segunda-feira, 31 de maio de 2010

Em solidariedade com as vítimas do terrorismo israelense



"Os trágicos resultados da operação militar israelense denotam, uma vez mais, a necessidade de que seja levantado, imediatamente, o bloqueio imposto à Faixa de Gaza, com vistas a garantir a liberdade de locomoção de seus habitantes e o livre acesso de alimentos, remédios e bens de consumo àquela região", trecho do comunicado do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, que convocou hoje (31/5) o embaixador de Israel em Brasília para manifestar sua "indignação" pelo "ataque israelense" a uma frota de navios que levaria ajuda humanitária à Faixa de Gaza e sua preocupação pela situação de uma cidadã brasileira que estaria em uma das embarcações.

Novo livro de Anita Prestes

"(...) sem as derrotas do passado, não teríamos jamais a menor esperança numa vitória final." (William Morris, 1887)

Dando continuidade às pesquisas que vem empreendendo sobre a história dos comunistas brasileiros, a professora Anita Leocadia Prestes oferece agora ao público uma nova e original abordagem do papel desempenhado por Luiz Carlos Prestes na elaboração e na aplicação da política do PCB no pedíodo em que se inicia em 1945, quando Prestes assume na prática a secretaria-geral do Partido, e se estende até a crise de 1956/1957, que abalou profundamente o movimento comunista internacional. A questão central levantada no livro reside no esclarecimento da redação estabelecida entre o PCB - partido fundado em 1922 e com atuação significativa em vários momentos da história contemporânea do Brasil - e Luiz Carlos Prestes, proclamado o "Cavaleiro da Esperança" ainda nos anos 20 e aceito no PCB apenas em 1934, com grande relutância de seus dirigentes, temerosos de seu imenso prestígio popular. Diante do leitor surge um fenômeno singular: uma liderança popular de grande expressão é incorporada ao Partido Comunista e torna-se não só seu dirigente máximo como a principal e inquestionável referência do comunismo no país. Quais seriam as consequências de tal fenômeno para a história do PCB? Como teria sido a história desse partido sem a presença de Prestes? Como Prestes influiu no Partido e como este agiu sobre o líder, cuja formação não resultara de militância nas fileiras partidárias? Eis algumas das questões presentes no texto de Anita Leocadia Prestes.


sexta-feira, 28 de maio de 2010

O que queremos para nossa agricultura

JOÃO PEDRO STEDILE

As transformações do mundo nas últimas décadas fizeram com que o centro de acumulação do capital fosse para a esfera financeira e para as corporações transnacionais. Isso trouxe graves consequências e promoveu um enfrentamento crescente entre dois modelos de produção na agricultura.
O modelo dos capitalistas é uma aliança entre grandes proprietários de terras, empresas transnacionais e sistema financeiro. As empresas fornecem insumos, compram os produtos, controlam o mercado e fixam preços dos produtos agrícolas.
Os grandes proprietários (cerca de apenas 40 mil, que possuem mais de mil hectares) entram com a terra, destruindo a biodiversidade e superexplorando os trabalhadores, para repartir a taxa de lucro da agricultura das empresas.
Esse modelo foi autodenominado de agronegócio. Adota a monocultura, para ampliar a escala de produção, com o uso intensivo de venenos e maquinaria pesada.
Essa matriz tecnológica provoca um desequilíbrio climático e ambiental para obter lucros e fazer negócios a quaisquer custos.
O próprio sindicato das empresas de defensivos agrícolas anunciou exultante que, na safra passada, utilizou 1 bilhão de litros de agrotóxicos (cinco litros por habitante). Somos o maior consumidor mundial de venenos.
Isso degrada o solo, afeta o lençol freático, contamina até as chuvas, além dos alimentos.
A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e o Instituto Nacional do Câncer têm alertado que o aumento de câncer está ligado ao crescente uso de agrotóxicos.
Os ricos e a classe média alta compram produtos orgânicos, mais caros. No entanto, o povo está à mercê dos produtos contaminados.
O agronegócio ainda aumenta a concentração da terra e da produção, pela necessidade de ganhar escala no plantio. O Censo de 2006 aponta que a concentração da terra é maior do que na década de 1920.
Estamos fazendo o caminho inverso ao da reforma agrária. Cerca de 80% das nossas melhores terras são usadas para produzir para exportação três produtos: soja, milho e cana. Além disso, o agronegócio é cada vez mais dependente do financiamento público.
Para produzir um valor anual de R$ 120 bilhões, esse modelo retira crédito nos bancos públicos (da poupança recolhida nos depósitos à vista), ao redor de R$ 90 bilhões.
Ou seja, é a população brasileira que financia o agronegócio, ao contrário da propaganda mentirosa que só exalta seus "benefícios".
Os movimentos sociais, junto com ambientalistas, igrejas e cientistas, temos alertado sobre esses problemas. Propomos outro modelo de agricultura, que priorize a produção diversificada, máquinas agrícolas adequadas a pequenas unidades, agroindústrias cooperativadas e técnicas agroecológicas.
Em vez de priorizar o lucro de grandes empresas e fazendeiros, temos que respeitar o equilíbrio do ambiente, produzir alimentos sadios, fortalecer o mercado interno, aproximando produtores e consumidores. Nossa proposta de reforma agrária popular é a adoção desse modelo, e não apenas distribuir lotes para os sem-terra.
O que está em jogo é a organização da agricultura brasileira.
O povo não tem dinheiro para financiar candidatos, mas o agronegócio anunciou a aplicação de R$ 800 milhões para eleger candidatos. Mas temos o voto e poder de mobilização. É preciso, nesse período eleitoral, cobrar dos candidatos posições claras. Os nossos recursos naturais devem ser utilizados em benefício do povo brasileiro.
A sociedade brasileira, cedo ou tarde, deverá decidir se o país continuará produzindo alimentos com venenos, porque dão lucros, ou se dará prioridade a alimentos saudáveis e à preservação ambiental.
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JOÃO PEDRO STEDILE , 56, economista, é integrante da coordenação nacional do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e da Via Campesina Brasil.


Fonte: Folha de São Paulo, 28/05/2010.

Projeto Brasil África

Encontra-se disponível no site do IEB (Instituto de Estudos Brasileiros) o banco de dados Brasil África, contendo informações sobre livros e manuscritos que tratam do continente africano entre os séc. XVI e XIX. Todo o material estará digitalizado até o final deste ano.
O Brasil África é um projeto que está sendo desenvolvido no IEB desde 2009 com o financiamento da FAPESP, cujo objetivo central é disponibilizar ao público livros e documentos raros do IEB relativos ao continente africano no período que se estende do século XVI ao XIX.
Trata-se de uma base de dados contendo informações detalhadas sobre cada documento selecionado, tais como o nome do autor, da obra, a data, e o local da publicação. A base trás também um breve resumo de cada documento indicado. A finalidade da base é facilitar o acesso do pesquisador a inúmeras fontes relacionadas a temas diversos relativos ao continente africano, tais como viagens, escravidão, comércio, história, geografia, medicina, religião e religiosidade, entre outros assuntos.

http://www.ieb.usp.br/online/telaSubCateg.asp?id=23

domingo, 23 de maio de 2010

"Há que retirar as FARC e o ELN da lista de terroristas se se quiser avançar o processo de paz"

por Piedad Cordoba [*]

Em conferência de imprensa realizada em Madrid a 15 de Maio, a senadora colombiana Piedad Cordoba assinalou os seguintes pontos:

1. VISIBILIZAR A REALIDADE E O DRAMA NA COLÔMBIA

"Visibilizar... há a necessidade de que se conheça (...) Governos como o da Espanha ratificam o seu apoio à guerra na Colômbia (...) partem do desconhecimento de que na Colômbia existe um conflito social e armado".

"O argumento poderoso que esgrimem os Estados Unidos e o seu subalterno na Colômbia para justificar a presença de sete bases militares (...) é supostamente "combater o terrorismo e o narcotráfico".

2. O CONCEITO DE "TERRORISMO"

"(...) O conceito de "terrorismo" deveria ser um conceito jurídico e não um conceito político que se move ao sabor das mesmas bases militares, ou seja, ao sabor dos interesses que têm governos como o dos Estados Unidos"

"Preocupa-nos enormemente que a vice-presidenta do país (EUA) haja declarado que continuam com a sua política de apoio à "Seguridad Democrática~", com a sua política de poio à "luta contra o narcotráfico e contra o terrorismo" e de maneira muito categórica de combate contra as FARC. Preocupa-nos enormemente porque isto é uma carta de corso para um governo que expira e que, de qualquer forma, o facto de Uribe ir embora não significa que a política que traçou vá com ele".

3. CONTINUIDADE DA POLÍTICA DE EXTERMÍNIO NO GOVERNO QUE VEM

"(...) o facto de Uribe ir embora não significa que a política que traçou vá com ele... Muito pelo contrário... serve de argumento para que muitos candidatos presidenciais, num clima eleitoral muito complexo, em lugar de propor a defesa da soberania nacional, da soberania popular, firmem-se nestes conceitos de países como estes (EUA) para continuar uma política degradante (...)"

"E valeria a pensa mencionar resultados das 'bondades' da política de seguridad democrática que o governo nacional tanto exibe:

Cinco mil assassinatos a sangue frio que hoje são conhecidos eufemisticamente como "falsos positivos" e que foram em grande medida dirigidos por quem é hoje candidato presidencial, que era então ministro da guerra do país"

Em segundo lugar, mencionar um número escandaloso que ao invés de diminuir aumenta: 4 milhões de refugiados internos, o que nos coloca no primeiro lugar da América Latina e em segundo lugar, depois do Sudão, a nível mundial (de deslocamento forçado) (...) situações que a imprensa apenas começa a evidenciar".

4. FORNOS CREMATÓRIOS

"Com uma profunda tristeza temos que reconhecer que factos muito repugnantes que foram recusados por toda a humanidade hoje têm lugar na Colômbia, como é o caso dos fornos crematórios. Não só na zona de Catatumbo como também em regiões como o departamento de Antióquia" (minuto 05:16)

"Muitas das vítimas não só foram cremadas depois de assassinadas como também muitas da vítimas foram queimadas vivas para pô-las como escarmento daqueles que, como camponeses, recusavam a presença dos paramilitares e recusavam-se a delatar o que muitas vezes não sabiam (...) Este é um dos resultados da política da Seguridad Democrática..."

5. A UE APOIA O EXTERMÍNIO E OS DESAPARECIMENTOS

"Todo isto é muito importante que seja dito aqui na Espanha, precisamente hoje onde acaba de concluir um fórum de jornalismo no país e onde os que considerávamos que poderiam ser nossos aliados para acabar com factos desta natureza não só apoiam sem qualquer discussão o TLC entre a UE e a Colômbia como além disso continuam a apoiar uma política de guerra, de extermínio, de desaparecimentos".

6. DESAPARECIDOS: 250 MIL

"Um número muito recente revela que a nossa recusa às bases militares no país tem razão de ser... em números como este: O CODHES revela que o número de desaparecidos nos últimos três anos é de 38.255, que se somam ao total de 100 mil desaparecidos nos últimos dez anos... verificando-se um aumento impressionante (...) O promotor anterior revelou, 15 dias antes de terminar o seu mandato, um número que foi escalafriante e contudo passou desapercebido... 250 mil desaparecidos na Colômbia nos últimos anos... Ou seja, nós superámos há muito esses números que com tanto pavor deram calafrios a muitas pessoas no mundo como o que ocorreu no Chile e na Argentina, mas que superámos de maneira espantosa".

