domingo, 28 de fevereiro de 2016

Uma História para o conformismo e a exaltação patriótica: crítica à proposta de BNCC /História

Por Gilberto Calil
Em 16 set. 2015, o Ministério da Educação tornou pública sua proposta de Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para as diversas disciplinas da educação básica, redigida por assessores indicados no dia 17 de junho do mesmo ano.[1]Os componentes curriculares de História não constavam naquela versão do documento, tendo sido divulgados apenas no final de outubro.[2] O documento geral, com 302 páginas, inclui objetivos gerais e componentes curriculares de quatro grandes áreas, abarcando 14 disciplinas. A despeito do atraso (para o qual desconhecemos explicações oficiais) e da consequente redução do tempo para discussão, os conteúdos de História foram certamente os que produziram maior polêmica, com a publicação de grande número de textos críticos e/ou propositivos.
A proposta deste texto é discutir o sentido político e ideológico da proposta apresentada para a área de História.[3] Antes, no entanto, é necessário referir rapidamente o contexto da proposição das bases nacionais e a forma como o debate vem sendo gerido pelo MEC.
Bases Nacionais para quê?
O que explica a proposição de Bases Nacionais no atual contexto da política educacional brasileira e quais foram as motivações do MEC para o encaminhamento da proposta em questão, com prazos de discussão claramente achatados?
Embora a definição de Bases Nacionais possa atender a objetivos e motivações diversas, a análise do professor Paulo Eduardo Dias de Mello dá indicações úteis para compreender o sentido específico desta proposição, claramente subordinada a metas relacionadas a fluxo escolar, ao controle vertical sobre o trabalho docente e à obtenção de resultados em exames padronizados. De acordo com ele, há clara subordinação a uma “lógica da prescrição diretiva, que não se agrega às atuações efetivas para investimento no professor e em sua autonomia profissional e curricular, nem vincula-se a iniciativas concretas de melhoria das condições de trabalho docente”. Ao contrário, nos marcos de uma perspectiva neoliberal, a proposta pretende sanar os problemas críticos da educação básica através de um currículo prescritivo que ataca frontalmente a autonomia docente: “Aos professores será exigido que assegurem aos seus alunos o ‘direito’ de aprender o que será examinado. Sua autonomia docente estará circunscrita à escolha do método, ou seja, do como irá ensinar o conteúdo a ser examinado, e menos na compreensão dos contextos das escolas e das situações de vida dos alunos”.[4]
Em um debate que se concentra exclusivamente nos componentes curriculares não há espaço para discutir os problemas cotidianos vividos no ambiente escolar e que são razão fundamental dos resultados insatisfatórios: corte de recursos, precarização do trabalho docente, baixos salários, fechamento de turmas e aumento do número de estudantes por turma, ausência efetivas de políticas de permanência dos estudantes, carência de estrutura e equipamentos, etc., etc., etc.
Autoritarismo e simulacro de discussão
O processo de construção das Bases Nacionais vem sendo marcado pelo autoritarismo em todas suas fases, desde a indicação dos especialistas que redigiram a proposta sem qualquer explicitação dos critérios adotados para sua escolha até a forma de gestão da chamada “consulta pública”. O pressuposto geral é que a prerrogativa de definir os conteúdos cabe ao MEC, e não às distintas áreas de conhecimento. O corpo de “especialistas” indicado pelo MEC muitas vezes está longe de expressar a heterogeneidade da área, como é claramente o caso de História.
A consulta pública é feita através de questionário fechado, nos moldes de pesquisa de “satisfação do cliente”, onde para cada conteúdo cabe apenas responder “concordo fortemente”, “concordo”, “sem opinião”, “discordo” e “discordo fortemente”. Tal formato impede a discussão, problematização ou crítica dos pressupostos gerais da área e seus eixos constitutivos (a única possibilidade aberta é a proposição de “novos objetivos”).
A consulta pode apenas produzir “sugestões”, cuja sistematização é prerrogativa do MEC e seus assessores e especialistas. Nela certamente as contribuições qualificadas de profissionais da área se perderão em meio a torrentes de sugestões produzidas com finalidades as mais diversas, incluindo-se desde “sugestões” de grupos religiosos fundamentalistas em defesa do ensino do criacionismo até críticas de saudosistas da ditadura militar. A tabulação de dados colhidos desta forma dificilmente produzirá um instrumento de análise qualificado.
