sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Do Petismo ao Lulismo

 POR VALERIO ARCARY 


A ignorância força-nos a fazer duas vezes o mesmo caminho. 
Sabedoria popular portuguesa


Estudar a história do PT é tema imprescindível para a esquerda brasileira. Porque o perigo de repetir, uma, duas e mais vezes, os mesmos erros não é pequeno. Não nos deve preocupar que haja polêmicas na interpretação. O que deve nos assombrar é que não haja uma discussão, até apaixonada, sobre as mutações do petismo em lulismo.

Existem dois perigos simétricos. O perigo da mimetização, ou da imitação, muito tentador para a geração mais madura de ativistas que viveram a experiência do PT nos anos oitenta, e não se deixaram abater pela desmoralização. Este impulso consiste em imaginar que, com a mesma estratégia, mas com homens e mulheres diferentes, seria possível replicar os êxitos do PT, evitando os seus erros, e obter um desenlace diferente.

E existe o perigo oposto que pode ser, também, muito atrativo, especialmente, para a geração mais jovem, que despertou para a luta de classes depois da eleição de Lula em 2002: desprezar as lições positivas da experiência do PT, como, por exemplo, a importância de um instrumento de organização dos trabalhadores para a luta política, inclusive, quando a luta política se concentra em terreno desfavorável, como nas eleições. E apostar somente no espontaneísmo, ou na militância pela defesa de reivindicações imediatas.

Quais os critérios para a avaliação de partidos políticos?

Permanecem vivas as disputas de critérios para a apreciação histórica dos partidos políticos. Partidos podem ser julgados por muitos fatores, por exemplo: (a) pela composição social de seus membros - militantes ativos ou simpatizantes filiados - ou dos seus eleitores, ou da sua direção; (b) pelas suas orientações e campanhas políticas, e de suas lutas políticas, inclusive, as internas; (c) pelo programa para a transformação da sociedade, ou até pelos valores e ideias que inspiram sua identidade; (d) pelo confronto entre suas posições quando estão na oposição, e quando, eventualmente, chegam ao poder; (e) pelo regime interno do seu funcionamento; (f) pelas formas de seu financiamento; (g) pelas suas relações internacionais; (h) por último, mas não menos significativo, pela história de como todos estes e, quiçá, ainda outros fatores foram se alterando.

Todos estes critérios são válidos, ou mesmo indispensáveis, e a construção de uma síntese a partir do peso relativo de cada um destes, e até de outros fatores, exige uma apreciação da sua dinâmica de evolução. Esta análise pode ser mais ou menos equilibrada, na medida em que for mais minuciosa, mais complexa, portanto, mais rigorosa.

Só não se deve é julgar um partido por aquilo que ele pensa sobre si próprio. Para aqueles que usam o marxismo como método de análise das relações sociais e políticas, todos estes elementos são significativos, mas uma caracterização de classe é, finalmente, inescapável, para um juízo dos partidos políticos.

Isto, posto, consideremos, por exemplo, o que nos diz André Singer, um dos analistas mais instigantes do PT, que valoriza, sobretudo, que o eleitorado de Lula, depois do primeiro mandato de Lula entre 2002 e 2006, passou a ser o que ele denominou o subproletariado [1], até então, indiferente, ao apelo eleitoral do PT:

O presente artigo procura responder às questões abertas (...) Parte-se de uma dupla hipótese: a de que o realinhamento eleitoral ocorrido entre 2002 e 2006, de um lado, fez surgir um novo "partido dos pobres” (...) com características que lembram as do PTB anterior a 1964. De outro, que a história do PT, vincada por uma rara conexão entre classe e ideologia radical, constituiu uma alma que ainda o influencia. O PT, em consequência, não poderia ser entendido fora da síntese contraditória que as duas facetas compõem. [2]

Embora seja verdade que ocorreu um câmbio na composição do eleitorado do PT e, sobretudo, da votação de Lula em 2006 e de Dilma em 2010, parece pouco convincente que este fator seja o mais expressivo para compreender a mudança do PT. O argumento da conexão de classe não tem como ser demonstrado. Que o proletariado vote no PT e Lula não prova uma conexão de classe: confirma que os trabalhadores mantêm ilusões no PT e Lula. Mas não o contrário e, muito mais importante, ou seja, que o PT e Lula mantenham um compromisso com a classe operária.

O proletariado também votou no passado no PTB, ou MDB, por exemplo. Uma conexão de classe é uma relação que exige reciprocidade e vínculos orgânicos, que o PT teve, porém, perdeu, porque construiu outras relações de classe, com a burguesia, e muito mais fortes. A influência de uma ideologia radical no PT não é um argumento que mereça ser considerado, seriamente, em 2014.

A transformação do petismo em lulismo

Se considerarmos cada um dos fatores anteriormente apresentados e os conferirmos um por um, veremos que a conclusão de que uma mudança social na natureza do PT aconteceu é inescapável. A direção do PT entregou a sua “alma”. Tudo mudou, e para muito pior.

Houve algo de admirável, mas, também, perturbador, na verdade, desde o início, na história do PT. Para remeter ao vocabulário cunhado pela literatura, tivemos o momento epopeia, o momento tragédia e até o momento comédia na trajetória em que o petismo se transformou em lulismo.

Tudo o que existe se transforma. Existem continuidades e rupturas. Nem sempre, no entanto, predomina o que era mais progressivo. Muitas vezes, prevalece o que era mais regressivo. O que provocou mudanças sociais e políticas reacionárias nos partidos da classe trabalhadora, se considerarmos os incontáveis exemplos históricos, foi o impacto das lutas políticas e sociais, das vitórias e das derrotas, ou seja, da pressão das outras classes. Quando as pressões socialmente hostis, oponentes, contrárias aos interesses dos trabalhadores, foram extremamente poderosas, abriram-se crises nos partidos de origem proletária.

Os partidos operários são muito mais vulneráveis à pressão das classes inimigas do que os partidos que representam as classes proprietárias. Porque o proletariado é uma classe ao mesmo tempo explorada, oprimida, e dominada. É completamente inusitado quando um filho da burguesia adere à causa do socialismo. Mas está longe de ser surpreendente que líderes da classe trabalhadora passem a defender os interesses dos patrões.

Mas estas condições muito mais difíceis não permitem concluir que todas as organizações de trabalhadores estão condenadas à degeneração quando atuam na legalidade, e participam de processos eleitorais. Algumas questões decisivas são: (a) se os partidos de programa socialista são ou não são socialmente proletários na sua composição, portanto, independentes da classe dos capitalistas; (b) se a educação política na teoria socialista, na história das lutas e revoluções políticas e sociais, portanto, no marxismo é uma parte central da vida da organização; (c) se o internacionalismo não é somente um discurso declamatório, mas parte da própria natureza dos partidos; (d) se os seus militantes controlam ou não a sua direção, portanto, se há democracia no seu regime interno, porque não encontraremos dirigentes infalíveis.