7. FOSSAS COMUNS DANTESCAS

"(...) Em cerca de duas semanas vamos receber os restos da maior fossa comum (...) a da Meta de la Sierra de la Macarena, com 2000 cadáveres nessa fossa comum, mas ao lado dessa fossa comum está a do Guaviare que segundo informações é inclusive muito maior que esta, e que está no território de uma base militar do exército na Colômbia (...) ou seja, pode-se perguntar: "O que é o que realmente estão a apoiar estes governos" Que percepção têm do que realmente está a ocorrer no país" (minuto 08:29)

8. DETENÇÕES ARBITRÁRIAS, PRESOS POLÍTICOS

"Para não falar da quantidade de detenções arbitrárias e maciças que se estão a verificar permanentemente na Colômbia; da quantidade de processados aos quais não se lhe tem em conta o processo devido, que permanecem anos e anos nos cárceres... Os senhores devem conhecer a detenção do professor Miguel Ángela Beltrán, sequestrado em outro país, e que até à data não teve um julgamento que lhe permita defender-se realmente, pois é condenado de antemão e o que se faz é um arremedo de julgamento, mas não há um julgamento que lhe dê a garantia ao devido processo" (minuto 09:07)

"Os advogados que enfrentam o tema dos direitos humanos não têm mãos a medir... é tanta a gente detida arbitrariamente que muitas pessoas não têm apoio para a sua defesa (...) entre outras razões porque o advogado que se atreve a defender qualquer destas pessoas detidas é acusado também de ser 'terrorista' e de pertencer ao ELN ou às FARC... ou seja, é um quadro realmente horripilante o que nós vivemos".

9. O DAS: ESPIONAGEM, DESPRESTÍGIO, MONTAGENS, AUTO-ATENTADOS, ASSASSINATOS

"O escândalo do DAS é de uma magnitude tão impressionante que aquilo que fez Nixon foi um jogo infantil em comparação com o que se passou na Colômbia (...) Toda uma estratégia criminosa a partir do Estado, a partir dos serviços de inteligência... Não só para fazer seguimentos a governos como o do Equador, Venezuela, Cuba (...) Como também toda uma estratégia para montar acusações, para fazer marcações... para rebaixar a condição de defensor de direitos humanos (...) Um estratégia absolutamente perversa que, há que dize-lo, deu muitíssimos resultados... e digo isto como prolegómeno ao das bases militares (...) Foi-se gerando uma matriz de opinião, foi-se preparando a opinião pública" (minuto 10;37)

E mais adiante na intervenção de Piedad Córdoba:

"seguimento da embaixada de Cuba... da embaixada da Venezuela..."
"a DEA pagava a sede onde se faziam os seguimentos".

10. COMPUTADOR MÁGICO QUE GERA "PROVAS" (minuto 12:00)

"Eu pessoalmente não pude saber qual é a marca do computador de Reyes, apesar de ter de me defender perante o supremo tribunal (...) É como a lâmpada de Aladino, cada vez que o senhor a fricciona sai a mensagem que o senhor precisa, na medida, no tamanho e na estatura da pessoa que o senhor pretenda incriminar".

"É o computador mais estranho do mundo: tem dentro de si toda a esquerda do universo, não só da Colômbia como também do universo (...) Se friccionarem um pouquinho esta semana vão sair estudantes de Porto Rico..."

"O preocupante disto, e digo-o em tom satírico, é que nenhum de nós conhece o computador... ou seja, nós que estamos no processo perante a o supremo tribunal, e que exigimos que o tragam par sabermos o que é realmente o que apareceu no computador... Ninguém sabe onde está o computador... O seja, o computador é invisível, aparece unicamente quando se necessita uma mensagem (...) mas isso sim, conseguiu fazer realmente dano frente ao respeito pelo processo devido (...) Fez muito dano em tudo o que significa direito opinar livremente... um dos maiores danos que se fizeram à sociedade colombiana, a partir de uma instância da inteligência do Estado (o DAS)".

"A partir de uma instância da inteligência do Estado... um dos membros do DAS revela de que maneira se fez o seguimento à embaixada de Cuba, de que forma se fez o seguimento da embaixada da Venezuela (...) Declara em testemunho juramentado perante a promotoria geral da nação que o DEA pagava, através da embaixada dos EUA, a casa, a sede a partir de onde se faziam todos os seguimentos... ou seja coisas que se podia prever, mas que muitas vezes as pessoas crêem que isto faz parte da imaginação daqueles como nós que estamos na oposição, pois hoje pode-se comprovar de ciência certa de que realmente existiram (...) como se fez toda uma estratégia de guerra suja ou propaganda negra".

11. MISÉRIA, EXCLUSÃO E MENTIRAS

"(...) Muito tempo desenhando toda uma imagem que deu lugar a que a opinião pública considerasse que os inimigos da Colômbia somos nós que estamos na oposição, nós que assinalamos que na Colômbia há um regime absolutamente injusto, excludente, que permite que haja 18 milhões de pobres, 7 milhões de indigentes, que haja gente que não come (...) Porque na Colômbia se chove são as FARC e se faz sol é Chávez, ou se faz sol são as FARC e se chove é Chávez... ou seja, não há nada que se passe na Colômbia que não lancem a culpa a Chávez ou às FARC (...)

"Não há coisa mais surrealista do que dizer que as FARC estão totalmente derrotadas e pretender que todos os dias apanham o chefe financeiro das FARC... ou seja, esse movimento tem algo como 700 chefes financeiros! ... Não há coisa mais surrealista que dizer que as FARC estão totalmente derrotadas e ao mesmo tempo o ministro da defesa acabar de dizer que as FARC têm totalmente sob controle a região do Cauca, no Sul do país (...) Então eles próprios geraram todo este cenário para poderem instalar as bases militares (...) Toda esta política foi a preparação para que as pessoas pudessem tragar sem qualquer explicação a instalação de sete bases militares".

12. PARAMILITARISMO CONTRA HONDURAS E VENEZUELA

"A instalação de sete ou mais bases militares teve como pano de fundo gerar cenários que tornaram possível que o país considerasse que era válido invadir o território equatoriano, que era válido promover o paramilitarismo (...)"

"Fazer toda uma Estratégia de Paramilitarismo que revelou que se pretendeu efectuar, a partir da Colômbia através dos paramilitares, o golpe e o assassinato contra o presidente Chávez (...) que revelou além disso o exército paramilitar que se enviou a Honduras para garantir depois de dado o golpe de Estado que se mantivesse no terror a população hondurenha... Os senhores recordam que a população hondurenha começou a sair às ruas, a participar... e de um momento para outro foi lançada para trás... foi porque chegou um exército de paramilitares a partir da Colômbia"

"Chegou a Honduras um exército paramilitar da Colômbia"

"Quando se conseguiu o controle e se conseguiu consolidar o golpe de Estado nas Honduras, e que se permitiu além disso a eleição do actual presidente golpista, o senhor Lobo... o sr. Santos diz: nós ganhámos uma batalha mas não ganhámos a guerra, porque a guerra significa derrubar Chávez".

13. SETE BASES MILITARES DOS EUA NA COLÔMBIA: EXTRATERRITORIALIDADE DA GUERRA CONTRA A AMÉRICA LATINA

"Nunca se deu o debate acerca das bases... instaladas sob pretexto de combater o narcotráfico" (...) e aqui faça um pequeno desvio: Combater qual narcotráfico?"

"A senadora Gloria Ramírez, do partido comunista, dá conta da localização de cada uma das bases num debate que inclusive está na Internet (...)"

"Cada uma destas bases está situada onde há projectos estratégicos importantes, recursos estratégicos, onde há recursos naturais importantes (...) As bases não têm nada a ver com a luta contra o narcotráfico... muito pelo contrário: O conflito colombiano é uma elemento de extraterritorialidade da guerra frente a América Latina e frente a outros países do mundo... Por isso o não reconhecimento de que na Colômbia existe um conflito social e armado não se destina simplesmente a considerar as FARC e o ELN são um grupo de facínoras e sim que obviamente por trás disso (o não reconhecimento) há toda uma pretensão com carácter de dominação política, militar, hegemónica, para expandir a guerra rumo à América Latina..."

"Contravenção à soberania nacional (...) A lei existe mas não se aplica: isso tem sido muito recorrente durante os oito anos da ditadura constitucional de Uribe, ou seja, o conceito prévio do Conselho de Estado era um requisito para a instalação da bases militares (Não foi consultado) (...) converter o território num território de ocupação estrangeira"

"O tema das bases militares é supremamente indignante porque tem a ver não só com soberania popular como também com a soberania jurídica (...) há algo semelhante com a perda de soberania que se dá no tema da extradição (...) nós renunciámos à nossa soberania jurídica para aplicar uma jurisdição que está totalmente relacionada com os interesses hegemónicos em termos do que tem a ver com a soberania dos recursos, com a nova forma de inteligência que se dá nos EUA partir do 11 de Setembro quando tomam a decisão de levantar as 800 bases militares no mundo... Mas sobretudo pela capacidade que tem um porta-avião de transportar quantidades de urânio sem ter de abastecer combustível, a capacidade fazer inteligência a partir dessas bases militares (...) é a intenção da instalação das bases militares, que foram além disso presenteadas (...) um presidente que disse aos Estados Unidos... querem 7, querem 14, aceitamos 15 (...) quantas querem?"

14. EXTRADIÇÃO PARA SILENCIAR A VERDADE

"Quando extraditaram os 14 chefes paramilitares, nós que nos opúnhamos opunham categoricamente à Lei de Justiça e Paz, opusemo-nos também à sua extradição, porque esses chefes paramilitares haviam denunciado a participação do Estado no narcotráfico e delitos de lesa humanidade, e ao que significa uma paramilitarização total do Estado colombiano..."

15. MASS-MEDIA CÚMPLICES

"Toda uma estratégia a partir dos meios de comunicação dos quais haveria que falar: jamais os meios de comunicação abriram sequer um debate frente à pertinência da instalação ou não das bases militares em território colombiano, da ocupação militar da Colômbia".

"A política de Seguridad Democrática é um fracasso total... ninguém pode dizer que a política tem que (...) vestir de guerrilheiros os camponeses, assassiná-los e mostrá-los como "positivos" do exército!... Por isso chamam-se "falsos positivos" (...) para que os militares recebam o dinheiro que a cooperação internacional dá à Colômbia para 'combater o terrorismo' ".

"Pergunto-me: o terrorismo? mas qual?... o que fazem as pessoas que estão a morrer de fome, que não têm emprego, que não podem entrar na universidade, que não podem estudar?... Ou terrorismo é o que faz o Estado ao fazer esse tipo de alianças e de instalação de bases militares no país?"

"Não foi ganha a 'luta contra o narcotráfico'... A comunidade mundial tem que começar a olhar de que maneira procuramos uma saída com ela para que se acabe o narcotráfico ou legalizá-lo em menos tempo do que canta um galo".

16. "AS FARC E O ELN TÊM DE SER RETIRADOS DA LISTA DE TERRORISTAS"

"Creio que uma das decisões que temos de tomar (e certamente isto vai ser tomado como base para a investigação que faz o Sr. Procurador na Colômbia) é que as FARC e o ELN têm que ser retirados da lista de "terroristas" para que possamos avançar rumo à discussão da saída política e negociada do conflito... Nós não podemos aceitar per se que "o terrorismo" na Colômbia se designe a um grupo de colombianas e colombianos que se levantaram em armas porque na Colômbia não há possibilidade nem para o debate nem para a discussão..."

17. A FALÁCIA DA "LUTA CONTRA O NARCOTRÁFICO" E A OFENSA À SOBERANIA DA COLÕMBIA

"Algo que para nós é doloroso e merece repúdio total é que haja não só sete como quem sabe quantas bases militares com o argumento de fazer o que não somos capazes de fazer e que eles (Estados Unidos) não vão fazer jamais (...) Eles (EUA) acreditam que põem o nariz e nós pomos a cocaína... ou seja, por onde entra nos Estados Unidos? ... Parece que os guardas de fronteira por lá são invisíveis, ou quando entra a cocaína eles desmaiam ou eu não sei o que se passa... Mas: as corrupção não será senão deste lado e lá não haverá corrupção?! (...) Poderíamos nós igualmente estabelecer uma base militar em Manhattan ou em Miami (...)?"

18. A ESPANHA ALIMENTA A GUERRA NA COLÔMBIA PARA DEFENDER OS INTERESSES ECONÓMICOS DE MULTINACIONAIS

"Um país como a Espanha amanha pode aprovar uma lei como a do Arizona e isso é uma derrota para a humanidade (...) Como nos dói, nos ofende, que a Espanha possa dizer que tem tantos interesses comerciais e económicos que vale a pena continuar a apoiar a "luta contra o terrorismo que se exprime nas FARC" ... e que isto se faça pura e simplesmente para a defesa dos seus interesses económicos e comerciais, dos interesses das multinacionais (...) chegará o dia em que algum dos seus interesses saia ... que saiam perdendo lucros porque o povo colombiano cada vez mais se levanta contra esta opressão e porque cada vez mais somos conscientes de que somos unidos na América Latina(...)"

