emana das entranhas do nosso planeta. (Muitos cientistas acreditam que esses ambientes possam ter sido o berço das primeiras formas de vida, o que explica a escolha feita no experimento em questão.)

E aí, finalmente, a recompensa: os cientistas descobriram que o ferro ajudava a “empurrar” as reações químicas adiante, em rotas extremamente parecidas com as seguidas pelos metabolismos dos seres vivos modernos. Mas sem as enzimas para tocar o negócio! Entre as 29 reações metabólicas observadas, uma se destacou: a que produziu ribose-5-fosfato. Trata-se de uma molécula precursora do RNA — “primo” do DNA que é capaz, como ele, de armazenar informação genética e, portanto, se submeter aos processos evolutivos darwinianos.

Isso explica como a vida surgiu? Não. Mas mostra que algumas reações que antes achávamos complexas demais para ser executadas a partir de uma química prebiótica (ou seja, anterior à vida) na verdade acontecem em um experimento de meras cinco horas!

A ORDEM DOS FATORES

O resultado faz Ralser e seus colegas cogitarem que talvez seja o caso de repensar em que sequência aconteceram os eventos químicos imprescindíveis à origem da vida.

A visão mais tradicional, baseada nos primeiros experimentos que abordaram a questão, em 1953, sugere que primeiro surgiram as proteínas, capazes de fazer metabolismo. Mais tarde elas seriam reunidas aos ácidos nucleicos (DNA e RNA), protegidas num sistema fechado por uma cápsula de lipídeos, para formar as primeiras células vivas. Em resumo, a ordem dos fatores seria: proteínas -> metabolismo -> DNA e RNA

Uma visão mais moderna sugere que tudo pode ter começado com o RNA. A hipótese é motivada por sua versatilidade. Ele não só é capaz de guardar informação genética, a exemplo do DNA, como também pode conduzir certas rotas metabólicas, como as proteínas. Ou seja, ele poderia ser, sozinho, a base da vida. Só mais tarde, com a evolução, ele seria destronado da função de portador principal da informação genética pelo famoso DNA e ganharia a companhia de proteínas mais eficazes que ele para tocar esse negócio de metabolismo. Segundo esse esquema, teríamos: RNA -> metabolismo -> proteínas e DNA.

Uma dificuldade particular desse modelo é a de como fabricar RNA a partir de química prebiótica que envolva água. (O Mensageiro Sideral já abordou o trabalho de Steven Benner, que sugere que o RNA só poderia ter nascido em Marte e depois migrado para a Terra, tamanha a dificuldade em produzi-lo a partir de química simples em meio aquoso.)

A pesquisa de Ralser, contudo, pode apontar outra solução para o dilema. “Essas observações revelam que as sequências de reação que constituem o metabolismo central de carbono poderiam ter sido forçadas pelo ambiente oceânico rico em ferro do começo do Arqueano [cerca de 3,8 bilhões de anos atrás]“, escreveram os pesquisadores em trabalho publicado no periódico “Molecular Systems Biology”. Teríamos, portanto, primeiro de tudo o metabolismo, e depois RNA, proteínas e o DNA.

Uma vantagem dessa proposta é que, tendo metabolismo de saída, ainda que numa versão menos eficaz, mais primitiva, você poderia encontrar reações como as que formam o RNA, mesmo em ambientes aquosos. Outra vantagem é que um oceano que faz metabolismo sozinho, logo de cara, encurta bastante o caminho para formas de vida, explicando o porquê de os primeiros seres vivos terem surgido tão depressa no registro fóssil, praticamente assim que as condições na Terra foram favoráveis.

Uma terceira, especialmente pertinente para a busca por vida extraterrestre, é que não há por que não supor que outros oceanos espalhados pelo Sistema Solar, como os de Europa (lua de Júpiter) ou Encélado (de Saturno), não possam ter produzido circunstâncias similares, condutivas de metabolismo e, por fim, seres vivos.

Bacana, né? Mas não é o caso de comemorar muito. Afinal, não custa lembrar novamente que os pesquisadores já começaram seu experimento com moléculas de certa complexidade, e ninguém sabe ainda como o oceano primitivo poderia ter chegado a esse ponto inicial sozinho. Por isso, ainda é cedo até para dizer que o metabolismo de fato realmente precedeu RNA ou proteínas. Nenhuma das três rotas de surgimento da vida descritas brevemente acima foi descartada, no atual ponto do jogo.

Por enquanto, o enigma da origem da biosfera terrestre — o enigma da nossa origem, portanto — permanece sem solução. Mas a ciência se aproxima cada vez mais de fechar essa conta.


domingo, 27 de abril de 2014

Arquivos revelam como Brasil ajudou a ditadura chilena (intercâmbio até os anos 1980)