O PT de 2014 manteve o seu nome e a maioria de sua direção, ainda que Zé Dirceu tenha sido sacrificado, formalmente, pela crise do mensalão em 2005. Mas o PT que fez aniversário neste fevereiro de 2014 é um partido qualitativamente distinto, portanto, diferente daquele que surgiu do impulso das greves de São Bernardo em 1980.

Que o PT não é mais o mesmo  não parece algo digno de polêmica. O que continua polêmico é como, quando e por que este processo aconteceu e, mais importante, na avaliação do que ele é hoje.

Por que degenerou o PT?

Não há mais, há muitos anos, abnegados militantes operários nas suas fileiras. Não há mais campanhas políticas do PT junto ao proletariado, mas somente a defesa incondicional das iniciativas dos governos que dirige. O PT no poder abandonou o seu programa dos anos oitenta, e ficou irreconhecível. O regime interno transformou-se numa farsa com os processos eleitorais diretos, movidos a dinheiro e manipulação de clientela filiada de caudilhos locais, nada muito diferente dos clássicos cabos eleitorais dos partidos burgueses. Não há mais sequer sombra da vibrante luta política interna dos anos oitenta, entre a maioria moderada ou reformista e a esquerda revolucionária. O financiamento do partido repousa, quase exclusivamente, no dinheiro que recebe do fundo partidário, das cotizações dos parlamentares e cargos de confiança e, muito mais grave, da arrecadação dos grandes monopólios na época das campanhas eleitorais. As relações internacionais degeneraram-se ao ponto de o PT ter sido incapaz de se posicionar diante do genocídio realizado pelo Assad na Síria, com o bombardeio da população civil desarmada, um crime de guerra.

Considerando-se um ângulo histórico, podemos afirmar que o PT nasceu como um partido operário com influência minoritária de massas até 1987, e majoritária, na classe trabalhadora organizada, a partir de 1989; com uma corrente majoritária na direção, desde a fundação, liderada por um bloco político que uniu uma fração da burocracia sindical com aspirações de classe pequeno-burguesas, com um coletivo de líderes com origem na intelectualidade militante que veio da geração de 68, ou acadêmica; um núcleo dirigente que aceitava o papel de caudilho de Lula, simultaneamente, como porta-voz público, e como bonaparte interno de suas variadas agrupações; um programa democrático-radical de reformas, ou seja, de regulação social do capitalismo, que se convencionou denominar de democrático-popular; relações internacionais híbridas que uniam o apoio de uma parcela da hierarquia católica, via Holanda e Alemanha (com relações institucionais minoritárias no Vaticano), o apoio de uma parcela da socialdemocracia internacional (via PS francês e SPD alemão), o apoio de uma parcela do aparelho estalinista internacional (via Cuba e, posteriormente, da Alemanha Oriental); e, finalmente, mas não menos importante, com uma ala esquerda muito fragmentada em diversas organizações, porém, com a peculiaridade da presença de alguns milhares de trotskistas.


Quando dizemos que o PT se transformou, qualitativamente, queremos dizer que ocorreram mais do que variações na composição social do eleitorado, ou no peso regional das votações de Lula. Queremos dizer que aconteceu, também, algo maior que uma mutação nas ideias, nos projetos, e nos programas. Queremos dizer que a relação do PT com a classe trabalhadora se alterou. Para resumir, e como em qualquer resumo sendo brutal, o PT deixou de ser um partido de trabalhadores, com direção pequeno burguesa de 1980, e passou a ser um partido burguês com eleitorado proletário.



Notas:
[1] No artigo que citamos e no livro Os sentidos do Lulismo, André Singer destaca a mudança social e regional da votação de Lula e as diferenças entre o eleitorado de Lula e do PT, como quando sublinha, por exemplo, que: “Entre 2002 e 2006 a renda familiar média do simpatizante do PT havia caído de R$1. 349 para R$985; houve uma redução de 17% para 6% na proporção dos que tinham acesso à universidade entre os que simpatizavam com o PT, e a participação do Sudeste entre os identificados com o partido caiu de 58% para 42%”. SINGER, André. A segunda alma do partido dos trabalhadores.

[2] SINGER, André. Ibidem.

Valerio Arcary é professor do IF/SP (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia) e doutor em História pela USP.


Unidos da Lona Preta, a luta fazendo o samba e o samba fazendo a luta

Fundada em 2005, a escola de samba do MST busca resgatar o papel de polo articulador da cultura negra e da classe trabalhadora que uma vez todas as escolas tiveram