19. OS MARINES USA TÊM IMUNIDADE PARA VIOLAR, PARA COMETER QUALQUER CRIME

"Há que estar contra as bases militares porque além disso nem sequer lhes podemos aplicar a jurisdição penal colombiana (aos marines), eles podem violar as nossas meninas (...) e não se passa absolutamente nada..."

20. "PROCURAR QUE A EUROPA RETIRE DA LISTA DE TERRORISTAS OS NOSSOS IRMÃOS COLOMBIANOS QUE SE LEVANTARAM EM ARMAS"(...)

"(...) A busca da construção de cenários da negociação, e é muito importante a UNASUR, e por isso vamos apelar a estas novas instituições da democracia da América Latina para procurar uma saída..."

"Procurar que a Europa retire da lista de terroristas nossos irmãos colombianos que se levantaram em armas porque para a sociedade colombiana é muito mais importante de uma caixa forte, porque para muitos sectores da sociedade do mundo é muito mais importante cuidar de uma caixa forte do que da vida de um ser humano".

"A presença das bases militares na Colômbia é um desrespeito à dignidade, não só como colombianas ou como colombianos, mas também como seres humanos".


17/Maio/2010

[*] Senadora colombiana, do Partido Liberal. Seu sítio web: http://www.piedadcordoba.net/

O original encontra-se em http://www.resumenlatinoamericano.org/ , Nº 2203 (as deficiências do texto devem-se ao próprio original).

Esta transcrição encontra-se em http://resistir.info/ .

sexta-feira, 21 de maio de 2010

SAIBA O QUE É O CAPITALISMO

Atílio Borón*

O capitalismo tem legiões de apologistas. Muitos o fazem de boa fé, produto de sua ignorância e pelo fato como dizia Marx, “o sistema é opaco e sua natureza exploradora e predatória não fica evidente, perante os olhos de homens e mulheres do mundo” Outros o defendem porque são seus grandes beneficiários e arregimentam enormes fortunas graças a suas injustiças e iniqüidades. Há também outros (gurus, financistas, opinólogos, jornalistas especializados, acadêmicos bem pensantes e diversos representantes do pensamento único) que conhecem perfeitamente o que o sistema impõe em termos de custos sociais, degradação humana e do meio ambiente, mas como estão muito bem remunerados procuram omitir essas questões em seus relatos. Eles sabem muito bem, que a “batalha de idéias” que foi convocada por Fidel Castro é algo que pode ser perigoso para as ideologias que no intimo defendem e por isso não se empenham em denunciar as mazelas do capitalismo.

Para contraditar a proliferação de versões idílicas sobre o capitalismo e de sua capacidade de promover o bem estar geral examinemos alguns dados obtidos de documentos oficiais das ONU. Eles são sumamente didáticos quando se lê, principalmente em relação à crise atual – indicando que a solução dos problemas do capitalismo se obtém com mais capitalismo; ou que o G20, o FMI, a OMC e o BIRD, arrependidos dos erros do passado – irão efetivamente resolver os grandes problemas que afetam a humanidade. Todas essas instituições são incorrigíveis e irreformáveis e qualquer esperança de mudanças em seus comportamentos não é nada mais do que pura ilusão. Seguem propondo o mesmo, somente que o discurso é diferente e adotando uma estratégia de “relações públicas” desenhada para ocultar suas verdadeiras intenções. Quem tenha dúvidas que constate o que estão propondo para “solucionar” a crise na Grécia: as mesmas receitas que aplicaram e seguem aplicando na América Latina e África desde os anos oitenta do século passado.

Em continuação, podemos citar alguns dados com suas respectivas fontes recentemente sistematizados pelo Programa Internacional de Estudos Comparativos sobre a Pobreza localizado na Universidade de Bergen, Noruega, que fez um grande esforço para, desde uma perspectiva crítica, combater o discurso oficial sobre a pobreza elaborado desde mais de trinta anos pelo Banco Mundial e reproduzido incansavelmente pelos meios de comunicação, autoridades governamentais, acadêmicos e “especialistas” variados.

População mundial: 6,8 bilhões de habitantes em 2009.

1,02 bilhão de pessoas são desnutridos crônicos (FAO,2009);

2 bilhões de pessoas não tem acesso a medicamentos (http://www.fic.nih.gov/);

884 milhões de pessoas não têm acesso à água potável (OMS/UNICEF 2008);

925 milhões de pessoas são “sem teto” ou residem em moradias precárias (ONU Habitat 2003);

1,6 bilhões de pessoas não tem acesso à energia elétrica (ONU Habitat, Urban Energy);

2,5 bilhões de pessoas não são beneficiados por sistemas de saneamento, drenagens ou privadas domiciliares (OMS/UNICEF 2008);

774 milhões de adultos são analfabetos ( http://www.uis.unesco.org/);

18 milhões de mortes por ano devido à pobreza, a maioria de crianças menores do que cinco anos de idade (OMS);

218 milhões de crianças entre 5 e 17 anos de idade, trabalham em condições de escravidão com tarefas perigosas ou humilhantes, como soldados da ativa atuando em guerras e/ou conflitos civis, na prostituição infantil, como serventes, em trabalhos insalubres na agricultura, na construção civil ou industria têxtil (OIT: “La eliminación Del trabajo infantil, un objetivo a nuestro alcance” 2006);

Entre 1988 e 2002, os 25% mais pobres da população mundial reduziram sua participação no produto interno bruto mundial (PIB mundial) de 1,16% para 0,92%; enquanto os opulentos 10% mais ricos acrescentaram fortunas em seus bens pessoais passando a dispor de 64% para 71,1% da riqueza mundial. O enriquecimento de uns poucos tem como seu reverso o empobrecimento de muitos;

Somente esses 6,4% de aumento da riqueza dos mais ricos seriam suficientes para duplicar a renda de 70% da população mundial, salvando muitas vidas e reduzindo os sofrimentos dos mais pobres. Entendam bem: tal coisa somente seria obtida se houvesse possibilidade de redistribuir o enriquecimento adicional produzido entre 1988 e 2002 dos 10% mais ricos da população mundial, deixando ainda intactas suas exorbitantes fortunas. Mas nem isso passa a ser aceitável pelas classes dominantes do capitalismo mundial.

CONCLUSÃO

Não se pode combater a pobreza (nem erradicá-la) adotando-se medidas capitalistas. Isso porque o sistema obedece a uma lógica implacável centrada na obtenção do lucro, o que concentra a riqueza e aumenta incessantemente a pobreza e as desigualdades sócio-econômicas a nível mundial.

Depois de cinco séculos de existência é isto e somente isto que o capitalismo tem para oferecer ao mundo! Que esperamos então para mudar o sistema? Se a humanidade tem futuro, esse será claramente socialista! Com o capitalismo, não haverá futuro para ninguém! Nem para os ricos, nem para os pobres! A sentença de Friedrich Engels e também de Rosa Luxemburg: “socialismo ou barbárie” é hoje mais atual do que nunca. Nenhuma sociedade sobrevive quando seu impulso vital reside na busca incessante do lucro e seu motor é a ganância, a usura. Mais cedo ou mais tarde provocará a desintegração da vida social, a destruição do meio ambiente, a decadência política e a crise moral. Todavia estamos ainda em tempo para reverter esse quadro – então vamos à luta!

*Atilio Borón, doutor em Ciência Política pela Harvard University, é professor titular de Filosofia Política da Universidade de Buenos Aires, Argentina, e ex-secretário-executivo do Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO).

http://www.atilioboron.com/

Tradução: Jacob David Blinder

Rebelión ha publicado este artículo con el permiso del autor mediante una licencia de Creative Commons, respetando su libertad para publicarlo en otras fuentes.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Golfo do México


Como deve ser um novo Plano Nacional de Educação?

Otaviano Helene e Lighia B. Horodynski-Matsushigue
Qui, 13 de maio de 2010 14:52

A história como guia

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, sancionada em 20 de dezembro de 1996, exigia que o poder executivo encaminhasse ao Congresso Nacional, em um prazo de um ano, um projeto de Plano Nacional de Educação (PNE). Esse prazo se esgotou sem que o governo federal tivesse cumprido com sua obrigação legal.

Tendo em vista a exigência da LDB e a história de lutas da sociedade brasileira em defesa da educação pública, muitas entidades da sociedade civil, organizadas por meio do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública e de dois Congressos Nacionais de Educação, elaboraram um PNE e prepararam-se para participar ativamente das discussões que ocorreriam em âmbito nacional. Esse PNE da sociedade brasileira foi apresentado à Câmara dos Deputados no início de 1998. O projeto do executivo foi apresentado um dia depois.[1] Assim, o Congresso Nacional passou a ter em mãos dois projetos de PNE.

Os dois projetos foram debatidos pelo Congresso que acabou por aprovar uma versão que continha vários itens extraídos da proposta apresentada pelas entidades da sociedade brasileira, em especial a previsão de recursos financeiros, coisa que inexistia na versão do poder executivo. Embora os cálculos apresentados pelo PNE da sociedade brasileira estimassem em 10% do PIB os recursos necessários para viabilizar uma real recuperação da educação pública nacional e, em conseqüência, a possibilidade de que seriam cumpridas as metas estabelecidas, o Congresso nacional aprovou um valor menor, 7% do PIB[2]. Apesar desse rebaixamento, a definição dos recursos necessários, tendo como base de cálculo o PIB nacional, ou seja, uma medida da efetiva capacidade de investimento de cada nação, foi considerada uma vitória, ainda que parcial. Além disso, o valor aprovado continua sendo cerca de duas vezes superior aos valores historicamente investidos em educação pública no país.

Os 10% do PIB destinados à educação eram uma espécie de sonho para os educadores e todos aqueles interessados na promoção do desenvolvimento social, cultural e econômico do país: em uma década teríamos mudado completamente o caótico, injusto e ineficiente sistema educacional brasileiro. O valor aprovado pelo Congresso Nacional, se não era um sonho, pelo menos nos livraria da crônica falta de recursos e deixava ainda alguma margem para perspectivas otimistas.

Entretanto e infelizmente, mesmo esse percentual reduzido foi vetado pelo então presidente Fernando Henrique. Assim, o PNE começou mal: havia metas a serem cumpridas, mas não havia a previsão de recursos para tal. De um plano, transformou-se em uma ilusão: como satisfazer as metas sem os necessários recursos?

Assim que o PNE foi promulgado, iniciou-se uma campanha pela derrubada do veto aos recursos financeiros. Essa campanha fortaleceu‑se quando o programa apresentado pelo presidente Lula, em sua primeira campanha presidencial vitoriosa, previa o estudo da derrubada daquele veto. Embora a redação fosse essa - um estudo da derrubada do veto -, muitos otimistas a liam como um compromisso explícito com a derrubada do veto. Mas isso era ilusão: não houve iniciativas sérias nem do poder executivo, nem do parlamento, para derrubar o veto, que foi mantido.

Assim, inexistindo qualquer outra previsão de recursos para viabilizar o desenvolvimento educacional, qualquer ilusão desaparecera: se o sonho dos 10% do PIB destinados à educação desapareceu quando o Congresso Nacional reduziu o valor para 7%, o veto do governo FHC nos trouxe de volta o pesadelo de sempre.

Metas não atingidas

O PNE aprovado e ainda em vigor contém várias metas que deveriam ser atingidas em 10 anos, a se completarem no início do próximo ano. Entre elas estava o crescimento significativo da educação infantil (crianças de até 6 anos de idade), redução das taxas de repetência no ensino básico (fundamental e médio), a efetiva universalização do ensino fundamental (ou seja, a totalidade das crianças concluindo esse nível de ensino), a garantia de que a totalidade dos jovens pelo menos iniciasse o ensino médio e, quanto ao ensino superior, de que pelo menos 40% dos estudantes estivessem matriculados em instituições públicas. Havia metas também relativas ao combate do analfabetismo (que deveria ser erradicado até 2011), à formação de professores, à infra-estrutura material das escolas, entre muitas outras. É claro que para essas metas serem atingidas seriam necessários recursos; com o veto e sem nenhuma outra previsão de recursos, as metas, evidentemente, não seriam atingidas.