Lisandra Paraguassu, enviada especial | Agência Estado


Nos primeiros dias de 1974, um grupo de 55 policiais e militares chilenos chegava discretamente ao Brasil. Por 15 dias, eles estiveram em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. A viagem, acertada informalmente entre o então embaixador brasileiro em Santiago, Antônio Cândido Câmara Canto, e o governo chileno, foi tratada como "estritamente confidencial".
Era o início de um intercâmbio que se estenderia até os anos 1980. Documentos obtidos pelo Estado nos arquivos da Chancelaria do Chile, em Santiago, mostram que, só naquele ano, agentes chilenos estiveram pelo menos quatro vezes no Brasil. Parte deles passou a integrar grupos de extermínio organizados pela polícia secreta do ditador Augusto Pinochet.
Em 31 de dezembro de 1973, pouco mais de três meses depois do golpe militar que derrubou o presidente Salvador Allende, o embaixador chileno no Brasil, Hernán Cubillos, recebeu um telex cifrado e marcado como "estritamente confidencial". O texto dizia que os 55 oficiais chegariam ao Brasil entre os dias 20 e 22 de janeiro em uma viagem acertada "oficiosamente" por Câmara Canto com a concordância de Brasília. Defensor convicto da ditadura chilena, Canto era chamado, em Santiago, de "o 5.° Membro da Junta Militar", tal sua proximidade com Pinochet. Foi a primeira viagem de treinamento dos chilenos, numa aproximação que aos poucos se ampliou, inclui países vizinhos e se transformou na Operação Condor.
Em agosto de 1974, o chefe da Diretoria de Inteligência Nacional, Manuel Contreras, envia ofício reservado ao Itamaraty pedindo passaporte de trabalho para 12 oficiais que visitariam São Paulo. Os agentes "cumprirão determinada comissão de serviço". Seis deles iriam compor as unidades de extermínio de Contreras, as chamadas brigadas Lautaro e Purén.
Treinamento
A cooperação entre as duas ditaduras, na verdade, tinha começado antes disso. Investigações da Comissão Nacional da Verdade mostram que militares brasileiros chegaram ao Chile a 9 de setembro de 1973 - dois dias antes do golpe contra Allende - para treinar chilenos em técnicas de tortura. "Há muitos testemunhos de pessoas que foram presas no Estádio Nacional e viram torturadores do Brasil. Eles vieram ensinar a tortura", afirmou ao Estado o ministro das Relações Exteriores do Chile, Heraldo Muñoz.
Ainda em 1974, um grupo de 17 formandos da Escola de Inteligência do Exército chileno visita São Paulo, Rio e Brasília. Em outra visita, comandada pelo coronel Hector Contador, desembarcou em São Paulo um grupo de militares para conhecer a Engesa, empresa dedicada à produção de armamentos. O governo brasileiro garantiu ao Chile, na oportunidade, créditos no total de US$ 40 milhões para compra de equipamentos bélicos brasileiros.
Conexões
A cooperação entre as duas ditaduras, no entanto, vai além dos militares. Nas salas do Itamaraty, diplomatas trocaram os punhos de renda pelo uniforme de informantes. Notas do embaixador chileno à chancelaria de seu país revelam intensa parceria entre as duas diplomacias.
No Itamaraty o embaixador , Cubillos obteve informações sobre os brasileiros exilados no Chile que atuaram no sequestro, no Rio, do embaixador alemão Ehrenfried Von Holleben, em junho de 1970. "A Divisão de Segurança e Informação (do Itamaraty) expressou que as autoridades locais têm o maior interesse em conhecer o paradeiro dessas pessoas" e se dispõe a colaborar "em qualquer forma" para desarticular "a máquina terrorista que opera em nosso continente", escreveu Cubillos.
Entre os documentos obtidos pelo Estado na Chancelaria chilena está uma lista completa de todos os grupos de esquerda que atuavam no Brasil, quem estava preso, morto ou foragido, quais crimes cada grupo tinha cometido. Nos anos seguintes, a colaboração evoluiria para ações conjuntas de sequestro e morte de rivais.
A Operação Condor formalizou, em segredo, a cooperação entre Chile, Argentina, Paraguai, Uruguai e Brasil. Acostumado ao trabalho conjunto, o Brasil entrou em 1975 como observador. Depois, passou a se beneficiar da ajuda dos vizinhos. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
FONTE: A Tarde

Antonio Gramsci: 77 anos de sua morte


Há exatamente 77 anos atrás, em 27 de abril de 1937, morreu Antonio Gramsci, pensador marxista e valoroso combatente comunista italiano.

Cronologia de sua vida (da edição brasileira dos Cadernos):
http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=123


Para download: "Antonio Gramsci" na coleção Educadores MEC/Editora Massangana. CLIQUE NO LINK ABAIXO:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me4660.pdf


"Alguns me consideram um demônio, outros quase um santo. Não
quero ser mártir nem herói. Acredito ser simplesmente um homem médio,
que tem suas convicções profundas e não as troca por nada no mundo."

Carta de Gramsci, do cárcere, a seu irmão Carlo, em 12 de
setembro de 1927.



Os Indiferentes
Por Antonio Gramsci
11 de Fevereiro de 1917

Odeio os indiferentes. Como Friederich Hebbel acredito que "viver significa tomar partido". Não podem existir os apenas homens, estranhos à cidade. Quem verdadeiramente vive não pode deixar de ser cidadão, e partidário. Indiferença é abulia, parasitismo, covardia, não é vida. Por isso odeio os indiferentes.

A indiferença é o peso morto da história. É a bala de chumbo para o inovador, é a matéria inerte em que se afogam freqüentemente os entusiasmos mais esplendorosos, é o fosso que circunda a velha cidade e a defende melhor do que as mais sólidas muralhas, melhor do que o peito dos seus guerreiros, porque engole nos seus sorvedouros de lama os assaltantes, os dizima e desencoraja e às vezes, os leva a desistir de gesta heroica.