Tiarajú D’Andrea
de São Paulo (SP)
As escolas de samba são um patrimônio cultural brasileiro de inestimável grandeza. É central o papel que essas organizações cumpriram e cumprem na socialização das camadas populares e na luta pela afirmação das expressões culturais afro-descendentes em um país segregador e preconceituoso como o Brasil.
Com o passar do tempo, as escolas de samba sofreram algumas mutações que as impedem de cumprir plenamente o seu papel de polo articulador da cultura negra e da classe trabalhadora, mesmo que hoje ainda o façam parcialmente.
Podemos apontar pelo menos três elementos principais que incidiram nesse processo: o gigantismo dos desfiles, que empurra as escolas de samba à busca de patrocínios privados; a invasão das escolas de samba pelos setores mais abastados da sociedade, que passaram a incutir valores ligados ao individualismo, à disputa e ao espetáculo, em detrimento da solidariedade de classe e; a televisão, que transformou os desfiles em um produto privilegiado do mercado de bens simbólicos.
No entanto, mesmo com todas essas mutações, as escolas de samba seguem possuindo comunidades atuantes e que lutam pela afirmação de seu pertencimento a uma classe e a uma história. De certo, uma organização como uma escola de samba expressa o caleidoscópio confuso e contraditório do que é a sociedade brasileira.
Reverente às escolas de samba, mas não observando nelas a possibilidade de realizar uma crítica social mais aguda (ao menos na atualidade), eis que alguns sambistas-militantes fundam em 2005 a Unidos da Lona Preta, a escola de samba do MST, organizada na Regional Grande São Paulo.
Alguns de seus pressupostos são: aglutinar a juventude dos espaços do movimento; reunir diversos coletivos e movimentos pra batucarem juntos; fazer a batalha ideológica por meio da cultura popular; valorizar a identidade de classe por meio do samba; fortalecer as relações sociais; politizar a arte e impregnar a ação política de elementos genuínos da constituição cultural da classe trabalhadora brasileira.
Diferentemente de alguns setores da esquerda que execram as escolas de samba, taxando-as como uma expressão cultural que perdeu sua finalidade, a Unidos da Lona Preta observou o que elas tinham de melhor, tentando reproduzir no âmbito de um movimento social essa forma virtuosa de organização popular. Enfim, não se pode jogar a água do banho com o bebê junto…
Assim sendo, três são os grandes aprendizados que a Unidos da Lona Preta assimilou das escolas de samba e os passou a reproduzir.
O primeiro aprendizado se refere ao fortalecimento das relações sociais por meio da arte em um mundo cada vez mais individualista e competitivo. Uma escola de samba militante, com seus elementos estético-musicais, alimenta as místicas para as lutas cotidianas e reforça o pertencimento a um coletivo e a identidade de classe.
Um segundo elemento de aprendizado com as escolas de samba se refere ao fato de os desfiles serem ligados a uma temática. No entanto, na Unidos da Lona Preta os temas são escolhidos coletivamente e se referem às lutas históricas da classe trabalhadora, temas estes infelizmente cada vez mais raros nas escolas de samba tradicionais.
Sambas-enredo
Seguindo essa linha, em 2009 a temática escolhida foi a Juventude e a Revolução Cubana, derivando no samba “Avante Juventude”. Em 2010, o tema escolhido foi a aliança campo-cidade. Em 2011, discorreu-se contra o agronegócio, os agrotóxicos e os transgênicos, derivando em um samba cujo refrão diz: “Comida ruim ninguém aguenta/ é veneno em todo canto/ mata gente e mata rio/ agronegócio, a mentira do Brasil”.
No final de cada um dos versos, é possível substituir a letra e cantar contra algumas grandes empresas do agronegócio. A ousada brincadeira tem efeito imediato nos ouvintes-lutadores e foi um acerto em termos de composição de samba- enredo. A esse tipo de inovação estética deu-se o nome de “samba camaleão”.
Para 2012, escolheu-se como temática os militantes anônimos que fazem a luta acontecer: as cozinheiras dos encontros; as educadoras das cirandas; os pintores de bandeiras; os motoristas; os que fazem trabalhos burocráticos; os que montam acampamentos, dentre outras tarefas pouco visíveis. Em 2013, a Unidos da Lona Preta cantou sua própria história. Para 2014, escolheu-se um tema que une o passado ao presente: os 50 anos do golpe civil-militar e o que resta em nossa sociedade das estruturas criadas na ditadura.
A Unidos segue a linha dos sambas-enredo clássicos, que apresentam narrativas épicas subvertendo a história oficial. Foi seguindo essa linha que esse gênero musical se impôs no panteão da música brasileira. Trabalhando coletivamente na composição do samba, alcançou-se patamares elevados em termos musicais e poéticos. Basta escutar os sambas da Unidos da Lona Preta para chegar a essa conclusão.
O terceiro grande aprendizado com as escolas de samba se refere à batucada. A experiência de fazer música de maneira coletiva é superadora. Uma orquestra percussiva é uma metáfora da vida em coletivo e da organização de um movimento social. Cada um toca o seu instrumento.
Do som que se extrai do toque da baqueta no couro expressa-se a individualidade de cada um. Só o indivíduo toca o instrumento, adequa-o ao seu corpo e se relaciona com ele. Há uma expressão pessoal nisso. No entanto, o ritmista não pode fazer qualquer coisa com o instrumento. Para que seu toque tenha sentido, deve estar afinado com o toque dos demais ritimistas e com o andamento da batucada toda. Só assim a massa sonora adquire uma harmonia capaz de dar sentido a todos os sons e levando em consideração a relação indivíduo e coletivo. O uno e o todo. Também neste ponto, a Unidos optou pela qualidade técnica, adquirida com muito ensaio. Uma batucada mal tocada fere a percepção do ouvinte, assim como desacredita o coletivo que a organiza.
Batuque
Mesmo que admitamos a (falsa) hipótese de que o samba tem pouco ou nada a dizer à nossa juventude na contemporaneidade, ao menos cada ressoar da batucada comunica aos ouvintes sobre um passado no qual estamos umbilicalmente conectados, que é nosso passado africano.
Batucar também nos lembra como estamos socialmente mal resolvidos, e como nossa sociedade atualmente possui um grande legado escravocrata. Então é esse passado reavivado sonoramente que toma às ruas para cumprir seu destino, que é superar-se por meio da luta, do compromisso, da necessidade de urgentes mudanças na estrutura social de nosso país.
O samba nos conecta ao passado, mas tem muito a dizer ao presente. Ao apresentar um “de onde viemos” às novas gerações, interpela o próprio presente a construir um futuro que leve em consideração as lutas e as lágrimas de um passado. É desse modo que a batucada se faz atemporal, persistente como expressão cultural e resistente a modinhas, justamente porque passa ao largo delas e porque não apoia sua existência em estruturas mercantis que, por meio de um mesmo mecanismo, engendra e destrói as modas.
Dez anos
Em 2014, a Unidos completa dez anos de desfiles. Nesse tempo, fomentou a constituição do movimento das “Batucadas do Povo Brasileiro”, que, na cidade de São Paulo, inclui a Batucada Carlos Marighella, o Cordão Boca de Serebesqué, o Bloco Unidos da Madrugada, o Bloco da Abolição e o Bloco Saci do Bexiga. Sua forma de organização também influenciou o surgimento de outras experiências parecidas em São Paulo e no Brasil inteiro.
Com a retomada das ruas por parte da população no ano de 2013, foi possível verificar a eficácia de uma batucada nesses atos, tanto para criar unidade e fomentar o caráter festivo dos mesmos, como para encorajar e fortalecer os ânimos. Uma batucada é a lembrança persistente do nosso passado, uma fértil construção no presente e um caminho a ser trilhado no futuro. Quando as batucadas do povo brasileiro tomam as ruas, os poderosos tremem…

Exposição "Chávez. Plantio de pátria, colheita da revolução"

Por ocasião da Jornada Mundial "Por Aqui Passou Chávez"





quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

"Mídia traz uma Venezuela caricata, completamente deslocada da realidade"

ESCRITO POR VALÉRIA NADER, DA REDAÇÃO


Acompanhar o noticiário internacional é sempre uma experiência que demanda discernimento – afinal, trata-se de notícias que vêm de longe e que, além de obviamente sujeitas ao viés analítico e ideológico do órgão de comunicação que as irradia, são relativas a fatos não vivenciados no dia a dia do público leitor. No Brasil, precisa-se de bem mais que discernimento para passar por esta experiência – muita desconfiança e dois pés pra trás talvez não deem conta da tarefa, especialmente se estão em foco países que tomaram um rumo que fuja minimamente ao que determina o mainstream.

A Venezuela é certamente um desses países. E não se trata aqui de tecer louvores ao país latino-americano, o qual, a exemplo de tantas outras nações de nossa região, tem uma trajetória marcada por uma série de contradições e precariedades sociais e políticas. Trata-se simplesmente de apelar para noções básicas e primárias do jornalismo, de modo que, diante dos fatos, se porte com um mínimo de seriedade e isenção.