De fato, não foram. Ou, até pior: muitos indicadores do desempenho educacional na década de vigência do PNE simplesmente pioraram[3]. As taxas de conclusão dos ensinos fundamental e médio, que vinham crescendo, ainda que aos trancos e barrancos, a uma razão de cerca de 5% ao ano desde o início do século passado, estagnaram por volta do ano 2000, iniciando aí uma trajetória descendente.[4] Assim, não só as metas do PNE não foram cumpridas como nos distanciamos ainda mais de muitas delas. A década de 2000 marcou um dos dois piores períodos de retração ou estagnação da educação brasileira dos últimos 100 anos.[5]

Por que isso?

Por que isso aconteceu? Primeira razão: pela simples falta de recursos. Não havendo recursos é absolutamente impossível atacar o problema educacional. Pode-se aumentar o número de matrículas sem que sejam fornecidas às escolas e aos educadores as necessárias condições de atendimento (laboratórios, bibliotecas, aulas de reforço, cargas de trabalho toleráveis, salários adequados etc), que parece ter sido o que ocorreu ao longo da década de 1990, período no qual houve aumento dos indicadores quantitativos da educação. Mas esse aumento das matrículas, sem o necessário aparelhamento do sistema para atender adequadamente a quantidades maiores de estudantes, leva a uma piora dos indicadores qualitativos, o que também ocorreu ao longo da década de 1990, ilustrando o óbvio: apenas registrar matrículas não educa.

E mesmo essas práticas de apenas registrar matrículas têm um limite: o ponto em que não ir à escola é melhor do que ir. Quando esse limite é atingido, os indicadores quantitativos estagnam-se. E parece que isso realmente ocorreu por volta do ano 2000, quando as taxas de conclusão dos ensinos fundamental e médio começaram a se reduzir.

Segunda razão: não houve, realmente, um compromisso nacional com a educação escolar. Nem o executivo federal, nem o Congresso tentaram derrubar o veto aos recursos. Os outros entes governamentais (estados e municípios) não levaram a sério o PNE e nada fizeram para que fosse cumprido.

Se havia metas, o Congresso e o governo federal deveriam regulamentá‑las por legislações ou normas complementares. Não o fizeram. Se havia metas finais, deveríamos cuidar das metas parciais que, se não cumpridas, comprometeriam o cumprimento das metas finais. Nada se fez. Se havia metas nacionais a serem cumpridas, elas deveriam ser cumpridas em cada estado e município, os principais responsáveis pelo fornecimento da educação básica. Mas não foram. Governadores, prefeitos e secretários de educação simplesmente desconsideraram suas responsabilidades para com as metas e ignoraram a existência do PNE. Nenhum estado, nenhum município cumpriu nenhuma das metas que estavam sob sua responsabilidade.

Sem definir recursos e as obrigações financeiras e educacionais dos vários entes federativos, sem definir como as pessoas farão para garantir os direitos à educação que o PNE criou e a quem recorrer caso eles não sejam satisfeitos, sem regulamentar como as várias metas serão cumpridas e como, e quem, fiscalizará esse cumprimento e, ainda, prever punições pelo não cumprimento, o PNE é alguma coisa entre a ilusão e a enganação.

O que fazer?

A vigência do atual PNE se encerra em poucos meses e o Congresso Nacional deverá elaborar um novo. A pergunta adequada neste momento é: como deve ser e o que deve conter o próximo PNE para que não seja, como o atual, uma mera fantasia?

As respostas para essas questões podem ser encontradas nas origens da falência do atual PNE. Em primeiro lugar, deverá haver previsões de recursos suficientes para cumprir as metas estabelecidas. É ilusão (ou enganação) fazer uma lista de tarefas a serem cumpridas sem indicar claramente de onde virão os meios necessários para cumpri-las. Sabe-se, com ótima precisão, qual o investimento econômico necessário para se manter uma criança ou jovem em uma escola com nível de qualidade aceitável. Sabe-se quais os recursos necessários para uma escola ter condições de atender adequadamente seus estudantes e quanto é necessário para remunerar de forma adequada os profissionais da educação. Assim, o PNE deve tanto definir o percentual do PIB a ser destinado à educação pública, algo em torno de 10%, como qual será a participação de cada ente federativo (união, estados e municípios) na composição dos recursos.

Um novo PNE deve, também, estabelecer quais são as responsabilidades da União, dos estados e dos municípios, pois é inútil definir metas sem estabelecer quem deve cumpri‑las. Além disso, devemos atribuir responsabilidades e definir as conseqüências e punições para aqueles órgãos ou entes que não cumprirem sua parte. Talvez, neste aspecto, devamos também responsabilizar, além dos poderes executivos e legislativos, os órgãos do judiciário e de defesa da ordem jurídica, que passaram os últimos 10 anos observando uma lei nacional não ser cumprida sem nada fazerem.Deve-se, ainda, definir quais são as tarefas e obrigações dos órgãos de assessoria e apoio do ministério e das secretarias estaduais e municipais de educação, aí incluídos os Conselhos, nacional e estaduais, de Educação.

O Congresso, as Câmaras municipais e as Assembléias estaduais também deverão estabelecer regras complementares que viabilizem o cumprimento das metas a serem atingidas.

Conclusão

Não há um único país que tenha superado o atraso e as barreiras do subdesenvolvimento sem ter escolarizado sua população. Caso aconteça com um novo PNE o mesmo que ocorreu com o atual, o desenvolvimento (ou não) da educação brasileira continuará ruim: a educação será apenas um reflexo e subproduto do restante da realidade nacional e não um instrumento de promoção do desenvolvimento e um fator a se refletir positivamente na nossa dura realidade.

Tentar vincular o desempenho educacional futuro do país a eventuais recursos do pré-sal, usar frases de efeito, atribuir vagamente responsabilidades à "sociedade civil e empresários"[6], ou preencher papel com belas palavras será totalmente inútil e servirá para iludir por mais uma década a população brasileira. Serve, também, é claro, para manter nossa posição de atraso cultural, econômico e social.

Notas:

[1] Ambos os projetos estão disponíveis no endereço http://www.adusp.org.br/arquivo/PNE/. O plano aprovado pelo Congresso está em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10172.htm.



[2] Nesses percentuais do PIB estão incluídos investimentos municipais, estaduais e federais.

[3] O artigo "Análise dos indicadores de conclusão escolar nas últimas 5 décadas", publicado na Revista Adusp, n. 46, janeiro de 2010, pág. 47, apresenta a evolução recente de alguns indicadores educacionais brasileiros. A revista pode ser acessada pelo sítio da Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo, http://www.adusp.org.br/revista/46/index.htm

[4] Por volta do ano 2000, início da vigência do PNE, cerca de 75% das crianças completavam o ensino fundamental e 55% dos jovens completavam o ensino médio. Nos últimos anos esses percentuais reduzidos para a cerca de 70% e 50%, respectivamente.

[5] O outro período de longa estagnação ou retração dos indicadores educacionais ocorreu após a falência do projeto da ditadura militar, iniciando-se em meados da década de 1970 e durando até o final da década de 1980.

[6] As expressões "sociedade civil e os empresários", "sociedade civil organizada e os empresários" ou "empresários e a sociedade civil" associadas à palavra "educação" aparecem cerca de 100 mil vezes na Internet!

Otaviano Helene é professor no Instituto de Física da USP, foi presidente da Associação dos Docentes da USP (Adusp) e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep).

Lighia B. Horodynski-Matsushigue é professora aposentada do Instituto de Física da USP e vice-presidente da regional São Paulo do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN)

Fonte: Caros Amigos

O império do consumo

por Eduardo Galeano

O sistema fala em nome de todos, dirige a todos as suas ordens imperiosas de consumo, difunde entre todos a febre compradora; mas sem remédio: para quase todos esta aventura começa e termina no écran do televisor. A maioria, que se endivida para ter coisas, termina por ter nada mais que dívidas para pagar dívidas as quais geram novas dívidas, e acaba a consumir fantasias que por vezes materializa delinquindo.

Os donos do mundo usam o mundo como se fosse descartável: uma mercadoria de vida efémera, que se esgota como se esgotam, pouco depois de nascer, as imagens disparadas pela metralhadora da televisão e as modas e os ídolos que a publicidade lança, sem tréguas, no mercado. Mas para que outro mundo vamos mudar-nos?

A explosão do consumo no mundo actual faz mais ruído do que todas as guerras e provoca mais alvoroço do que todos os carnavais. Como diz um velho provérbio turco: quem bebe por conta, emborracha-se o dobro. O carrossel aturde e confunde o olhar; esta grande bebedeira universal parece não ter limites no tempo nem no espaço. Mas a cultura de consumo soa muito, tal como o tambor, porque está vazia. E na hora da verdade, quando o estrépito cessa e acaba a festa, o borracho acorda, só, acompanhado pela sua sombra e pelos pratos partidos que deve pagar. A expansão da procura choca com as fronteiras que lhe impõe o mesmo sistema que a gera. O sistema necessita de mercados cada vez mais abertos e mais amplos, como os pulmões necessitam o ar, e ao mesmo tempo necessitam que andem pelo chão, como acontece, os preços das matérias-primas e da força humana de trabalho.

O direito ao desperdício, privilégio de poucos, diz ser a liberdade de todos. Diz-me quanto consomes e te direi quanto vales. Esta civilização não deixa dormir as flores, nem as galinhas, nem as pessoas. Nas estufas, as flores são submetidas a luz contínua, para que cresçam mais depressa. Nas fábricas de ovos, as galinhas também estão proibidas de ter a noite. E as pessoas estão condenadas à insónia, pela ansiedade de comprar e pela angústia de pagar. Este modo de vida não é muito bom para as pessoas, mas é muito bom para a indústria farmacêutica. Os EUA consomem a metade dos sedativos, ansiolíticos e demais drogas químicas que se vendem legalmente no mundo, e mais da metade das drogas proibidas que se vendem ilegalmente, o que não é pouca coisa se se considerar que os EUA têm apenas cinco por cento da população mundial.

"Gente infeliz os que vivem a comparar-se", lamenta uma mulher no bairro do Buceo, em Montevideo. A dor de já não ser, que outrora cantou o tango, abriu passagem à vergonha de não ter. Um homem pobre é um pobre homem. "Quando não tens nada, pensas que não vales nada", diz um rapaz no bairro Villa Fiorito, de Buenos Aires. E outro comprova, na cidade dominicana de San Francisco de Macorís: "Meus irmãos trabalham para as marcas. Vivem comprando etiquetas e vivem suando em bicas para pagar as prestações".

Invisível violência do mercado: a diversidade é inimiga da rentabilidade e a uniformidade manda. A produção em série, em escala gigantesca, impõe em todo lado as suas pautas obrigatórias de consumo. Esta ditadura da uniformização obrigatória é mais devastadora que qualquer ditadura do partido único: impõe, no mundo inteiro, um modo de vida que reproduz os seres humanos como fotocópias do consumidor exemplar.

O consumidor exemplar é o homem quieto. Esta civilização, que confunde a quantidade com a qualidade, confunde a gordura com a boa alimentação. Segundo a revista científica The Lancet, na última década a "obesidade severa" aumentou quase 30% entre a população jovem dos países mais desenvolvidos. Entre as crianças norte-americanas, a obesidade aumentou uns 40% nos últimos 16 anos, segundo a investigação recente do Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Colorado. O país que inventou as comidas e bebidas light, os diet food e os alimentos fat free tem a maior quantidade de gordos do mundo. O consumidor exemplar só sai do automóvel par trabalhar e para ver televisão. Sentado perante o pequeno écran, passa quatro horas diárias a devorar comida de plástico.