A indiferença atua poderosamente na história. Atua passivamente, mas atua. É a fatalidade; e aquilo com que não se pode contar; é aquilo que confunde os programas, que destrói os planos mesmo os mais bem construídos; é a matéria bruta que se revolta contra a inteligência e a sufoca. O que acontece, o mal que se abate sobre todos, o possível bem que um ato heróico (de valor universal) pode gerar, não se fica a dever tanto à iniciativa dos poucos que atuam quanto à indiferença, ao absentismo dos outros que são muitos. O que acontece, não acontece tanto porque alguns querem que aconteça quanto porque a massa dos homens abdica da sua vontade, deixa fazer, deixa enrolar os nós que, depois, só a espada pode desfazer, deixa promulgar leis que depois só a revolta fará anular, deixa subir ao poder homens que, depois, só uma sublevação poderá derrubar. A fatalidade, que parece dominar a história, não é mais do que a aparência ilusória desta indiferença, deste absentismo. Há fatos que amadurecem na sombra, porque poucas mãos, sem qualquer controle a vigiá-las, tecem a teia da vida coletiva, e a massa não sabe, porque não se preocupa com isso. Os destinos de uma época são manipulados de acordo com visões limitadas e com fins imediatos, de acordo com ambições e paixões pessoais de pequenos grupos ativos, e a massa dos homens não se preocupa com isso. Mas os fatos que amadureceram vêm à superfície; o tecido feito na sombra chega ao seu fim, e então parece ser a fatalidade a arrastar tudo e todos, parece que a história não é mais do que um gigantesco fenômeno natural, uma erupção, um terremoto, de que são todos vítimas, o que quis e o que não quis, quem sabia e quem não sabia, quem se mostrou ativo e quem foi indiferente. Estes então zangam-se, queriam eximir-se às conseqüências, quereriam que se visse que não deram o seu aval, que não são responsáveis. Alguns choramingam piedosamente, outros blasfemam obscenamente, mas nenhum ou poucos põem esta questão: se eu tivesse também cumprido o meu dever, se tivesse procurado fazer valer a minha vontade, o meu parecer, teria sucedido o que sucedeu? Mas nenhum ou poucos atribuem à sua indiferença, ao seu cepticismo, ao fato de não ter dado o seu braço e a sua atividade àqueles grupos de cidadãos que, precisamente para evitarem esse mal combatiam (com o propósito) de procurar o tal bem (que) pretendiam.

A maior parte deles, porém, perante fatos consumados prefere falar de insucessos ideais, de programas definitivamente desmoronados e de outras brincadeiras semelhantes. Recomeçam assim a falta de qualquer responsabilidade. E não por não verem claramente as coisas, e, por vezes, não serem capazes de perspectivar excelentes soluções para os problemas mais urgentes, ou para aqueles que, embora requerendo uma ampla preparação e tempo, são todavia igualmente urgentes. Mas essas soluções são belissimamente infecundas; mas esse contributo para a vida coletiva não é animado por qualquer luz moral; é produto da curiosidade intelectual, não do pungente sentido de uma responsabilidade histórica que quer que todos sejam ativos na vida, que não admite agnosticismos e indiferenças de nenhum gênero.

Odeio os indiferentes também, porque me provocam tédio as suas lamúrias de eternos inocentes. Peço contas a todos eles pela maneira como cumpriram a tarefa que a vida lhes impôs e impõe quotidianamente, do que fizeram e sobretudo do que não fizeram. E sinto que posso ser inexorável, que não devo desperdiçar a minha compaixão, que não posso repartir com eles as minhas lágrimas. Sou militante, estou vivo, sinto nas consciências viris dos que estão comigo pulsar a atividade da cidade futura que estamos a construir. Nessa cidade, a cadeia social não pesará sobre um número reduzido, qualquer coisa que aconteça nela não será devido ao acaso, à fatalidade, mas sim à inteligência dos cidadãos. Ninguém estará à janela a olhar enquanto um pequeno grupo se sacrifica, se imola no sacrifício. E não haverá quem esteja à janela emboscado, e que pretenda usufruir do pouco bem que a atividade de um pequeno grupo tenta realizar e afogue a sua desilusão vituperando o sacrificado, porque não conseguiu o seu intento.

Vivo, sou militante. Por isso odeio quem não toma partido, odeio os indiferentes. 