Assistir  aos noticiários ou ler matérias dos maiores grupos de mídia sobre os últimos manifestos na Venezuela é se deparar, no entanto, sem exceção, com um bloco monocórdio, parcial e tendencioso. Um dos jornais televisivos de maior repercussão no país, o Jornal Nacional da Rede Globo, em uma de suas edições da semana passada, chegou a trazer os acirrados acontecimentos da Venezuela, com sua população visivelmente dividida (como é de praxe em situações sociais de conflagração ou mais extremadas), a partir das falas, imagens e cenários de somente um dos lados – a oposição ao presidente Maduro e ao chavismo.

Ideias como as refletidas pela frase “Governo que cai? Não. Governo que sustenta grupos paramilitares e uma polícia política, dispostos a aterrorizar atos da oposição, espionar e matar”, seguida de posterior e literal alusão ao nazismo – frase de um editorialista da Folha de S. Paulo, na segunda-feira, 24 de fevereiro -, são quase exclusivamente o que se vê espelhado pela imprensa corporativa. Autênticas caricaturas de direita, ditadas pelos porta-vozes e críticos vorazes dos clichês que saem pela esquerda.

Para avançar o debate, o Correio da Cidadania insere-se na tentativa de outros veículos que procuram dar voz àqueles que não têm entrada na grande mídia e que apresentam fatos e visões que nela são quase proibidos. Na noite de segunda-feira, 24 de fevereiro, conversamos com Pedro Silva Barros. Professor licenciado do Departamento de Economia da PUC-SP e doutor em Integração da América Latina pela USP, é técnico de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e titular da missão deste órgão do governo federal em Caracas, Venezuela, desde setembro de 2010.

Dentre as várias e abrangentes colocações sobre o país no qual vive há quase 4 anos, Barros destaca que “os canais estatais não superam, somados, 10% da audiência”. Ele está se referindo ao mesmo país e à mesma mídia que os meios de comunicação por aqui denunciam como “100% controlados pelo chavismo”.

Abaixo, a entrevista exclusiva.

Correio da Cidadania: A Venezuela está no olho do furacão e, para aqueles que observam de fora os acontecimentos políticos, o cenário é no mínimo confuso. O que você teria a comentar, em primeiro lugar, sobre os últimos e intensos protestos e a composição das forças oposicionistas (protagonizada por Henrique Capriles e Leopoldo López) que estão a mobilizá-los?

Pedro Barros: A oposição na Venezuela tem marchado unida dentro de sua multiplicidade. Depois de uma derrota de mais de 20% dos votos no referendo em que tentava revogar o mandato do presidente Chávez em 2004 e de boicotar as eleições parlamentares de 2005, apoiaram Manuel Rosales nas presidenciais de 2006 e Capriles nas eleições de 2012 contra Chávez e no apertado pleito de 2013 contra Maduro, além dos referendos para mudanças constitucionais de 2007, o único em que foram vitoriosos, e de 2009.

Em 2012, a economia venezuelana cresceu mais de 5% e a inflação havia diminuído, ainda que num patamar alto, próximo a 20%; Chávez venceu as eleições em outubro com mais de 10% de vantagem. No início de 2014, após a vitória governista nas eleições municipais de dezembro passado, houve uma aproximação do governador (de Miranda, o estado com as maiores taxas de homicídio do país) Capriles com o governo federal para tratar de temas específicos, notadamente segurança pública. Esse tema é particularmente importante quando se leva em conta que, em 2012, o presidente Chávez havia lançado o Plano Nacional de Segurança Pública e o governo de Miranda não havia participado desse processo. Talvez isso o tenha afastado dos setores mais radicais da oposição, liderados por Leopoldo López.

Nas últimas semanas, López, o prefeito de Caracas, Antonio Ledezma, e a deputada María Corina lançaram o movimento “A Saída”, abrindo espaço para reivindicações extra-constitucionais. A despeito da condenação de Capriles e outras figuras históricas da oposição, parcela importante do movimento estudantil aderiu à radicalização, que culminou nos episódios violentos de 12 de fevereiro, que deixou três mortes, dezenas de feridos, inclusive das forças de segurança, e destruição de prédios públicos. Hoje as mortes já chegaram a quinze.

A justiça venezuelana expediu uma ordem de detenção de Leopoldo López, acusando-o de mentor intelectual dos protestos (formalmente, as acusações são associação para delinquência, danos ao patrimônio e incitação à violência). Ainda que seja um setor minoritário na oposição, o radicalismo tem ganhado força, particularmente na fronteira com a Colômbia e na região mais rica de Caracas. Alberto Ravell, jornalista muito influente na oposição, escreveu hoje pelo Twitter que “na Ucrânia já foi possível” - avalio que seja uma declaração bastante ilustrativa das intenções dos setores mais radicalizados.

Correio da Cidadania: O Prêmio Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel disse à imprensa argentina que “há uma intenção de desestabilizar não apenas a economia, como também a ação social e política” na Venezuela, o que seria especialmente patrocinado pelos EUA. Como você encara esta possibilidade, ou seja, a ingerência externa na Venezuela?

Pedro Barros: A história recente da Venezuela é marcada pelo golpe de 2002, que levou o empresário Pedro Carmona ao poder por menos de 48 horas. Apenas os governos dos EUA de George W. Bush e da Espanha de José María Aznar, além do Fundo Monetário Internacional, reconheceram a legitimidade de Pedro, o Breve.  Desde então, foi frequente a tensão entre Venezuela e EUA.

Na semana passada, por exemplo, a deputada cubano-americana Ileana Ros-Lehtinen (Partido Republicano, Florida) afirmou que demandou ao presidente Barack Obama sanções econômicas à Venezuela. No mesmo ato em apoio às manifestações, realizado em Miami, Luigi Boria, prefeito de Doral, cidade com alta concentração de latinos na Florida, expôs que estava “muito entusiasmado porque acredito que agora sim se produzirá uma saída frente ao atropelo, à violação aos direitos humanos que se vive na Venezuela” e que “a experiência da Síria deve levar a uma reflexão do Departamento de Estado sobre as ações que se devem tomar. Acredito que os Estados Unidos e o presidente Obama devem tomar ações sobre a Venezuela”. Seria difícil não considerar natural e legítimo que o governo e os venezuelanos se preocupem com esse tipo de demanda externa.

Nem seria necessário elencar as intervenções norte-americanas na América Latina ou em países exportadores de petróleo, apenas lembrar que a Venezuela está a três horas de voo de Miami e possui reservas de mais de 300 bilhões de barris de petróleo, a maior do mundo. De acordo com a Agência Internacional de Energia e com o principal anuário estatístico do tema, editado pela petrolífera britânica BP, a Venezuela tem as maiores reservas de petróleo do mundo. Ainda que seja predominantemente um petróleo pesado, cujo custo de refinação de um barril supera US$ 20, ele é vendido a quase US$ 100 por barril.