Triunfa o lixo disfarçado de comida: esta indústria está a conquistar os paladares do mundo e a deixar em farrapos as tradições da cozinha local. Os costumes do bom comer, que vêem de longe, têm, em alguns países, milhares de anos de refinamento e diversidade, são um património colectivo que de algum modo está nos fogões de todos e não só na mesa dos ricos. Essas tradições, esses sinais de identidade cultural, essas festas da vida, estão a ser espezinhadas, de modo fulminante, pela imposição do saber químico e único: a globalização do hamburguer, a ditadura do fast food. A plastificação da comida à escala mundial, obra da McDonald's, Burger King e outras fábricas, viola com êxito o direito à autodeterminação da cozinha: direito sagrado, porque na boca a alma tem uma das suas portas.

O campeonato mundial de futebol de 98 confirmou-nos, entre outras coisas, que o cartão MasterCard tonifica os músculos, que a Coca-Cola brinda eterna juventude e o menu do MacDonald's não pode faltar na barriga de um bom atleta. O imenso exército de McDonald's dispara hamburguers às bocas das crianças e dos adultos no planeta inteiro. O arco duplo desse M serviu de estandarte durante a recente conquista dos países do Leste da Europa. As filas diante do McDonald's de Moscovo, inaugurado em 1990 com fanfarras, simbolizaram a vitória do ocidente com tanta eloquência quanto o desmoronamento do Muro de Berlim.

Um sinal dos tempos: esta empresa, que encarna as virtudes do mundo livre, nega aos seus empregados a liberdade de filiar-se a qualquer sindicato. A McDonald's viola, assim, um direito legalmente consagrado nos muitos países onde opera. Em 1997, alguns trabalhadores, membros disso que a empresa chama a Macfamília, tentaram sindicalizar-se num restaurante de Montreal, no Canadá: o restaurante fechou. Mas no 98, outros empregados da McDonald's, numa pequena cidade próxima a Vancouver, alcançaram essa conquista, digna do Livro Guinness.

As massas consumidoras recebem ordens num idioma universal: a publicidade conseguiu o que o esperanto quis e não pôde. Qualquer um entende, em qualquer lugar, as mensagens que o televisor transmite. No último quarto de século, os gastos em publicidade duplicaram no mundo. Graças a ela, as crianças pobres tomam cada vez mis Coca-Cola e cada vez menos leite, e o tempo de lazer vai-se tornando tempo de consumo obrigatório. Tempo livre, tempo prisioneiro: as casas muito pobres não têm cama, mas têm televisor e o televisor tem a palavra. Comprados a prazo, esse animalejo prova a vocação democrática do progresso: não escuta ninguém, mas fala para todos. Pobres e ricos conhecem, assim, as virtudes dos automóveis último modelo, e pobres e ricos inteiram-se das vantajosas taxas de juro que este ou aquele banco oferece. Os peritos sabem converter as mercadorias em conjuntos mágicos contra a solidão. As coisas têm atributos humanos: acariciam, acompanham, compreendem, ajudam, o perfume te beija e o automóvel é o amigo que nunca falha. A cultura do consumo fez da solidão o mais lucrativo dos mercados. As angústias enchem-se atulhando-se de coisas, ou sonhando fazê-lo. E as coisas não só podem abraçar: elas também podem ser símbolos de ascensão social, salvo-condutos para atravessar as alfândegas da sociedade de classes, chaves que abrem as portas proibidas. Quanto mais exclusivas, melhor: as coisas te escolhem e te salvam do anonimato multitudinário. A publicidade não informa acerca do produto que vende, ou raras vezes o faz. Isso é o que menos importa. A sua função primordial consiste em compensar frustrações e alimentar fantasias: Em quem o senhor quer converter-se comprando esta loção de fazer a barba? O criminólogo Anthony Platt observou que os delitos da rua não são apenas fruto da pobreza extrema. Também são fruto da ética individualista. A obsessão social do êxito, diz Platt, incide decisivamente sobre a apropriação ilegal das coisas. Sempre ouvi dizer que o dinheiro não produz a felicidade, mas qualquer espectador pobre de TV tem motivos de sobra para acreditar que o dinheiro produz algo tão parecido que a diferença é assunto para especialistas.

Segundo o historiador Eric Hobsbawm, o século XX pôs fim a sete mil anos de vida humana centrada na agricultura desde que apareceram as primeiras culturas, em fins do paleolítico. A população mundial urbaniza-se, os camponeses fazem-se cidadãos. Na América Latina temos campos sem ninguém e enormes formigueiros urbanos: as maiores cidades do mundo e as mais injustas. Expulsos pela agricultura moderna de exportação, e pela erosco das suas terras, os camponeses invadem os subúrbios. Eles acreditam que Deus está em toda parTe, mas por experiência sabem que atende nas grandes urbes. As cidades prometem trabalho, prosperidade, um futuro para os filhos. Nos campos, os que esperam vêem passar a vida e morrem a bocejar; nas cidades, a vida Ocorre, e chama. Apinhados em tugúrios, a primeira coisa que descobrem os recém chegados é que o trabalho falta e os braços sobram. Enquanto nascia o século XIV, frei Giordano da Rivalto pronunciou em Florença um elogio das cidades. Disse que as cidades cresciam "porque as pessoas têm o gosto de juntar-se". Juntar-se, encontrar-se. Agora, quem se encontra com quem? Encontra-se a esperança com a realidade? O desejo encontra-se com o mundo? E as pessoas encontram-se com as pessoas? Se as relações humanas foram reduzidas a relações entre coisas, quanta gente se encontra com as coisas? O mundo inteiro tende a converter-se num grande écran de televisão, onde as coisas se olham mas não se tocam. As mercadorias em oferta invadem e privatizam os espaços públicos. As estações de auto-carros e de comboios, que até há pouco eram espaços de encontro entre pessoas, estão agora a converter-se em espaços de exibição comercial.

O shopping center, ou shopping mall, vitrina de todas as vitrinas, impõe a sua presença avassaladora. As multidões acorrem, em peregrinação, a este templo maior das missas do consumo. A maioria dos devotos contempla, em êxtase, as coisas que os seus bolsos não podem pagar, enquanto a minoria compradora submete-se ao bombardeio da oferta incessante e extenuante. A multidão, que sobe e baixa pelas escadas mecânicas, viaja pelo mundo: os manequins vestem como em Milão ou Paris e as máquinas soam como em Chicago, e para ver e ouvir não é preciso pagar bilhete. Os turistas vindos das povoações do interior, ou das cidades que ainda não mereceram estas bênçãos da felicidade moderna, posam para a foto, junto às marcas internacionais mais famosas, como antes posavam junto à estátua do grande homem na praça. Beatriz Solano observou que os habitantes dos bairros suburbanos vão ao center, ao shopping center, como antes iam ao centro. O tradicional passeio do fim de semana no centro da cidade tende a ser substituído pela excursão a estes centros urbanos. Lavados, passados e penteados, vestidos com as suas melhores roupas, os visitantes vêm a uma festa onde não são convidados, mas podem ser observadores. Famílias inteiras empreendem a viagem na cápsula espacial que percorre o universo do consumo, onde a estética do mercado desenhou uma paisagem alucinante de modelos, marcas e etiquetas. A cultura do consumo, cultura do efémero, condena tudo ao desuso mediático. Tudo muda ao ritmo vertiginoso da moda, posta ao serviço da necessidade vender. As coisas envelhecem num piscar de olhos, para serem substituídas por outras coisas de vida fugaz. Hoje a única coisa que permanece é a insegurança, as mercadorias, fabricadas para não durar, resultam ser voláteis como o capital que as financia e o trabalho que as gera. O dinheiro voa à velocidade da luz: ontem estava ali, hoje está aqui, amanhã, quem sabe, e todo trabalhador é um desempregado em potencial. Paradoxalmente, os shopping centers, reinos do fugaz, oferecem com o máximo êxito a ilusão da segurança. Eles resistem fora do tempo, sem idade e sem raiz, sem noite e sem dia e sem memória, e existem fora do espaço, para além das turbulências da perigosa realidade do mundo.

Os donos do mundo usam o mundo como se fosse descartável: uma mercadoria de vida efémera, que se esgota como esgotam, pouco depois de nascer, as imagens que dispara a metralhadora da televisão e as modas e os ídolos que a publicidade lança, sem tréguas, no mercado. Mas a que outro mundo vamos nos mudar? Estamos todos obrigados a acreditar no conto de que Deus vendeu o planeta a umas quantas empresas, porque estando de mau humor decidiu privatizar o universo? A sociedade de consumo é uma armadilha caça-bobos. Os que têm a alavanca simulam ignorá-lo, mas qualquer um que tenha olhos na cara pode ver que a grande maioria das pessoas consome pouco, pouquinho e nada, necessariamente, para garantir a existência da pouca natureza que nos resta. A injustiça social não é um erro a corrigir, nem um defeito a superar: é uma necessidade essencial. Não há natureza capaz de alimentar um shopping center do tamanho do planeta.

10/Maio/2010
O original encontra-se em http://www.resumenlatinoamericano.org/ , nº 2199

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

domingo, 16 de maio de 2010

Duzentos anos da Argentina vistos pelo andar de baixo

A historiografia tradicional construiu vários mitos ao redor do processo da independência da Argentina. É uma narrativa repleta de silêncios e lacunas. Nos conflitos internos e externos, os negros, os índios, mestiços e mulatos sempre foram bucha de canhão. Em 1810, por exemplo, havia uma paridade entre homens e mulheres negras na Argentina. Em 1822, os homens negros adultos tinham desaparecido. No primeiro censo moderno da República Argentina, em 1868, os africanos e seus descendentes representavam apenas 9% da população total de Buenos Aires. Após a primeira epidemia de febre amarela, no censo de 1887, restaram só 1,8%. O artigo é de Carlos Abel Suárez.

Carlos Abel Suárez - SinPermiso

Recordando Dora Coledesky e Ángel Fanjul

Quando cheguei a Córdoba, o general San Martin estava numa estância, a quatro léguas da cidade, sempre se dizendo enfermo. Estive a visitá-lo com outras pessoas, ele nos recebeu muito bem e conversou largamente sobre nossa revolução. Entre outras coisas, disse: 'Esta revolução não parece de homens, mas de carneiros”; para prová-lo, lembrou que nesse mesmo dia tinha vindo um dos peões da fazenda queixar-se de que o mordomo, que era espanhol, havia lhe dado pancadas por faltas que tinha cometido no serviço. Com isso, exclamou: 'que parece a vocês, depois de três anos de revolução, um maturrango se atreve a levantar a mão contra um americano! Esta é – repetiu – uma revolução de carneiros”!
Memórias do General José María Paz

Na América se está celebrando os 200 anos da Independência da Espanha. Para o que hoje chamamos de República Argentina se trata da Revolução de Maio. Exatamente em 25 de maio de 1810 começou o longo e tumultuado processo de uma organização política autônoma da coroa espanhola. Estão programados atos, discursos, inaugurações, notas nos jornais, ensaios e um mercado de produtos comemorativos.

A próspera Argentina do Centenário já conheceu estas pompas em maio de 1910. A Princesa Isabel de Bourbon e sobrinha de Alfonso XIII, conhecida também como “a Chata”, ou Georges Clemenceau, entre as numerosas personalidades convidadas, desfilaram por Buenos Aires, uma das cidades do mundo que valia à pena visitar naqueles dias de abundância, ao menos para alguns.

As bandeirolas e o espumante não foram compartilhados por todos. Os anarquistas tinha convocado uma greve geral em protesto contra a brutal e sistemática repressão desencadeada um ano anos, desde a manifestação do 1° de Maio de 1909. Nas vésperas do Centenário, o Congresso decretou o estado de sítio, em 13 de maio. A medida não deteve os “grupelhos” dos senhorios ultranacionalistas que assaltaram, destruíram e incendiaram as gráficas de La Vanguardia e La Protesta, os jornais socialista e anarquista. Essas gangues foram protegidas pelo chefe de Polícia, o então coronel Dellepiane que, já como general com maior experiência, dirigiu mais tarde a repressão na chamada Semana Trágica de 1919. Retornando às crônicas dos atos não previstos no protocolo do Centenário, a política chegava aos locais quando as chamas já haviam feito seu trabalho, e contam que, quando entraram no local que antes fora a gráfica do La Vanguardia, encontraram seu diretor, Juan B. Justo, que detiveram para averiguação de antecedentes criminais.