Primeira Edição: La Città Futura, 11-2-1917
Origem da presente Transcrição: Texto retirado do livro Convite à Leitura de Gramsci"
Tradução: Pedro Celso Uchôa Cavalcanti.
Transcrição de: Alexandre Linares para o Marxists Internet Archive
HTML de: Fernando A. S. Araújo
Direitos de Reprodução: Marxists Internet Archive (marxists.org), 2005. A cópia ou distribuição deste documento é livre e indefinidamente garantida nos termos da GNU Free Documentation License



À guisa de introdução: para entender Gramsci e pensar a educação popular


Por Marcos Cesar de Oliveira Pinheiro

Para compreender um autor, é necessário conhecer profundamente o contexto histórico-político-cultural com o qual está envolvido. Um pensador da envergadura de Antonio Gramsci (1891-1937) requer entender o processo de formação da sua personalidade política e intelectual. A vivência dos momentos mais dramáticos das lutas que agitaram a Europa e, particularmente, das mobilizações sociais, políticas e econômicas que levaram, ao menos na Rússia, à vitória da Revolução em 1917. O progressivo deslocamento de Gramsci da esfera de influência do neo-idealismo, destacando o distanciamento crítico e a superação em relação ao pensamento de Benedetto Croce e Giovanni Gentile. Seu referencial marxista assumido[1], que o leva a formular propostas interpretativas voltadas para a explicação de modos de dominação social em meio à dinâmica do conflito, da luta de classes. A espinhosa interlocução crítica de Gramsci no interior do próprio marxismo e os embates travados com as correntes mecanicistas, dogmáticas e messiânicas.[2] A problemática gramsciana de “explicar a dominação de classes, recusando determinismos de cunho mecanicistas e procurando explicitar mecanismos culturais (sem reivindicar-lhes exclusividade ou determinismo de pólo inverso) que alimentam a dominação, bem como espaços de resistência a esta dominação que se constroem em meio às lutas de classes”.[3]

Tanto os leitores já familiarizados com Antonio Gramsci quanto os novos, a meu ver, dispõem da necessidade de contato com os chamados “especialistas” ou intérpretes dos escritos gramscianos. Justamente por apresentar-se – nas palavras do próprio autor – como um conjunto de notas “escritas ao correr da pena, como rápidos apontamentos para ajudar a memória” (GRAMSCI, 2004a: p. 85), a obra da maturidade de Antonio Gramsci – os Cadernos do cárcere – tem proporcionado as mais variadas interpretações teóricas e políticas da mesma – e até contrastantes leituras.[4] Decerto, as condições peculiares nas quais os Cadernos foram escritos parecem corroborar para que muitos leitores acentuem além da conta o caráter fragmentário da obra, acarretando um instrumental gramsciano distorcido e, de todo, retirado do contexto em que faz sentido. Acaba-se, em muitos casos, contando menos o que Gramsci disse do que aquilo que os seus leitores julgam encontrar em sua obra – o anacronismo é freqüente. Daí a necessidade de uma correta contextualização e um estudo filológico dos textos, ou seja, uma leitura “genética” dos Cadernos do cárcere, considerando a riqueza de seus contrastes, de suas ambigüidades e até de seus limites.[5] Isso permite aos leitores de Gramsci, veteranos ou novatos, encontrar o trajeto unitário e coerente do seu pensamento, possibilitando ler os Cadernos como resultado de uma concepção de mundo orgânica e unitária.

Na perspectiva ampliada do conceito de Estado em Gramsci, a relação entre sociedade política e sociedade civil é dialética. Os termos não se apresentam como mutuamente excludentes, mas um propõe o outro. A sociedade civil é uma arena privilegiada da luta de classes, em que se dá uma intensa luta pela hegemonia e, precisamente por isso, não é o “outro” em relação à sociedade política (o “Estado-coerção”), mas junto dela um de seus inelimináveis momentos constitutivos. Para Gramsci, os aparelhos hegemônicos da sociedade civil, aparentemente “privados” e voltados para a formação do consenso, estão articulados dialeticamente ao Estado, constituindo um poder hegemônico no qual nenhum dos dois aspectos (força e consenso, direção e domínio) pode ser cancelado. O conceito de hegemonia aparece não apenas como sinônimo de consenso, mas como a “combinação da força e do consenso, que se equilibram de modo variado, sem que a força suplante em muito o consenso, mas, ao contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da maioria, expresso pelos chamados órgãos da opinião pública” (GRAMSCI, 2002: p. 95). Portanto, não existe uma separação orgânica entre sociedade civil e sociedade política. Tal separação é apenas metodológica.

O Estado é instrumento de uma classe, mas também lugar de luta pela hegemonia e processo de unificação das classes dirigentes. Tal perspectiva admite, no entanto, momentos de “contra-hegemonia”. Uma determinada classe social pode tornar-se hegemônica conquistando o consenso e impondo-se como dirigente, antes mesmo de chegar ao poder. Contudo, o desenvolvimento pleno da função hegemônica (combinação da força e do consenso) só ocorre quando essa classe “se tornar Estado”.[6] Para Gramsci, o processo pelo qual uma classe “se faz Estado” é um momento iniludível na luta pela hegemonia.[7]

A sociedade civil é um momento integrante do Estado entendido em sua acepção ampla e intimamente relacionada com a questão da hegemonia. Portanto, a sociedade civil não é politicamente neutra, mas, ao contrário, é um campo de disputa entre várias propostas de sociedade, entre diferentes concepções de mundo, expressando a mutável correlação de forças entre as classes.[8] Nesse terreno, no qual tanto os dominados quanto os dominadores levam a cabo suas lutas ideológicas, é impossível pensar a educação desvinculada das relações de poder, de hegemonia.