Talvez valha ainda apontar que, há dez anos, a Venezuela não exportava nenhuma gota de petróleo para a China e hoje vende mais de 400 mil barris diários para seu maior parceiro asiático.

Correio da Cidadania: Em que medida, de todo modo, a tensão está associada às reais condições sociais e econômicas do país, que têm de fato se precarizado, sobrepondo-se ao cenário e visão tão polarizados quando a Venezuela está em foco?

Pedro Barros: Nos quinze anos de chavismo, a Venezuela foi o país do mundo que mais distribuiu renda e combateu a pobreza. Isso foi impulsionado pelo incremento do investimento social, permitido pelo aumento da arrecadação, principalmente devido ao aumento do controle do governo sobre a renda petroleira, que foi particularmente alta nesse período. O mesmo êxito não ocorreu nas tentativas de diversificar a economia e, mais recentemente, no controle de importantes variáveis macroeconômicas, como o câmbio ou a inflação.

Há evidentes problemas na economia venezuelana; ao mesmo tempo, a maioria da população tem a clareza de que a alternativa não é retornar ao passado. A repetição da saída fracassada de 2002 é improvável em um cenário em que as forças armadas, a estatal petroleira e parte dos meios de comunicação estão comprometidas com o processo político em curso. Em 2002, parte considerável da cúpula militar, a maioria da direção da estatal petroleira PDVSA e todos os meios de comunicação relevantes estavam absolutamente comprometidos com o golpe - mesmo assim, o povo na rua, em atitude inédita na região, reverteu as ambições desses setores.

Naquele tempo, por exemplo, não estavam estruturadas as missões sociais, as redes de distribuição de alimentos a preços bastante subsidiados. A pobreza extrema chegava a 13,5% da população, hoje está em 2,5%, um número fantástico para um país latino-americano. Não há grandes mudanças no estoque de riqueza (patrimônio), mas os resultados na distribuição de renda são fabulosos: a CEPAL aponta a Venezuela como a melhor distribuição de renda da América Latina, medida pelo coeficiente de Gini, superando o Uruguai ou a Costa Rica. O governo construiu uma grande rede com 27 mil pontos de distribuição de alimentos entre hipermercados, mercados médios e postos itinerantes. Ainda que haja escassez de alguns itens, o consumo per capita de proteína triplicou em 15 anos, a mendicância praticamente inexiste, ninguém passa fome. As camadas mais pobres da população vivem melhor e têm muito mais conhecimento sobre os seus direitos.

Há também uma economia difícil de ser analisada a partir do exterior. Os subsídios são imensos, particularmente sobre energia, transporte, comunicação, alimentos básicos e itens de primeira necessidade. Uma lata de refrigerante custa quatro vezes mais do que um tanque de 50 litros de gasolina em um mesmo posto de serviço. Uma parcela muito pequena da população tem renda familiar inferior a 5 mil bolívares. Um bilhete do metrô de Caracas custa 1,5 bolívares, o mesmo valor de um minuto de ligação de um celular venezuelano para um celular no Brasil; o custo mensal do gás residencial é de 8 bolívares para mais de 90% dos consumidores; a assinatura da TV a cabo por mês custa aproximadamente 300 bolívares. Isso permite um padrão de consumo para a maioria dos venezuelanos que apenas uma minoria dos latino-americanos consegue ter.

Ao mesmo tempo, há distorções importantes, a escassez e as filas têm aumentado, parece que uma parte importante das classes médias não está disposta a enfrentá-las em seu cotidiano e alguns mercados não querem tê-las, restringindo o acesso e limitando a compra dos produtos subsidiados. Nos últimos anos, esses impasses foram equacionados e legitimados em disputas eleitorais: o governo mostrando as conquistas e a oposição, as limitações do modelo político, social e econômico. Vários organismos internacionais e organizações renomadas, como a Unasul e o Centro Carter, têm reconhecido as eleições e o sistema eleitoral da Venezuela como justo e limpo. Os resultados têm sido ligeiramente favoráveis ao chavismo.  A oposição governa em importantes estados, como Miranda e Lara, e cidades, como Caracas, Maracaibo e Barinas, capital do estado homônimo onde Hugo Chávez nasceu e seu irmão mais velho atualmente governa.

Conheço todos, todos os países da América Latina, todos os estados do Brasil e 21 dos 23 estados venezuelanos; não tenho a menor dúvida em afirmar que a Venezuela é o melhor país da região para alguém que está na metade mais pobre da população viver, se alimentar, ter acesso à educação e a bens de consumo. Não poderia dizer o mesmo na primeira vez que estive aqui, pouco mais de uma década atrás. O fenômeno migratório é ilustrativo. Ao mesmo tempo em que algumas dezenas de milhares venezuelanos das classes altas e médias emigram, principalmente para Estados Unidos, Colômbia e Panamá, a quase totalidade dos aproximadamente três milhões de colombianos, peruanos e equatorianos das classes médias e baixas que imigraram para a Venezuela permanece aqui. Analogicamente, a população universitária do país chega a dois milhões de estudantes, 7% da população está cursando o nível superior hoje na Venezuela (no Brasil, este número é menor que 3,5%, ainda que tenha dobrado nos últimos dez anos), mas a produção científica e a inovação avançaram pouco por aqui.

Correio da Cidadania: Como enxerga, neste sentido, o desempenho do governo, primeiro de Chávez, e agora de Maduro, e sua relação com a degringolada da situação econômica e social do país, visto haver intensos relatos de carestia, inflação galopante, crescente dívida externa, entre outros?

Pedro Barros: A Venezuela oscilou anos de forte crescimento econômico com outros de estagnação ou recessão.

É permanente a tensão entre manter o bolívar valorizado, garantindo subsídios às importações, ou desvalorizá-lo para tentar diversificar a economia, com riscos de carestia no curto prazo. A opção do governo tem sido a primeira. No último ano, a sua principal preocupação foi se legitimar politicamente. No campo econômico, porém, se destacaram a inflação e o desabastecimento de alguns produtos. O presidente Maduro foi eleito em abril, pouco mais de um mês após a morte de Hugo Chávez. Havia pressão inflacionária e certo descontrole do mercado cambial paralelo. Ainda que a dívida externa tenha crescido e as reservas internacionais tenham caído, a balança comercial da Venezuela ainda é superavitária. Mais de 70% das reservas venezuelanas são precificadas em ouro, cujo preço frente ao dólar recuou algo como 30% em 2013, mas já recuperou quase 10% neste ano; as reservas totais, porém, são o dobro do que eram há quinze anos. A dívida externa de curto prazo é estável e menor do que as reservas. A dívida de longo prazo continua um pouco inferior às receitas de doze meses de exportação petroleira. Isso traz algum conforto para uma economia tão questionada. Há trinta anos a Venezuela não consegue ter três anos seguidos de inflação abaixo de 20%; nessas três décadas o período de inflação mais baixa foi o do governo de Hugo Chávez. Os outros dois governos, de Carlos Andrés Pérez e Rafale Caldera, tiveram taxas de inflação média superiores aos 56% nos últimos doze meses.