Esses “grupelhos”, que ao longo da história argentina tomaram outros nomes – Liga Patriótica, Alianza Nacionalista, CNU ou Triple A, etc – não se limitaram a atacar às imprensas socialistas ou anarquistas. Aos gritos de “Viva a Pátria, viva a Polícia”, assaltaram e incendiaram o circo popular de Frank Brown, o palhaço da cidade, atacando com particular sanha os judeus e os centros culturais de outros imigrantes (que nesses dias superavam 40% dos habitantes da cidade de Buenos Aires) e várias escolas identificadas com o laicismo. Em 27 de maio de 1910, como chave de ouro dos festejos pátrios, o Congresso votou a Lei de Defesa Social, que ampliava e aprofundava a bestial Lei de Residência, a 4144, pela qual se podia expulsar do país qualquer estrangeiro que perturbasse a segurança nacional ou a ordem pública. Esta lei racista esteve em vigor durante grande parte do século XX. Foi derrogada há pouco, por Arturo Frondizi, em julho de 1958, em parte porque já havia instrumentos repressivos mais eficientes, como a Commoción Interior ou o Plano Conintes, que foram maciçamente aplicados.

Mas voltemos ao princípio. A historiografia tradicional construiu vários mitos ao redor do processo da independência. Necessários, por certo, para maquiar as origens das classes dominantes, que além de algumas poucas baixas, manteve sua hegemonia durante esses 200 anos. Classe dominante com instantes fugazes de assumir o papel de uma classe dirigente. De todo modo, seus fantasmas se podem encontrar nos homens das ruas, especialmente nas da cidade de Buenos Aires.

A propósito do Bicentenário se reciclam velhas polêmicas e se instalam outras, porque, como advertia o grande historiador britânico Edward H. Carr: “a história é um diálogo sem fim entre o presente e o passado”. De modo que a revolução de Maio e a Independência podem nos dar algumas pistas de como chegamos até aqui. Porque, embora com todas as desventuras e desigualdades galopantes das últimas décadas, o que se tornou a República Argentina ainda figura no pelotão que encabeça o índice de Desenvolvimento Humano da ONU.

Historiadores de todas as correntes corroboram, com bons argumentos, o processo que começou no Vice-reinado do Rio da Prata em maio de 1810, com o antecedente da reconquista das invasões inglesas, em 1806 e 1807, como parte do mesmo fenômeno independentista que tomou conta de toda a América Hispânica nesses mesmos anos. Sem embargo, foram as particularidades que determinaram o rumo definitivo de cada região e de cada país, inclusive do Brasil, na geopolítica do capitalismo do século XIX (Ver entrevista com Tulio Halperín Donghi).

Ainda restam cinzas dos debates apaixonados sobre o caráter da revolução independentista. Na tradição da esquerda, muitos foram os que buscaram adaptar os conhecimentos e os atores aos esquemas de um marxismo simplificado, quando não tergiversado. Havia de se demonstrar o caráter “democrático-burguês” da Revolução de Maio. Assim, batizou-se como “jacobino” a Mariano Moreno, José Castelli e Bernardo Monteagudo, entre outros, não pelas relações sociais e pelas idéias que expressavam, mas pela necessidade de uma história de acordo com esse esquema supostamente clássico, sem importar a sincronia dos acontecimentos.

No caso de Robespierre praticaram sem recato a falsificação histórica que o qualificou como o sanguinário da Revolução Francesa, uma espécie de terrorista de Estado (1). E nessa comparação se catalogou a Moreno e a Castelli, por não terem hesitado em exercer a violência e os fuzilamentos contra seus adversários. Com efeito, essa leitura de segunda ou terceira mão da Revolução Francesa levou algumas autores, como hoje a seus seguidores, a ficarem com a idéia de que a Revolução Francesa nada mais foi do que uma clássica “revolução burguesa”. E aqui se dividem as opiniões, entre quem afirma o caráter “democrático-burguês” do 25 de Maio, dado o seu caráter popular, buscando os sans-culottes crioulos e aqueles que rechaçam essa idéia, que sustentam que não havia burguesia local capaz de assumir essas tarefas. As duas versões, porém, coincidem na ignorância de que o ódio que Robespierre despertou, a demolição e demonização de seu papel, enfim, pelo que perdeu sua cabeça na guilhotinha, deveu-se à defesa sustentada por ele da abolição da escravatura nas colônias; e o programa dos jacobinos que representava a plebe, o povo simples.

De todos os direitos, o primeiro é o de existir. Para tanto, a primeira lei social é aquela que garantiria a todos os membros da sociedade os meios para existir. Todas as demais leis estão subordinadas a esta lei social” (2), é por causa da defesa dessas idéias que Robespierre foi difamado.

Por sua parte, Moreno, advogado de Martin de Álzaga, o principal traficante de escravos do Rio da Prata, foi o autor da “Representação dos fazendeiros”, ou seja, um militante consequente e tenaz do livre comércio, de pôr o fim no monopólio comercial que atava Buenos Aires ao Reino de Espanha. Moreno, ademais, segundo Vicente Fidel López, era um “católico exagerado, que chegava à devoção de passar semanas em exercícios espirituais, dando chicotadas em si mesmo”. Há que forçar em demasia para encaixá-lo no retrato dos jacobinos.

Contudo, a geração da Independência – Moreno, Castelli, Belgrano, San Martin e outros – sequer chegaram a se pronunciar pela República e defendiam o livre comércio. Em consequência, mantiveram a bússola orientada para Londres, a meca da avassaladora Revolução Industrial. Essas coisas não merecem interesse histórico e político para os acontecimentos [e a historicidade] da Independência e de seus protagonistas.

Foi o peruano José Carlos Mariátegui que qualificou, já na metade do século XX, como “falsa república” ao Peru, que se tinha constituído sob as classes dominantes, deixando ao lado os povos originários. O conceito podia ser aplicado a outras partes da América Latina.

Em que, porém, o caso argentino é igual? A literatura sobre as diferenças de civilizações que a colonização espanhola encontrou no Peru e no México, dos territórios quase despovoados e do que mais tarde foi o Vice-Reinado do Rio da Prata abunda.

Foi uma necessidade especificamente geopolítica que impulsionou a idéia de instalar uma burocracia colonial em Buenos Aires: o Vice-Reinado. Não foram os recursos naturais e a existência de civilizações e cidades com grande densidade de população, que os colonizadores se encarregaram rapidamente de explorar e integrar às correntes comerciais do capitalismo em desenvolvimento. No caso das Províncias Unidas do Sul não é tão evidente a correspondência de seu desenvolvimento econômico, político e social com a tese de falsas repúblicas, de Mariátegui. Falta investigar, explorar sob a superfície dos sucessos e do movimento social. Para isso é fundamental recorrer a importantes contribuições acadêmicas de Halperin Donghi, Sergio Bagú, Aldo Ferrer, Alberto J. Pla, José Luis Romero e outros que, sem ser acadêmicos, deram boas pistas para não nos perdermos nos jardins mortos dos velhos e novos pós-modernos.

Os negros no Rio da Prata
Ninguém luta por uma multidão, nem se abandona a uma choradeira fúnebre perante a lápide de uma abstração
Mike Davis

O cirurgião Juan Caytenao Molina, um dos precursores do sanitarismo no Rio da Prata, liderou uma das primeiras batalhas entre a saúde pública e os interesses privados. Martín de Álzaga, como já dissemos, homem de poder político e econômico e traficante de escravos, recebia em Montevidéu seu barco, El Joaquín, com um carregamento de negros procedentes de Moçambique. Molina, que estava a cargo de uma junta sanitária que devia inspecionar os navios negreiros no porto de Montevidéu, diagnosticou um surto de varíola que tinha provocado numerosas mortes no El Joaquín durante a travessia, pondo a embarcação em quarentena. Aquelas alturas, a varíola tinha provocado estragos, especialmente entre os negros que chegavam debilitados e com imunidade baixa – pela ausência de enfermidades no meio natural onde foram caçados e embarcados. Álzaga rechaçou a quarentena e manobrou judicialmente, usando seu poder econômico e sua influência política para pôr em dúvida a competência científica de Molina. O sanitarista aproveitou a oportunidade para replicar, embora tenha perdido sua causa, e pôde qualificar de execrável o tráfico negreiro, recordando, ademais, que a varíola tinha provocado a morte de quase 2000 pessoas (principalmente escravos) em 1793, em Buenos Aires.

Com os progressos da produção capitalista durante o período manufatureiro, a opinião pública da Europa perdeu os últimos vestígios de pudor e consciência que ainda lhe restavam”, disse bem Karl Marx, no capítulo XXIV (Sobre a Acumulação Originária) de O Capital.

Marx acrescenta que: “Em 1730, Liverpool dedicava 15 barcos ao comércio de escravos; em 1751 já eram 53; em 1760, 64; em 1770, 96; em 1792, 132 (...). Enquanto implantava a escravidão infantil na Inglaterra, a indústria algodoeira servia de incentivo para converter o regime mais ou menos patriarcal de escravidão dos EUA num sistema comercial de exploração. Em geral, a escravidão escondida dos trabalhadores assalariados na Europa exigia, como pedestal, a escravidão sans phrase no Novo Mundo” (3).

Até 1739 a Real Companhia da Inglaterra, com quase cinquenta súditos britânicos trabalhando na sucursal de Buenos Aires, tinha a quase exclusividade do negócio negreiro no Rio da Prata. Isso é a mostra evidente dos vínculos comerciais muito consolidados com a Inglaterra, ainda antes da constituição do Vice-reinado, em 1776.

Os milhares de negros que ingressam por Buenos Aires, em sua maioria não ficam na região. Era vendidos e trasladados para trabalhar na exploração das minas no Peru, via Chile. Ainda não havia como fazer com que o capital se reproduzisse na planície pampeana.

Embora se calculasse que o tempo médio de vida de um escravo fosse de 7 anos, desde que chegava a seu destino (o qual requeria a fortaleza sobrehumana de suportar o cativeiro na viagem), nem todas as relações entre os proprietários e escravos eram brutais. Também houve as relações de tipo patriarcal. Por exemplo: os padres Agostinianos possuíam em Mendoza uma das maiores bodegas da região, onde escravos negros e índios trabalharam durante muito tempo fabricando vasilhames onde se transportava o vinho para outras regiões. Segundo testemunhos, com os anos se formaram em artesões habilidosos e conseguiram, antes de 1810, condições de trabalho um pouco mais leves que as de uma linha de montagem numa fábrica fordista. Sem falar das atuais fábricas no setor informal de nossas economias.

Os dados sobre o número de escravos negros que ingressarem pelo Rio da Prata não são precisos; para alguns pesquisadores, desde a chegada dos espanhóis até 1813, somando os que foram registrados e os contrabandeados, esse número havia superado a casa dos 2 milhões. Tampouco estão documentados todos os fatos que determinaram a diminuição da proporção de negros existentes no começo do século XIX, em relação com a população local, com a de cem anos depois.

A pesquisadora Marta Goldberg, precursora no estudo do tráfico negreiro no Rio da Prata, estima que a população negra constituía 18% do total, em 1774. Passou a 25% em 1778 e a 30% em 1807. Em 1810, durante a independência, uma terça parte da população era escrava, e em Córdoba, durante esses anos, a metade era mulata (4). Há dados que nos dão um indício do porquê que essa relação não se manteve na composição da população argentina: enquanto que em 1810 havia uma paridade entre homens e mulheres negras, em 1822 os homens negros adultos haviam desaparecido. No primeiro censo moderno da República Argentina, em 1868, os africanos e seus descendentes representavam apenas 9% da população total de Buenos Aires, e depois da primeira epidemia de febre amarela, no censo de 1887, restaram só 1,8%.

A leva da guerra de Independência, das guerras civis e da guerra contra o Paraguai, mais as pestes tinham feito seu trabalho.

San Martin, em Mendoza, formou toda a infantaria do Exército dos Andes com negros, pardos e mulatos, quase todos escravos, que o Estado comprou a seus proprietários, com bônus que dificilmente foram cancelados.