A construção da hegemonia é um ato pedagógico. “Toda relação de ‘hegemonia’ é necessariamente uma relação pedagógica”, que “não pode ser limitada às relações especificamente ‘escolares’” (GRAMSCI, 2004a: p. 399). As relações educacionais constituem o próprio núcleo da hegemonia, enquanto relações sociais produtoras de sentido e de difusão de uma concepção de mundo convertida em norma de vida.[9]

Praticada em diferentes áreas da sociedade civil, seja em nível sindical e partidário, seja nas mais diversas associações e movimentos sociais, a educação popular orienta sua ação educativa para uma ação política, no esforço de mobilização, organização e capacitação dos setores populares.[10] No esforço de mobilização das classes subalternas, movidas por suas necessidades e interesses, é que está colocada a questão política, uma vez que, numa sociedade dividida em classes antagônicas, os interesses de uma se contrapõem aos interesses da outra.[11] Na organização popular é que está colocado o exercício do poder que necessariamente se vai conquistando.[12] Na capacitação científica e técnica é que está colocada a questão da apropriação e produção de um modo de pensar diferente do historicamente predominante

Nesse sentido, deve-se considerar:

A compreensão crítica dos limites da prática [educativa] tem que ver com o problema do poder, que é de classe e tem que ver, por isso mesmo, com a questão da luta e do conflito de classes. Compreender o nível em que se acha a luta de classes em uma dada sociedade é indispensável è demarcação dos espaços, dos conteúdos da educação, do historicamente possível, portanto, dos limites da prática político-educativa. (...) A leitura atenta e crítica da maior ou menor intensidade e profundidade com que o conflito de classes vai sendo vivido nos indica as formas de resistência possíveis das classes populares, em certo momento. (...) A luta de classes não se verifica apenas quando as classes trabalhadoras, mobilizando-se, organizando-se, lutam claramente, determinadamente, com suas lideranças, em defesa de seus interesses, mas, sobretudo, com vistas à superação do sistema capitalista. A luta de classes existe também, latente, às vezes escondida, oculta, expressando-se em diferentes formas de resistência ao poder das classes dominantes” (FREIRE, 2007: pp. 49-50; grifo do autor)[13]

Em relação à educação, os escritos gramscianos desenvolveram-se em torno de três temas:

1)      o papel da educação como parte do processo da formação da hegemonia cultural nas sociedades capitalistas burguesas;
2)      as possibilidades de educação formal e não-formal como lugares de formação de consciência revolucionária, contra-hegemônica anterior a qualquer transição revolucionária;
3)      os princípios que devem fundamentar a pedagogia socialista de uma sociedade pós-revolucionária.

Gramsci possui chaves interessantes para se pensar a educação popular tanto no plano metodológico quanto dos conceitos fundamentais por ele apresentados e/ou desenvolvidos (como os de hegemonia, Estado integral, revolução passiva, classes e luta de classes / correlação de forças, cultura / nacional popular / senso comum, partido, intelectuais orgânicos).  No que diz respeito ao instrumental teórico gramsciano, cabem duas notas de teor metodológico. Gramsci recusa a fossilização dos conceitos ou sua imposição à realidade histórica. Ele adverte que suas observações teóricas não devem “ser concebidas como esquemas rígidos, mas apenas como critérios práticos de interpretação histórica e política” (GRAMSCI, 2004a: p. 67). Não se deve “forçar os textos” para dobrá-los a teses preconcebidas. Sabendo-se que o conhecimento histórico não é peremptório, deve-se admitir a ‘possibilidade do erro’, reconhecer a honestidade intelectual e o ponto de vista dos outros, a provisoriedade dos resultados obtidos e a falibilidade das próprias certezas, sem com isso descaracterizar as próprias convicções de fundo (idem: pp. 91, 123-124, 134 e 174). Essas são indicações metodológicas traçadas por Gramsci nos Cadernos do cárcere.

Outra questão importante diz respeito ao fato de que os pares conceituais empregados por Gramsci – como sociedade civil e sociedade política, consenso e coerção, direção e domínio, entre outros – não se apresentam jamais como mutuamente excludentes. Cada termo pressupõe o outro, de tal modo que o emprego de um depende do emprego do outro. “Desse modo, o problema reside na determinação empírica da proporção, peso e valor de cada elemento da díade no contexto de uma situação histórica concreta”.[14]

No meu entender, o conjunto de categorias desenvolvidas por Antonio Gramsci constitui um campo aberto de criação histórica, apesar dos limites inerentes a qualquer conceito. Mas o que explica essa “adoção” de Gramsci é a análise da validade operatória de muitas de suas categorias para formular interpretações mais aprofundadas da realidade social concreta.


Bibliografia básica:

GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. V. 1. Introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedetto Croce. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004a.

____ .Cadernos do Cárcere. V. 2 . Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004b.

____ . Cadernos do Cárcere. V. 3. Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

____ . Cadernos do Cárcere. V. 4. Temas de cultura. Ação Católica. Americanismo e Fordismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.