Talvez a ausência de Chávez tenha anestesiado um pouco o país e o governo. Provavelmente seria imprescindível uma grande estabilidade política para ajustes de longo prazo na política econômica, mas a vitória bastante apertada, a demora da oposição em reconhecer a derrota e as eleições municipais de dezembro impuseram outras prioridades, de curto prazo.

A política de impor redução de preços com coerção estatal (particularmente dos bens de consumo que eram adquiridos com taxas de câmbio preferenciais e revendidos ao preço do mercado cambial paralelo) obteve grande apoio e sustentou um aumento da popularidade do presidente Maduro no último trimestre de 2013. A oposição tinha a leitura de que a situação econômica havia se deteriorado no curso do ano e que isso comprometeria o desempenho eleitoral dos candidatos governistas. O próprio Capriles apresentava a eleição de dezembro como um plebiscito sobre Maduro. As urnas, porém, garantiram a vitória chavista em 75% das cidades do país.

No início do ano, principalmente após o assassinato brutal da modelo Mónica Spear, o tema da segurança pública tomou conta do debate político. Houve uma aproximação entre governantes das mais variadas matrizes políticas para tentar amenizar o problema e concertar políticas públicas conjuntas. Parte mais radical da oposição passou a questionar a liderança de Capriles e a estimular protestos violentos.

Correio da Cidadania: Como você analisa o gesto político de López, que se entregou semana passada à polícia venezuelana, sem deixar de fazer discursos de estímulo a seus seguidores?

Pedro Barros: Há uma disputa interna da oposição entre, ao menos, duas táticas para chegar ao poder. É parte de qualquer processo político que haja divisões dentro das grandes coalizões. Há disputas dentro do chavismo e há embates internos na oposição. Nos últimos anos, porém, os moderados ganharam espaço em ambos os lados.

Muita gente diz que não é fácil ser político sem mandato. Leopoldo López, que havia abandonado a prévia da oposição que definiu Capriles como candidato em 2012, aparentemente apostou no tudo ou nada e parte significativa de seus seguidores defendem a ruptura institucional. Os oposicionistas que têm tido votos, como o governador de Lara Henri Falcón, um ex-chavista, porém, são muito mais moderados. Agora pela noite, em reunião do Conselho Federal de Governo, ele defendeu que é hora de isolar os violentos e diminuir o tom do discurso.

O prefeito oposicionista de Baruta (região de Caracas), Gerardo Blayd, afirmou hoje que os protestos devem ser “racionais e pacíficos”. O mesmo vale para o prefeito de Chacao, Ramón Muchacho. Essa visão encontra pouco apoio entre os manifestantes, mas é música para os ouvidos da imensa maioria da população, fatigada pela polarização e marcada pelo massacre do Caracazo, que completará 25 anos na quinta-feira, pelo golpe de 2002 e pelo locaute do fim de 2002 e início de 2003.

Correio da Cidadania: Qual a sua opinião sobre a cobertura da mídia, interna e externamente à Venezuela, no geral e no que se refere aos acontecimentos aqui narrados?

Pedro Barros: Diferentemente de 2002, hoje há acesso plural às informações na Venezuela. Nesta manhã fui à banca e contei dez jornais diferentes, todos eles impressos com papel subsidiado. Oito eram oposicionistas, com diferentes ênfases.

Sugiro a visita aos sítios do influente eluniversal.com, do tradicional el-nacional.com, do talcualdigital.com, que nasceu para se opor ao chavismo, do econômico elmundo.com.ve, do ultimasnoticias.com.ve, que é o mais vendido, e do governista correodelorinoco.gob.ve. Os dois canais mais vistos da TV aberta, os privados Venevisión e Televen, que foram protagonistas do golpe em 2002, não dão maior destaque às questões políticas. Também a privada Globovisión, que antes só apresentava os pontos de vista da oposição, tem se preocupado em dar espaço ao governo. Os canais estatais não superam, somados, 10% da audiência. Na TV paga, que aqui é muito mais acessível e vista do que no Brasil, há vários canais oposicionistas, inclusive a CNN em espanhol, que tem entrevistado vários oposicionistas venezuelanos, ainda que seja um canal regional. Evidentemente, a TeleSUR é seu maior contraponto. No rádio também há grande diversidade, a maior parte das emissoras privadas são abertamente de oposição, contrapostas pelas emissoras públicas e, principalmente, comunitárias, que têm muito espaço na Venezuela.

A cobertura internacional é majoritariamente contrária ao governo, que parece ter concentrado seus esforços em divulgar internamente suas ideias e ações. Nos últimos anos, outros países da região talvez estejam seguindo esse mesmo caminho introspectivo. Surpreende muito o comportamento da imprensa brasileira, particularmente dos jornais, que antes apresentavam o ponto de vista do governo venezuelano, ainda que se opusessem a ele.

Vou concentrar meus comentários na Folha de S. Paulo, que acompanho diariamente desde que me alfabetizei, o que prossigo fazendo hoje, assinando e lendo a versão eletrônica sistematicamente; e na TV Globo, na qual assisto ao noticiário por meio da Globo Internacional. O conteúdo mais desinforma do que informa e a análise, extremamente caricata, é completamente deslocada da realidade.

Ambos os veículos enviaram jornalistas ao país na última semana, e nenhum deles procurou o governo ou qualquer posicionamento simpático a ele em qualquer de suas reportagens. Quando se cita o governo ou se apresenta alguma declaração, restringe-se a imagens e pequenas frases que são reproduzidas pelas agências de notícias tradicionais. A coletiva do presidente Maduro à imprensa internacional na sexta passada, reportada no mundo todo, não contou com a presença ou a menção desses veículos de comunicação.

No início da semana passada, o Jornal Nacional apresentou duas entrevistas de rua para encerrar a matéria uníssona de que uma ditadura estava em curso; na primeira, ao ser perguntado sobre o que esperava para os próximos dias, o entrevistado afirmou seu desejo de que o governo caia; na segunda, veio uma ressalva: que não tenha derramamento de sangue. Um roteiro para um golpe a la Honduras e Paraguai.

Se eu não acompanhasse a Venezuela e estivesse no Brasil, provavelmente teria essa leitura. Mais para o fim da semana, a mesma repórter foi enfática: “Os protestos continuam proibidos, mas os estudantes não saem das ruas”. As manifestações perdiam intensidade e os governos Chávez e Maduro nunca proibiram protestos na Venezuela, que têm menos restrições e mais proteção para serem realizados do que na grande maioria das democracias, inclusive do que no Brasil. O problema da violência e do excesso de armas na Venezuela vai muito além e independe dos protestos em curso. Os excessos cometidos, que evidentemente existiram, estão sendo investigados.