Nos conflitos internos e externos, os negros, os índios, mestiços e mulatos sempre foram bucha de canhão, no período colonial e posteriormente, nas guerras independentistas e civis. À frente dessas levas, onde se prometia liberdade ou melhores de vida esteve o conquistador Pedro de Cevallos. Para quem lida com esse conceito tão ambíguo, o “populismo”, este seria um dos primeiros populistas destas terras. Em 1777 Ceballos desajolou os portugueses da estratégica cidade da costa oriental do Rio da Prata, Colônia de Sacramento, com tropas formadas por escravos negros e pardos. Prometeu-lhes a liberdade depois da vitória, claro. Uma promessa que não cumpriu. Aplicou a mesma metodologia na ocupação para a coroa espanhola de Santa Catarina, no Brasil. Outro especialista nessas lidas foi o “herói” da Reconquista, e depois vice-rei, Santiago de Liniers, mais tarde fuzilado por Castelli sob a acusação de conspirar contra o primeiro governo pátrio. Liniers, segundo a crônica, era muito popular entre os negros, em que pese ter sido um dos negociantes com autorização da Espanha para comercializar escravos.

Durante muitos anos os manuais escolares argentinos ensinaram que a Assembléia do ano XIII tinha posto fim à escravidão. Mais tarde soubemos que, na realidade, os representantes de algumas das províncias tinham decretado o ventre livre e suprimido o tráfico de escravos. Isso significava que o filho de uma escrava deixava de ser propriedade do amo apenas quando chegasse à maioridade, não antes.

Essas medidas chegaram com dois anos de atraso, pois nos territórios espanhóis, já em abril de 1811, se havia proibido o tráfico de escravos, quer dizer, não se autorizava mais a lucrativa atividade dos navios negreiros. Mesmo assim, as Cortes de Cádiz, em maio de 1812, estabeleceram “que todo escravo era livre só pelo direito de pisar em território espanhol”.

Esse critério também foi adotado aqui em Buenos Aires pela Assembléia do ano XIII. Ainda assim se seguiu comprando e vendendo seres humanos ao menos até logo após a entrada em vigor da Constituição de 1853. Nas sucessões e declarações de bens figuravam os escravos como parte dos direitos de propriedade. Também houve formas refinadas de escravidão. Por exemplo, Rosas, que tinha escravo negros em suas fazendas, trouxe agricultores galegos, que só se tornavam livres quando tinha pago com trabalho os gastos de seu traslado e subsistência.

Nos necrológios pode se encontrar pérolas como esta:

Félix Urioste de la Campa, nascido em Santurce, senhorio de Vizcaya, Espanha, passou pelo Rio da Prata, radicando-se na cidade de Buenos Aires; um importante fazendeiro dos Arrecifes, membro do diretório do banco da Província e do Banco Nacional, membro da primeira sociedade mineira, delegado provincial para a negociação da célebre empresa da Casa Baring Brothers, faleceu assassinado “desgraçadamente” em 27 de maio de 1835, quando pegou de surpresa no campo cinco de seus escravos carneando uma cabeça de gado, sem autorização. Levados a juízo, o Juiz de Paz de Arrecifes ordenou que os acusados fossem executados".

Em todo caso, desde a Assembléia do ano XII não houve registro do ingresso de novos contingentes de escravos africanos. Ao contrário, o tráfico seguiu sendo próspero nas colônias portuguesas. De acordo com alguns estudos, só no mercado do Rio de Janeiro se havia arrematado um milhão de escravos negros entre 1800 e 1850

Dos que viviam aqui desde tempos remotos

Em relação aos índios, a Assembléia, na seção de 12 de março de 1813 declarou extintos os tributos, a mita, as encomiendas, o yaconazgo e o serviço pessoal. Já na metade do século XVIII essas figuras da encomienda já haviam desaparecido, e as “missões” terminaram com a expulsão dos jesuítas.

Quando José Castelli chegou a Chuquisaca em 1811, editou uma proclama em castelhano e em quéchua, onde eliminava o mayorazgo e os tributos. Essa era uma forma de pôr os índios a favor da Junta de Buenos Aires. Os espanhóis, porém, também usaram a mesma política, instrumentalizando uma resolução do Conselho de Regência que beneficiava os índios. Como sempre, palavras não honradas.

Mesmo assim, a Assembléia do ano XIII reconheceu aos índios “como homens perfeitamente livres, em igualdade de direitos com todos os demais cidadãos”.

Entre seus atos soberanos, a Assembléia resolveu cunhar novas moedas de ouro e prata, abandonando os símbolos do antigo regime das moedas anteriores, para substituí-los pela pica e pelo gorro frígio. Segundo as crônicas da época, no ato realizado para celebrar o terceiro aniversário da Revolução de Maio, em consonância com o ambiente republicano que campeava na Assembléia, aparecem as autoridades da cidade de Buenos Aires e os cidadãos e mesmo algumas mulheres, com uma “boina vermelha”, no lugar de seus tradicionais sombreiros. O republicanismo havia entrado na moda, mas não convencia então a todas as cabeças.

Assim como no México e no Peru, os colonizadores desses territórios chegaram exterminando os povos originários que não puderam submeter. O grau de desenvolvimento econômico e a geografia operaram para que os conquistadores ficassem com as áreas litorâneas, até descobrirem as possibilidades a terra lhes oferecia. Mas isto aconteceu algum tempo depois; nesse período as tribos sobreviventes já haviam aprendido a utilidade do cavalo para defender seus próprios territórios. Os colonizadores, que não eram apenas burocratas ou comerciantes-contrabandistas; foram se convertendo em estancieiros. Uma oligarquia crioula estava nascendo e, para ter um lugarzinho no mundo, já capitalista, deveria abandonar uma economia auto-suficiente e proceder a uma grande apropriação de terras. Não era suficiente recolher os couros, mercadoria de exportação, que aos milhares começaram a ser vendidos; chegava a um milhão de peças anuais no começo do século XIX. E o negócio se amplia com a charque das carnes.

Para expandir as fronteiras de suas propriedades e de seus negócios, essa oligarquia nascente tinha de eliminar os índios e também o gaúcho, esse personagem não enquadrado. Desde 1815, com toda clareza o governo estabelece que quem não tivesse “papeleta de conchavo”, ou seja, que não tem patrão vai preso ou se incorpora às fazendas, por um tempo indefinido. Acabou aquela coisa de andar cavalgando livremente, comendo e coureando vacas para viver. Os campos, as vacas, os cavalos e os alagados têm de ter proprietários.

O grande empreendimento de ampliar o domínio sobre a planície pampeana, desalojando os povos originários, começou com Juan Manuel Rosas em 1833 e culminou com Julio Roca, nos 80. Os procedimentos, a hipocrisia, o grau de brutalidade e as justificações não diferem em demasia dos processos de dominação territorial na América do Norte e em outras partes.

Os exércitos de ocupação se formavam com as levas de trabalhadores forçados. Uma ordem firmada por Rosas em 1831 estabelecia que cada partido devia enviar a cada 15 dias dois escolhidos entre os “homens prejudiciais por sua conduta e sem nenhuma ocupação”. (5)

Em "La Hidra de la revolución" [A Medusa da Revolução], o estupendo livro de Peter Linebaugh e Marcus Rediker (6), demonstra-se como o capitalismo universalizou os métodos de submissão. Também encontramos um paralelo nas formas também universais da resistência e da rebelião.

Em muito poucas décadas, a perversidade do capital exterminou os onas ou selk 'nam, que tinham levado uns 12 000 anos para chegar do estreito de Bering até a Ilha Grande da Terra do Fogo, onde pensaram que tinham encontrado seu lugar no mundo. Nos últimos anos do século XIX foram exterminados, de maneira planejada, por alguns recém chegados. Primeiro pagavam por uma orelha, mas quando os pagadores advertiram que alguns índios andavam sem orelhas, tinha de se levar toda a cabeça para receber o pagamento.

E esses genocídios, escamoteados ou banalizados no relato oficial da história argentina, não terminaram com a entrada no século XX.

Em 19 de julho de 1924, na localidade chaqueña [relativa a Chaco, no norte da Argentina] de Napalpi, tropas do exército e da polícia atacaram o acampamento El Aguará, onde quase um milhão de tobas, mocovies e campesinos brancos correntinos resistiam ao acosso dos latifundiários locais. O massacre no então território nacional do Chaco foi recentemente denunciada em 1987, na Fundação Juan B. Justo, durante uma coletiva de imprensa de que participaram o pesquisador José Picciuolo Valls e o historiador e jornalista Emilio J. Corbière.

Quando os tobas da região se deram conta da importância do cavalo, dominaram outras etnias chaqueñas e ofereceram resistência aos colonizadores, até que foram derrotados militarmente na segunda metade do século XIX. As melhores terras foram repartidas entre as classes dominantes, os triunfadores; os índios foram reduzidos às “reservas”. Qual foi o motivo da matança de 1924? Os índios começaram a trabalhar nas terras que lhes deixaram, numa economia de subsistência, negando-se a trabalhar para os latifundiários que cercaram seus antigos territórios. Segundo Picciulo, a resistência não teve uma característica religiosa de tipo “messiânico”. Os latifundiários asseguraram que essa economia de subsistência era um “foco” subversivo e convenceram o governador, Fernando Centeno, que era preciso exterminá-los. Assassinaram a todos e, como troféus de guerra, cortaram orelhas, testículos e pênis, que depois foram exibidos como mostra de patriotismo na localidade próxima a Quitilipi.

Os métodos primitivos do governador Centeno (delegado do governo radical de Marcelo T. de Alvear) e dos latifundiários chaqueños não tinham a paciência britânica nem a potência da revolução industrial nas costas, para cercar os campos e “persuadir” os índios a respeito da necessidade de trabalhar. Por exemplo, em 1785, o escritor britânico William Towsend fundava sua crítica ao sistema de ajuda aos pobres nos seguintes termos:

A fome pode amansar até os animais mais ferozes e tornar decentes e famigerados, submissos e obedientes, até os mais perversos. Comumente o único que pode induzí-los e estimulá-los ao trabalho é a fome; mas...eis que nossas leis estabeleceram que eles nunca passarão fome. Mas temos de admitir também que, por outro lado, as leis dizem que poder-se-á obrigá-los a trabalhar; só que esse recurso à força legal acarreta muitas dificuldades, violência e escândalo: origina má vontade e não pode jamais fazer render um trabalho bom e aceitável. A forme, ao contrário, não só é uma questão pacífica, silenciosa, implacável; senão que, sendo o mais natural dos motivos que há para pôr-se a trabalhar, consegue produzir os mais vigorosos rendimentos, além de que, uma vez que os famintos se satisfaçam graças à liberdade alheia, resta neles uma semente perdurável e segura de boa vontade e gratidão” (7).

A classe dominante argentina, contudo, insiste em seus métodos. Um documentário que estreou no último Festival Internacional de Buenos Aires (BAFICI, 2010), "Octubre Pilagá, Relatos sobre el silencio", dirigido por Valeria Mapelman, resgata outro massacre similiar ao de Napalpi, ocorrido 23 anos depois desse, em pleno apogeu do mercado interno e da indústria substitutiva de exportações.

A algumas centenas de quilômetros ao norte de Napalpi, num lugar chamado Rincón Bomba, próximo a Las Lomitas, em Formosa, há sobreviventes que podem contar o que aconteceu. Em outubro de 1947, durante o primeiro governo Perón, uns 2000 pilagás haviam se reunido para escutar a um líder carismático. Antes, a comunidade tinha formulado uma série de demandas às autoridades locais. No filme, os sobreviventes contam os horrores vividos naquela tarde daquele 10 de outubro, em que começou o fuzilamento levado a cabo pela polícia, uma matança que não poupou nem velhos nem crianças, nem as mulheres se salvaram das violações que estão nos manuais dos escritos dos exércitos de ocupação de todos os tempos. Por vários dias continuaram buscando e matando a todos os que tinham escapado, com o propósito de não deixar um só testemunho. Disso se faz a transcendência desse documentário que põe luz sobre estes fatos até agora ocultos.

Por outro lado, a coincidência nas formas religiosas em que se expressam os protestos e a rebeldia, em Napalpi e dos pilagá, não é uma novidade. Como Linebaugh e Rediker o recordam muito bem, com dezenas de exemplos, as dezenas de rebeliões de todos os proscritos da terra, o que nos remete também ao incomparável relato de Euclides da Cunha, nos Sertões, sobre a guerra de Canudos.