[1] Indiscutivelmente, nas reflexões dos Cadernos do cárcere está presente a proposição básica de que as classes sociais, o conflito de classes e a consciência de classe existem e desempenham um papel na história.
[2] Para compreender o processo de formação política e intelectual de Gramsci ver: LOSURDO, Domenico. Antonio Gramsci: do liberalismo ao “comunismo crítico”. Rio de Janeiro: Revan, 2006; MAESTRI, Mário e CANDREVA, Luigi. Antonio Gramsci: vida e obra de um comunista revolucionário. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2007.
[3] MATTOS, Marcelo Badaró. “Os historiadores e os operários: um balanço”. In: ____ . (coord.). Greves e repressão policial ao sindicalismo carioca: 1945-1964. Rio de Janeiro: APERJ / FAPERJ, 2003, p. 33.
[4] Por exemplo, há muita polêmica em torno das interpretações dos usos de “sociedade civil”, “sociedade política” e Estado em Gramsci.
[5] Muitos estudos atendem a esse propósito, entre eles: BARATTA, Giorgio. As rosas e os Cadernos: o pensamento dialógico de Antonio Gramsci. Rio de Janeiro: DP&A, 2004; BIANCHI, Álvaro. O laboratório de Gramsci: filosofia, história e política. São Paulo: Alameda, 2008; COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003; LIGUORI, Guido. Roteiros para Gramsci. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2007; SEMERARO, Giovanni. Gramsci e a sociedade civil: cultura e educação para a democracia. 2 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.
[6] LIGUORI, Guido. Roteiros para Gramsci. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2007, pp. 13, 21, 24, 29 e 47.
[7] Idem, p. 36.
[8] Sobre a problemática das relações de força ver GRAMSCI, 2002, pp. 36-46.
[9] ACANDA, Jorge Luis. Sociedade civil e hegemonia. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2006, pp. 208-211.
[10] FREIRE, Paulo e NOGUEIRA, Adriano. Que fazer: teoria e prática em educação popular. 9 ed. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 19.
[11] RODRIGUES, Antônio Carlos. “Educação popular: histórico e concepções teóricas”. In: MELLO, Marco (org.). Paulo Freire e a Educação Popular. Porto Alegre: IPPOA, ATEMPA, 2008, p. 45.
[12] FREIRE e NOGUEIRA, op. cit, p. 19.
[13] FREIRE, Paulo. Política e Educação. 8 ed. Indaiatuba: Villa das Letras, 2007, pp. 49-50.
[14] FONTANA, Benedetto. “Hegemonia e a nova ordem mundial”. In: COUTINHO, C. N. e TEIXEIRA, A. P. Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, pp. 119-120.



Os escândalos que assombram a canonização de João Paulo II

João Paulo II, o papa que promoveu e encobriu pedófilos e violadores da Igreja, recebeu, ao mesmo tempo em que João XXIII, a canonização.

Por Eduardo Febbro


Augusto Pinochet e João Paulo II


Vítimas, que vítimas? – perguntou o cardeal Velasio de Paolis. E acrescentou: “Não são apenas estas vítimas”. Depois houve um silêncio de corpo e alma e o olhar um tanto perdido do superior geral dos Legionários de Cristo, nomeado em 2010 para esse cargo pelo então papa Joseph Ratzinger. À pergunta de Paolis se seguiu uma resposta: as vítimas não eram só os milhares de menores que sofreram com os apetites sexuais das batinas hipócritas, mas também o próprio Vaticano. As vítimas não eram unicamente os menores ou adultos abusados e violentados pelo padre Marcial Maciel, o fundador dessa indústria dos atentados sexuais que foi, durante seu mandato, o grupo dos Legionários de Cristo. A vítima era a Santa Sé, que foi “enganada”.

João Paulo II, o papa que, entre outros horrores, promoveu e encobriu pedófilos e violadores da Igreja, recebeu, ao mesmo tempo em que João XXIII, a canonização. Para além do espetáculo obsceno montado para esta ocasião, dos milhares de fieis na Praça de São Pedro, dos três satélites suplementares para transmitir o ato, para além da fé de muita gente, a canonização do papa polonês é uma aberração e um ultraje para qualquer cristão do planeta. Declarar santo a Karol Wojtyla é se esquecer do escandaloso catálogo de pecados terrestres que pesam sobre este papa: amparo dos pedófilos, pactos e acordos com ditaduras assassinas, corrupção, suicídios jamais esclarecidos, associações com a máfia, montagem de um sistema bancário paralelo para financiar as obsessões políticas de João Paulo II – a luta contra o comunismo -, perseguição implacável das correntes progressistas da Igreja, em especial a da América Latina, ou seja, a frondosa e renovadora Teologia da Libertação.

O “vítimas, que vítimas?” pronunciado em Roma pelo cardeal Velasio de Paolis encobre toda a impunidade e a continuidade ainda arraigada no seio da Igreja. Jurista e especialista em Direito Canônico, De Paolis fazia parte da Congregação para a Doutrina da Fé na época em que – anos 80 – se acumulavam as denúncias contra Marcial Maciel. No entanto, foi ele quem firmou a segunda absolvição do sacerdote mexicano. O ex-padre mexicano Alberto Athié contou à Carta Maior como Maciel sabia distribuir dinheiro e favores para comprar o silêncio das hierarquias. Athié renunciou em 2000 ao sacerdócio e se dedicou à investigação e denúncia dos abusos sexuais cometidos por clérigos e organizações.