Os funcionários do serviço de inteligência que descumpriram a ordem de aquartelamento e atiraram no dia 12 de fevereiro estão detidos e a investigação está em curso. O assassinato da estudante que havia sido miss turismo do estado de Carabobo foi causado por um tiro pelas costas, as investigações também estão em curso, mas, provavelmente, o tiro partiu de manifestantes da oposição. Os comentaristas brasileiros foram taxativos ao responsabilizar os “colectivos” pela morte.

Até agora, em duas semanas de protestos, na contabilidade mais ampla, da ONG Foro Penal, foram 539 detidos em toda a Venezuela, a grande maioria já liberados; 19 estão privados de liberdade por decisão judicial, segundo a mesma contagem. Apenas no sábado passado 262 foram detidos, incluindo 5 jornalistas, em um único protesto em São Paulo, que talvez tenha sido menos violento do que os que têm ocorrido aqui.

Hoje à noite, a mesma Delis Ortiz apresentava o general aposentado Angel Vivas como um herói, respaldado por seus vizinhos por resistir a uma ordem de detenção com um fuzil norte-americano nas mãos e uma pistola na cintura na varanda de sua casa. Sequer comentou a motivação da ação policial: ele havia aconselhado os manifestantes a utilizarem arame farpado nos bloqueios de rua e, horas depois, um trabalhador que voltava para casa em sua moto foi morto com o pescoço cortado por essas barricadas. Na reportagem, foi apresentada a vaga acusação de incitação à violência, sem nenhuma referência ao fato concreto. Na conta da imprensa brasileira, foi mais um manifestante que caiu em combate contra as forças da ditadura.

Fico a pensar qual seria a reação dos mesmos jornalistas se uma figura pública brasileira tivesse, um dia antes da trágica morte do cinegrafista Santiago Andrade, incentivado que os manifestantes que protestam contra o aumento da passagem de ônibus no Brasil utilizassem rojões contra a polícia, alegando que ela havia reprimido desproporcionalmente em atos do passado próximo.

A enviada da Folha de S. Paulo tem escrito diariamente, raramente cita uma fonte governamental ou uma posição que não seja de oposição radical a tudo que foi feito na Venezuela nos últimos quinze anos. As opiniões, quando não são de políticos opositores, são de ONGs opositoras. Tenta reportar que há manifestantes que lutam contra uma ditatura, que não podem utilizar meios eletrônicos e enfrentam o terror de bandos armados clandestinos que defendem o governo, que permite que eles pratiquem crimes variados impunemente.

Tanto a enviada, como um ex-correspondente que publicou artigo de análise do caso venezuelano, como outro analista de temas aleatórios, apresentam uma absoluta confusão entre colectivos, milícias e paramilitares, como se tudo fosse a mesma coisa, como se não existisse uma lei que regulamentasse as milícias como reservistas e parte da defesa nacional da Venezuela, independente de sua coloração política, e que atuam fardados e identificados. Como se participar de um movimento social fosse, em si, um crime. Como se o que acontece no México ou na Colômbia fosse transposto automaticamente à Venezuela. Utilizam o termo milícias como se fossem os grupos que controlam ou controlavam áreas do Rio de Janeiro.

Ontem o jornal publicou textualmente que a estratégia atual do governo era bloquear Twitter e Facebook, usando essa terminologia. Não consulto esses meios com frequência, mas meus colegas de trabalho e alguns amigos, sim: foram unânimes em afirmar que isso nunca aconteceu na Venezuela. Pode ter havido oscilação na velocidade da internet, mas nunca o Twitter foi retirado do ar ou coisa parecida, basta ver a sequência de publicação das mensagens de venezuelanos. A própria enviada postou pelo Twitter, a partir de Caracas, que não poderia utilizar redes sociais. Em poucos países do mundo esses instrumentos são tão utilizados e democratizados pelo amplo acesso à internet como na Venezuela, que tem a rede mais abrangente e de menor custo da América Latina. Provavelmente, eles nunca haviam sido tão utilizados aqui como nos últimos dias.

Infelizmente, para o leitor brasileiro que gostaria de saber o que está acontecendo na Venezuela, o jornal nunca reportou os mais de 4 milhões de laptops com acesso à internet distribuídos gratuitamente para estudantes da educação básica e média. A palavra “canaimita”, que denomina esses computadores, nunca foi publicada pela Folha. No início deste ano, o governo anunciou, como parte da expansão do projeto, que distribuirá 2 milhões de tablets, igualmente com acesso à internet, para estudantes universitários. Desnecessário dizer que existe uma forte contradição entre essa política macro de ampliar radicalmente o acesso ao conhecimento e à informação e o denuncismo de censura estampado na manchete do jornal.

Talvez caminhar um pouco pelas periferias, conhecer um pouco do interior, sair da área de um quilômetro quadrado ao redor do hotel da área mais nobre de Caracas, que abrigou os generais golpistas de 2002 e 2003 e que concentra os protestos dos últimos dias, ajudasse a entender o que se passa na Venezuela.


Correio da Cidadania: Como você acha que se dará o desfecho de mais esta crise venezuelana e quais as perspectivas do chavismo, um processo político que já supera 15 anos no governo?

Pedro Barros: No último sábado, observei de perto as manifestações da oposição e do governo e em ambas havia clima de absoluta normalidade e proteção policial para evitar possíveis confrontos. Destaca-se que a da oposição foi realizada em El Marqués, no município de Sucre, governado pela oposição, no estado de Miranda, governado pela oposição. Os maiores confrontos até agora foram na Praça de Altamira, município de Chacao, governado pela oposição, estado de Miranda, governado por Capriles, que tem sistematicamente criticado a prática de guarimbas (barricadas para bloqueio de ruas e avenidas, que em Caracas acontecem quase que exclusivamente em bairros nobres). Pelo que é reportado, os protestos no estado de Táchira, na fronteira com a Colômbia, que foram mais fortes, também têm perdido intensidade.

Nem sempre é fácil diagnosticar ou traçar cenários sobre o que se passa na Venezuela. Correndo o risco de errar redondamente, diria que os protestos vão esfriar nos próximos dias, serão rearticulados e voltarão com força no próximo período, podendo coincidir com a Copa do Mundo de futebol.

O chavismo é o movimento que marcou a primeira tentativa de ruptura com o Consenso de Washington na América Latina. Depois vieram mais de uma dezena de governos, com diferentes tonalidades, mas com um objetivo parecido, de diminuição das desigualdades e não alinhamento automático aos Estados Unidos. A resposta fácil sobre as perspectivas seria indicar que o desafio é garantir o aprofundamento das conquistas sociais em um cenário econômico e, talvez, político adverso. Sistematicamente, tentaram apresentar a morte de Chávez como o fim do chavismo, mas, com o passar dos meses, me parece claro que estamos apenas no começo de uma longa história.