(1) Ver Joaquín Miras, 2005; em Republicanismo Y Democracia, María Julia Bertomeu et all, (Buenos Aires, Miño y Dávila); também Antoni Domènech, El eclipse de la fraternidad: una visión republicana da tradición socialista (Barcelona, Crítica, 2004).

(2) Citado por Daniel Raventós, em Las condiciones materiales de la libertad (Barcelona, El Viejo Topo, 2007).

(3) Karl Marx, O Capital, Tomo I, cap. XXIV (Buenos Aires, Cartago, 1969).

(4) Marta Goldberg, “La población negra y mulata de la ciudad de Buenos Aires, 1810-1840” (Buenos Aires, Desarrollo Económico, Vol. 6 n.61, 1976).

(5) Citado por Luis Franco, De Rosas a Mitre (Buenos Aires, Astral, 1966).

(6) Peter Linebaugh e Marcus Rediker, La Hidra de la Revolución; Marineros, esclavos y campesinos en la historia oculta del Atlántico (Barcelona, Crítica, 2005).

(7) Citado por Edward H. Caar, La Nueva Sociedad (México, FCE, 1969).


Carlos Abel Suárez é membro do comitê de redação de SinPermiso

Tradução: Katarina Peixoto

sábado, 15 de maio de 2010

"Veja foi indispensável para construir o neoliberalismo"

Carla Luciana Silva - Por Lia Segre - Observatório do Direito à Comunicação
07.05.2010

A professora do curso de História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) Carla Luciana Silva passou meses dedicando-se a leitura paciente de pilhas de edições antigas da revista Veja. A análise tornou-se uma tese de doutorado, defendida na Universidade Federal Fluminense, e agora, em livro. “Veja: o indispensável partido neoliberal (1989-2002)” (Edunioeste, 2009, 258 páginas) é o registro do papel assumido pela principal revista do Grupo Abril na construção do neoliberalismo no país.

A hipótese defendida pela professora Carla é que a revista atuou como agente partidário que colaborou com a construção da hegemonia neoliberal no Brasil. Carla deixa claro que a revista não fez o trabalho sozinha, mas em consonância com outros veículos privados. Porém, teve certo protagonismo, até pelo número médio de leitores que tinha na época – 4 milhões, afirma Carla em seu livro.

“A revista teve papel privilegiado na construção de consenso em torno das práticas neoliberais ao longo de toda a década. Essas práticas abrangem o campo político, mas não se restringem a ele. Dizem respeito às técnicas de gerenciamento do capital, e à construção de uma visão de mundo necessária a essas práticas, atingindo o lado mais explícito, produtivo, mas também o lado ideológico do processo”, afirma trecho do livro.

O livro pode ser adquirido diretamente com a autora, através do email carlalssilva@uol.com.br

Sobre o título do livro, porque “indispensável”? É uma brincadeira com o slogan da Veja ou reflete a importância da revista para o avanço do neoliberalismo no Brasil?
O título é uma alusão ao slogan da revista e ao mesmo tempo nos lembra que ela foi um sujeito político importante na construção do neoliberalismo. A grande imprensa brasileira foi indispensável para que o neoliberalismo tenha sido construído da forma que o foi. A Veja diz ser indispensável para o país que queremos ser. A pergunta é: quem está incluído nesse “nós” oculto? A classe trabalhadora é que não.

Quais os interesses defendidos por Veja?
Os interesses são os dominantes como um todo, mais especificamente os da burguesia financeira e dos anunciantes multinacionais. Em que pese o discurso de defesa da liberdade de expressão articulado à publicidade, o que importa pra revista são os interesses em torno da reprodução capitalista. A revista busca se mostrar como independente, o que se daria através de sua verba publicitária. É fato que a revista tem uma verba invejável, mas isso não a transforma no Quarto Poder, que vigiaria os demais de forma neutra. Ao mesmo tempo em que ela é portadora de interesses sociais, faz parte da sociedade, a sua vigilância é totalmente delimitada pela conjuntura e correlação de forças específica. O exemplo mais claro são as denúncias de corrupção e forma ambígua com que Veja tratou o governo Collor, o que discuto detidamente no livro.

Isso significa defender atores e grupos específicos? E, ao longo dos anos, estes atores mudam?
Essa pergunta é mais difícil de responder, requer uma leitura atenta, a cada momento histórico especifico. A revista não é por definição, governista [no período estudado]. Ela é defensora de programas de ação. No período analisado (1989-2002), sua ação esteve muito próxima do programa do Fórum Nacional [www.forumnacional.org.br] de João Paulo dos Reis Velloso. Ela busca convencer não apenas seus leitores comuns, mas a sociedade política como um todo e também os gerentes capitalistas.

E que relação Veja estabelece com grupos estrangeiros?
Essa é outra pergunta que requer atenção e mais estudos. O Grupo Abril não é um grupo “nacional”. Suas empresas têm participação direta de capital e administração estrangeira. Primeiro, é importante ter claro que o Grupo Abril não se restringe a suas publicações. A editora se divide em várias empresas, sendo que a Abril é majoritariamente propriedade do grupo Naspers, dono do Buscapé [site de comparação de preços] e de empresas espalhadas pelo mundo todo, da Rússia à Tailândia. Essa luta pela abertura de capital [no setor das comunicações] foi permanente ao longo dos anos 1990 e a Abril foi o primeiro grande conglomerado [de comunicação] brasileiro a abrir seu capital legalmente. É bom lembrar que o grupo tem investido bastante também na área da educação, e por isso a privatização do ensino continua sendo uma meta a atingir.

Aconteceram várias edições do “Fórum Nacional” no período em que faz sua análise. Por que Veja defendeu com tanto afinco as resoluções, especialmente econômicas, saídas desse Fórum?
O Fórum Nacional tem vários títulos. Eles [os integrantes do Fórum] foram se colocando ao longo dos anos, desde 1988, como intelectuais que pensam o Brasil e defendem programas de ação – as formas específicas de construção de um projeto sócio-econômico, que mudaram ao longo dessas duas décadas. Não existe um vínculo orgânico da revista com o Fórum, ao menos não o comprovamos, mas existe uma afinidade de programa de ação. A tentativa de reforma da Constituição em 1993 foi um bom exemplo, conforme desenvolvo no livro.

No livro, você aponta que a Veja “comprou” as idéias no Fórum Nacional, transformando-as numa verdadeira cartilha econômica para salvar o Brasil no começo dos anos 90. Quais seriam os principais tópicos desta “cartilha”?
O Fórum Nacional surgiu em 1988 como uma forma de organizar o pensamento e ação dominante. Ele se constituiu um verdadeiro aparelho privado de hegemonia, buscando apontar caminhos para a forma da hegemonia nos anos 1990. E existe até hoje, fazendo o mesmo. Portanto, ele não é apenas uma fórmula econômica, mas de economia política. Tratou de temas relevantes como “modernidade e pobreza”, “Plano Real”, “Segurança”, “estratégia industrial”, “política internacional”, sempre trazendo intelectuais considerados “top” do pensamento hegemônico para ver, a partir de suas pesquisas, quais caminhos deveriam ser seguidos, não apenas pelos governos, mas também pela sociedade política, ditando os rumos da economia.

Essa “cartilha” econômica foi atualizada? Você se recorda de alguma campanha recente em que a revista tenha tomado a frente?
A atualização é constante, mas não é uma cartilha. O Fórum e a revista são independentes um do outro, ao que parece, não há um vinculo orgânico. Mas Veja assumiu várias campanhas, sendo a principal delas a manutenção do programa econômico de Fernando Henrique durante todo o governo Lula. A blindagem feita ao presidente Lula da Silva foi imensa, especialmente se compararmos com o que foi feito do caso do mensalão ao que ocorreu no governo Fernando Collor. O que explica isso parece ser claramente a política econômica [de FHC e reproduzida por Lula] que garantiu lucros enormes aos bancos e a livre circulação de capitais, além de outras políticas complementares.

Qual foi a importância da revista para a corrente neoliberal desde Collor? Dá para mensurar?
Foi muito importante, mas não dá pra mensurar. É importante que tenhamos claro que o neoliberalismo não é uma cartilha, por mais que se baseie em documentos como o Consenso de Washington, por exemplo. Ele não foi “aplicado”. Foi construído como projeto de hegemonia desde os anos 1980. A grande imprensa participou da efetivação de padrões de consenso fundamentais: as privatizações, o ataque ao serviço público, a suposta falência do Estado. É importante olharmos hoje, pós crise de 2008, para ver que muitos desses preceitos são defendidos como saída da crise.

Qual a importância de Veja para as privatizações?
Difícil medir dessa forma. Posso falar da importância das privatizações para Veja: elas precisavam acontecer de qualquer forma. E isso era um compromisso com o projeto que representava e com os seus interesses capitalistas específicos, do Grupo Abril. É bom lembrar que a criação de consenso em torno desse ideal foi importante para que o grupo pudesse abrir seu capital oficialmente ao capital externo.

Veja deixa de ser neoliberal para ser neoconservadora? Digamos assim, amplia sua atuação do debate econômico, fundamental à implantação do neoliberalismo, e passar a fazer campanhas também em outras pautas conservadoras?
Não vejo essa distinção. Neoliberalismo foi um projeto de hegemonia, uma forma de estabelecer consenso em torno de práticas sociais específicas. A forma do capitalismo imperialista, portanto, não se restringe à economia. A política conservadora sempre esteve presente no neoliberalismo, haja visto a experiência de [Ronald] Reagan [presidente dos Estados Unidos] e [Margareth] Thatcher [primeira-ministra da Grã-Bretanha], a destruição do movimento sindical, a imposição do chamado pensamento único. Por esse caminho chegou-se a dizer que a história tinha acabado e que a luta de classes não fazia mais sentido. Os movimentos sociais foram duramente reprimidos e, além disso, se buscou construir consenso em torno de sua falência, o que foi acompanhado pelo transformismo dos principais partidos de esquerda, especialmente no Brasil. O que vemos hoje é a continuidade dessa política. Os dados dos movimentos sociais denunciam permanentemente o quanto tem aumentado a sua criminalização ao passo que os incentivos ao grande capital do agrobusiness só aumenta.

Existem diferenças muito contundentes entre a Veja de 89, a de 2002 e a de hoje?
Há diferenças claro. Havia, em 1989, um grau um pouco mais elevado de compromisso com notícias, com investigações jornalísticas, o que parece ter se perdido totalmente ao longo dos anos. A revista se tornou uma difusora de propagandas, tanto de governos como de produtos (basta ver as capas sobre Viagra ou cirurgias plásticas).

Já nos primeiros capítulos do livro, você chama atenção para o fato de Veja ser muito didática e panfletária quanto ao liberalismo. Ela deixou de fazer apologia ao neoliberalismo de maneira tão clara?
Teria que analisar mais detidamente. Essa é uma coisa importante: sentar e ler detidamente, semanas a fio, pra podermos concluir de forma mais segura a posição da revista.

Em algum momento do período analisado a revista foi muito atacada por alguma cobertura específica?
Sim, a revista teve embates, especialmente com a IstoÉ e, posteriormente, com a Carta Capital. Essas revistas talvez tenham ajudado a tirar uma ou outra assinatura de Veja em conjunturas especiais. O caso Collor não é simples como parece. A revista Veja fazia campanha nas capas mostrando o movimento das ruas e dentro do editorial ia dizendo que o governo deveria ser mantido em nome da governabilidade. Foi quando isso se tornou insustentável que ela defendeu a renuncia do presidente (e não o impeachment). Mas depois, construiu uma bela campanha publicitária. A Abril colocou luzes verde amarela em seus prédios, lançou boton comemorativo, pra construir memória, dizer que foi ela que derrubou o Collor. O importante é a gente perceber que não é esse o movimento mais importante. O importante é a gente ter instrumentos contra hegemônicos que nos permitam construir uma visão efetivamente critica do que está acontecendo. É importante ressaltar que ela [Veja] sempre fala como se fosse a porta-voz dos interesses da nação, do país, da sociedade, e como se não fosse ela portadora de interesses de classe.

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