O destino de Maciel foi selado por Bento XVI a partir de 2005. Em 2004, antes da morte de Karol Wojtyla, Maciel foi honrado no Vaticano. Neste mesmo ano, Ratzinger reabriu as investigações contra os Legionários. O dossiê Maciel havia sido bloqueado em 1999 por João Paulo II e mantido invisível por outra das figuras mais soturnas da cúria romana, Angelo Sodano, o ex-secretário de Estado de Giovanni Paolo. Sodano é uma pérola digna de figurar em um curso de manobras sujas. Decano do Colégio de Cardeais, ele tinha negócios com os Legionários de Cristo. Um sobrinho dele foi um dos assessores nomeados por Maciel para construir a universidade que os legionários de Cristo têm em Roma, a Universidade Pontífica Regina Apostolorum.

Sodano, que foi o número dois de Juan Paulo II durante quase 15 anos, tinha um inimigo interno, Joseph Ratzinger, um clube de simpatias exteriores cujos dois membros mais eminentes eram o ditador Augusto Pinochet e o violador Marcial Maciel. Sodano e Ratzinger travaram uma batalha sem tréguas: o primeiro para proteger os pedófilos, o segundo para condená-los. Em 2004, Ratzinger obrigou Maciel a se demitir e a se retirar da vida pública. Dois anos depois, já como Bento XVI, o papa o suspendeu “a divinis”. As investigações reabertas por Ratzinger demonstraram que Maciel era um pederasta, tinha duas mulheres, três filhos, várias identidades diferentes e manejava fundos milionários.
As denúncias prévias nunca haviam passado o paredão levantado por Sodano e o hoje Santo João Paulo. A carreira de Sodano é uma síntese do Papado de Karol Wojtyla, onde se mesclam os interesses políticos, as visões ideológicas ultraconservadoras, a corrupção e as manipulações. Angelo Sodano foi Núncio no Chile durante a ditadura de Pinochet. Manteve uma relação amistosa com o ditador e isso permitiu que organizasse a visita que João Paulo II fez ao Chile em 1987. Seu irmão Alessandro foi condenado por corrupção após a operação Mãos Limpas. Seu sobrinho Andrea teve a mesma sorte nos Estados Unidos. O FBI descobriu que Andrea e um sócio se dedicavam a comprar – mediante informação privilegiada – por um punhado de dólares as propriedades imobiliárias das dioceses dos Estados Unidos que estavam em bancarrota devido aos escândalos de pedofilia.

Mas o mundo sucumbiu ao grito de “santo súbito” que reclamava a canonização de um homem que presidiu os destinos da Igreja em seu momento mais infame e corrupto. O papa “viajante”, o papa “amável”, o papa “dos jovens”, era um impostor ortodoxo que deixou desprotegidas as vítimas dos abusos sexuais e os próprios pastores da Igreja quando estes estiveram com suas vidas ameaçadas.
 
Sua visão e suas necessidades estratégicas sempre se opuseram às humanas. Na trama desta história também há muito sangue, e não só de banqueiros mafiosos como Roberto Calvi ou Michele Sindona, com quem João Paulo II se associou para alimentar com fundos secretos os cofres do IOR (Banco do Vaticano), fundos que serviram para financiar a luta contra o comunismo no leste europeu e contra  a Teologia da Libertação na América Latina.

João Paulo II deixou desprotegidos os padres que encarnavam, na América Latina, a opção pelos pobres frente às ditaduras criminosas e seus aliados das burguesias nacionais. Em 2011, cinquenta destacados teólogos da Alemanha assinaram uma carta contra a beatificação de João Paulo II por não ter apoiado o arcebispo salvadorenho Óscar Arnulfo Romero, assassinado em 24 de março de 1980 por um comando paramilitar da extrema-direita salvadorenha, enquanto celebrava uma missa. Romero sim que é e será um santo. O arcebispo enfrentou os militares para pedir-lhes que não assassinassem seu povo, percorreu bairros, zonas castigadas pela repressão e pela violência, defendeu os direitos humanos e os pobres. Em resumo, não esperou que Bergoglio chegasse a Roma para falar de “uma Igreja pobre para os pobres”. Não. Ele a encarnou em sua figura e pagou com sua vida, como tantos outros padres aos quais o Vaticano taxava de marxistas ou comunistas só porque se envolviam em causas sociais.

João Paulo II é um santo impostor que traiu a América Latina e aqueles que, a partir de uma igreja modesta, ousaram dizer não aos assassinos de seus povos. Se, no leste europeu, João Paulo II contribuiu para a queda do bloco comunista, na América Latina favoreceu a queda da democracia e a permanência nefasta de ditaduras e sua ideologia apocalíptica. Um detalhe atroz se soma à já incontável dívida que o Vaticano tem com a justiça e a verdade: o expediente de beatificação de Óscar Romero segue bloqueado nos meandros políticos da Santa Sé. João Paulo II beatificou Josemaría Escrivá, o polêmico fundador da Opus Dei e um de seus protegidos. Mas deixou Romero de fora, inclusive quando estava com sua vida ameaçada. “Cada vez mais sou um pastor de um país de cadáveres”, costumava dizer Romero.