Provavelmente, mais do que qualquer outro, o posicionamento sobre o que se passa na Venezuela indica as posições que cada um tem sobre o futuro da América Latina. As notas do Mercosul, da Unasul e da Celac, ainda que diferentes, indicam uma região mais unida, preocupada com a estabilidade e progresso mútuos. Essa tem sido a posição da presidente Dilma Rousseff, que foi afirmativa nos momentos mais decisivos da história recente da Venezuela, seja para a entrada do país no Mercosul, seja para o reconhecimento internacional das eleições de abril de 2013.

Agora há pouco, em Bruxelas, ela foi novamente assertiva ao declarar que o diálogo, o consenso e a construção democrática são mais adequados do que qualquer tipo de ruptura institucional e que o caos, que é desejado por grupos minoritários na Venezuela, seria a desconstrução social, econômica e política. Por várias vezes, agora e antes, a presidente lembrou que é importante enxergar os avanços sociais da Venezuela.

Em perspectiva histórica e para além da área social, provavelmente o governo Chávez será reconhecido como uma guinada para o sul e em prol da integração regional.

Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania.


quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Pedagogia Histórico-Crítica

Temática da edição V. 5, N. 2 de 2013 da revista Germinal: Marxismo e Educação em Debate.


Este número foi organizado por Paulino Orso, contando com a colaboração de Newton Duarte, Dermeval Saviani, Ligia Marcia Martins, Ana Carolina Galvão Marsiglia entre outros colaboradores. O novo número pode ser acessado pelo link:



Sumário

Editorial

PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA -Editorial-PDF
André Paulo Castanha1-4

Debate

É POSSÍVEL FALAR EM PEDAGOGIA HISTÓRICO CRÍTICA PARA PENSARMOS A EDUCAÇÃO INFANTIL?PDF
Alessandra Arce5-12
FORMA E CONTEÚDO DO ENSINO NA EDUCAÇÃO INFANTIL: O PAPEL DO JOGO PROTAGONIZADO E AS CONTRIBUIÇÕES DA LITERATURA INFANTILPDF
Angelo Antonio Abrantes13-24

Artigos

A PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA, AS LUTAS DE CLASSE E A EDUCAÇÃO ESCOLARPDF
Dermeval Saviani25-46
LUTA DE CLASSES, TRABALHO DOCENTE E PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA NA EDUCAÇÃO ESCOLARPDF
José Luis Derisso47-58
A PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA E A FORMAÇÃO DA INDIVIDUALIDADE PARA SIPDF
Newton Duarte59-72
OS MOVIMENTOS SOCIAIS E A PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA: O SALTO DE QUALIDADE NECESSÁRIO NA PRÁTICA DA EDUCAÇÃO ESCOLAR E NÃO-ESCOLARPDF
Maria de Fátima Félix Rosar73-88
PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA: TEORIA SEM PRÁTICA? – ONDE ESTÁ O CRITÉRIO DE VERDADE?PDF
João Luiz Gasparin89-96
CONTRIBUIÇÕES DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORESPDF
Ana Carolina Galvão Marsiglia, Ligia Marcia Martins97-105
PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA E PSICOLOGIA HISTÓRICO CULTURAL: INFERÊNCIAS PARA A FORMAÇÃO E O TRABALHO DE PROFESSORESPDF
Cristhyane Ramos Haddad, Maria de Fátima Rodrigues Pereira106-117
O PAPEL DO CURRÍCULO ESCOLAR NO DESENVOLVIMENTO HUMANO: CONTRIBUIÇÕES DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA E DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURALPDF
Juliana Malanchen, Ricardo Eleutério dos Anjos118-129
OS FUNDAMENTOS PSICOLÓGICOS DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA E OS FUNDAMENTOS PEDAGÓGICOS DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURALPDF
Ligia Marcia Martins130-143
A PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA E O CURRÍCULO BÁSICO PARA A ESCOLA PÚBLICA DO PARANÁ – 1990: DO MITO À REALIDADEPDF
Paulino José Orso, Sandra Tonidandel144-158
OS DESAFIOS DA INSTITUCIONALIZAÇÃO E IMPLEMENTAÇÃO DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL DE ITAIPULÂNDIA-PRPDF
Celso Sidnei Balzan, Paulino José Orso159-174
APONTAMENTOS SOBRE O PROCESSO DE (RE)ESTRUTURAÇÃO DO SISTEMA DE EDUCAÇÃO PÚBLICO MUNICIPAL DE LIMEIRA-SPPDF
Luciana Cristina Salvatti Coutinho175-189
TRAJETÓRIA DE ELABORAÇÃO DA PROPOSTA PEDAGÓGICA PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL NO SISTEMA DE ENSINO DE BAURU NA PERSPECTIVA TEÓRICA DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA E TEORIA HISTÓRICO-CULTURALPDF
Marta de Castro Alves Correia190-202
DERMEVAL SAVIANI – UMA TRAJETÓRIA DE LUTA E COMPROMISSO COM A EDUCAÇÃO TRANSFORMADORAPDF
Eraldo Leme Batista, Marcos Roberto Lima203-215

Entrevista

A PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA E O CURRÍCULO BÁSICO PARA A ESCOLA PÚBLICA DO PARANÁ – 1990: DO MITO À REALIDADEPDF
Alexandra Alexandra Vanessa de Moura Baczinski216-226

Clássicos

ESCOLA E DEMOCRACIA: PARA ALÉM DA “TEORIA DA CURVATURA DA VARA”PDF
Dermeval Saviani227-239

Resenhas

PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA: PRIMEIRAS APROXIMAÇÕESPDF
Celso Sidnei Balzan240-243

Teses e Dissertaçoes: Resumos

A QUESTÃO DA PRÁTICA NA FORMAÇÃO DO PEDAGOGO NO BRASIL: UMA ANÁLISE HISTÓRICA.PDF
Luciana Cristina Salvatti Coutinho244
AS ORIENTAÇÕES EDUCATIVAS CONTRA-HEGEMÔNICAS DAS DÉCADAS DE 1980 E 1990 E OS REBATIMENTOS PÓS-MODERNOS NA DIDÁTICA A PARTIR DA VISÃO DE ESTUDIOSOS.PDF
Lenilda Rego Albuquerque de Faria245
O RELATIVISMO DO PENSAMENTO PÓS-MODERNO COMO LEGITIMAÇÃO PARA O ENSINO RELIGIOSO NA ESCOLA PÚBLICA BRASILEIRA.PDF
José Luis Derisso246
A IMPLANTAÇÃO OFICIAL DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA NA REDE PÚBLICA DO ESTADO DO PARANÁ (1983-1994): LEGITIMAÇÃO, RESISTÊNCIAS E CONTRADIÇÕES.PDF
Alexandra Vanessa de Moura Bakzinski247

Expediente

ExpedientePDF
Elza Margarida de Mendonça Peixoto248


ISSN: 2175-5604