João Paulo II foi eleito em 1978. No ano seguinte, Monsenhor Romero entregou a ele um informe sobre a espantosa violação dos Direitos Humanos em El Salvador. O papa ignorou o informe e recomendou a Romero que trabalhasse “mais estreitamente com o governo”. Como lembrou à Carta Maior Giacomo Galeazzi, vaticanista de La Stampa e autor de uma magistral investigação, “Wojtyla Secreto”, em “seus 25 anos de pontificado nenhum bispo latinoamericanao ligado à ação social ou à Teologia da Libertação foi nomeado cardeal por João Paulo II”. A resposta está em uma frase de outro dos mais dignos representantes da “Igreja dos Pobres”, o falecido arcebispo brasileiro Hélder Câmara. “Quando alimentei os pobres me chamaram de santo; mas quando perguntei por que há gente pobre me chamaram de comunista”.

O show universal da canonização já foi lançado. A imprensa branca da Europa tem a memória muito curta e sua cultura do outro é estreita como um corredor de hospital. Todos celebram o grande papa. Ela promoveu à categoria de santo um homem que tem as mãos sujas, que cometeu a infâmia de encobrir violadores de crianças, de beijar ditadores e legitimar com isso o rastro de mortos que deixavam pelo caminho, de negociar benefícios para a máfia, que sacrificou em nome dos interesses de uma parte da Europa a misericórdia e a justiça de outros, entre eles os da América Latina. Estão canonizando um trapaceiro. O cúmulo da esperteza, do erro imemorial.
 
Em que altar se ajoelharão as vítimas dos abusadores sexuais e das ditaduras? Podemos levantar todos juntos um lugar aprazível e justo na memória com as imagens do padre Múgica ou do Monsenhor Romero para nos reencontrarmos com a beatitude o sentido de quem, por um ideal de justiça e igualdade, enfrentou a morte sem pensar nunca em si mesmo, ou em baixas vantagens humanas.


Tradução: Marco Aurélio Weissheimer

FONTE: Carta Maior

sábado, 26 de abril de 2014

Israel não é dos judeus, afirma historiador

Em livro, Shlomo Sand defende tese controversa tanto à direita quanto à esquerda no espectro político israelense
Segundo autor, ideia de propriedade da terra é moderna e europeia e não tem origem na tradição religiosa

Assista, no link abaixo, à exposição sobre o conteúdo do livro "A Invenção da Terra de Israel" realizado por seu autor, o historiador Shlomo Sand:


Diogo Bercito
De Jerusalém


As notícias da construção de assentamentos israelenses na Cisjordânia são recebidas com pessimismo por palestinos. Na comunidade internacional, diz-se que a política de expansão entrava a paz.

Mas o historiador Shlomo Sand se preocupa, por ora, com outras edificações: não as casas erguidas em assentamentos, e sim as construções feitas em cima da história sionista. "É imaginação política pensar que esse território pertence aos judeus", afirma  em entrevista à Folha.

No livro "A Invenção da Terra de Israel", Sand estuda a ideia de que há uma relação entre o Estado de Israel e o texto sagrado – e, então, discute se o argumento religioso pode ser de fato a pedra angular de uma nação.

Em ambos os casos, ele conclui que não. "A tradição judaica enxergava essa terra como sagrada e nunca pensou que ela devesse estar em posse dos judeus", afirma.

"Mas a maior parte dos israelenses foi educada como eu, estudando a Bíblia não como livro religioso, mas como uma obra nacional."

A ideia é controversa tanto à direita quanto à esquerda no espectro político israelense, assim como foi polêmica a teoria expressa em seu livro anterior, "A Invenção do Povo Judeu" (download aqui), em que Sand criticou a noção de que há "uma existência judaica pura".

O "mainstream" dos historiadores em Israel discorda, mas Sand afirma, por sua vez, que "a historiografia local está cem anos atrasada".

"Uma das fraquezas da esquerda sionista, no país, é a crença ingênua de que Israel pertence aos judeus."

A questão pode parecer acadêmica, mas tem peso real na política. Israel exige que palestinos reconheçam o "caráter judaico" do Estado para dar continuidade às negociações de paz entre ambos. A liderança palestina se recusa a fazer esse gesto.

"Definir o Estado como 'judaico' não é democrático", diz Sand. "É como falar que o Brasil é um país branco."

SIONISMO

Segundo a tese de "A Invenção da Terra de Israel", "a ideia de propriedade da terra é europeia e moderna" e não tem a sua origem na tradição judaica. "Os sionistas criaram a noção de que Israel pertence aos judeus."

Israel foi criado em 1948, após décadas de imigração judaica para o que era, à epoca, o mandato britânico da Palestina. O movimento sionista pedia, desde o fim do século 19, o estabelecimento de um Estado judaico.

"A maior parte das pessoas se opunha a essa noção", afirma Sand. Até que o nazismo perseguiu judeus na Europa, vitimando milhões deles no Holocausto, após o que a imigração a Israel passou a ser assunto urgente.

sE A "Terra de Israel" era vista como uma noção espiritual, sem correspondente no mundo, ela em breve tornou-se o que Sand considera ser "imaginação política".

A história, afinal, "é sempre composta por mitos". "Mas não acho que seja racional falar em um Estado 'judaico' enquanto os palestinos estão aqui", diz Sand.

"A maior parte das pessoas na Cisjordânia é palestina. Dessa maneira, é terra palestina. Mantemos pessoas sem direitos civis por décadas. O Estado de Israel é democraticamente amoral."

FONTE: Folha de São Paulo, 26/4/2014. Caderno Ilustrada.  
Segundo autor ideia