Não há espaço para a discussão sobre a especificidade de cada campo do conhecimento e os objetivos e possibilidade a serem perseguidos na estruturação de seus componentes na educação básica. Pode-se discutir, por exemplo, se um conteúdo de História é ou não pertinente, mas não há espaço para discutir o que se pretende com o ensino de História na educação escolar.
Mesmo o debate público feito à margem dos espaços institucionais é prejudicado pelo prazo exíguo, que basicamente corresponde – novembro a março – ao período de final de ano letivo, férias docentes e início do novo ano letivo, quando a sobrecarga de trabalho e a dispersão produzida pelas férias coletivas tendem a inviabilizar um debate sistemático em torno da proposta por parte dos professores dos diferentes níveis e áreas.
A proposta de BNCC em História
As Bases Propostas para História são parte do capítulo sobre ciências humanas, juntamente com Geografia, Filosofia, Sociologia e Religião(!). A proposta é constituída por 200 componentes distribuídos entre as nove séries do Ensino Fundamental e Médio, sendo 61 relacionados ao 1º ciclo (do 1º ao 5º ano), 83 ao 2º ciclo (do 6º ao 9º ano) e 56 prescritos para o Ensino Médio.
Toda a estruturação e distribuição dos conteúdos é determinada pela opção “pela ênfase em História do Brasil”, supostamente justificada por quatro fundamentos:
Em primeiro lugar, por oferecer um saber significativo para crianças, jovens e adultos, pois conhecer a história brasileira é conhecer a própria trajetória
Em segundo lugar, o reconhecimento de que o saber histórico deve fomentar a curiosidade científica e a familiarização com outras formas de raciocínio, a partir do acesso a processos e problemas relacionados à constituição e conformação do Brasil, como país e como nação.
Em terceiro lugar, o reconhecimento de que tal opção faculta acesso às fontes, aos documentos, aos monumentos e ao conhecimento historiográfico
Por fim, a consideração de que a História do Brasil deve ser compreendida a partir de perspectivas locais, regionais, nacional e global e para a construção e para manutenção de uma sociedade democrática. (p. 244)
A argumentação é pouco convincente (outros saberes são também significativos; permitem fomentar a curiosidade científica; tem fontes facilmente localizáveis, etc.) e a opção produz inconsistências e insuficiências graves.
A seguir, a proposta indica títulos que pretendem traduzir o “enfoque predominante, mas não exclusivo” (p. 244) para cada série, redigidos em termos que pretendem expressar uma perspectiva de busca da diversidade e pluralidade: “Sujeitos e Grupos Sociais” (1º ano); “Grupos Sociais e Comunidades (2º ano); “Comunidades e outros lugares de Vivência” (3º ano); “Lugares de vivência e relações sociais (4º ano); “Mundos brasileiros” (5º ano); “Representações, sentidos e significados do tempo histórico” (6º ano); “Processos e sujeitos” (7º ano); “Análise de processos históricos (8º e 9º ano); “Mundos ameríndios, africanos e afro-brasileiros” (1º ano do ensino médio); “Mundos americanos (2º ano); e “Mundos Europeus e Asiáticos” (3º ano). A distribuição, no entanto, é enganosa: dos 19 conteúdos propostos para o 3º ano do Ensino Médio, supostamente dedicados aos “Mundos Europeus e Asiáticos”, a grande maioria remete à história brasileira, buscando nexos, vínculos e consequências de processos europeus ou asiáticos na História brasileira. Esta perspectiva é empobrecedora, pois processos como deslocamentos humanos ou a emergência do liberalismo são estudados sob uma lente redutora que procura basicamente fazer comparações ou identificar suas consequências para a história brasileira. Dentre as poucas proposições restantes, há formulações vagas como “Usar criativa e criticamente fontes históricas diversas para o estudo das culturas europeias e asiáticas” (CHHI3MOA040).
A cada série, os conteúdos estão distribuídos, ainda, em quatro eixos: “procedimentos de pesquisa”; “representações do tempo”; “categorias, noções e conceitos”; “dimensões político-cidadãs”. De acordo com os autores, “trata-se de uma tipologia para explicitar a operação predominante, mas não a única, em cada objetivo de aprendizagem” (p. 245). Não há justificativa para a definição destes eixos e é realmente difícil compreender o que os autores imaginaram ao propor um eixo como “representações do tempo” para uma área que tem o tempo (e não suas “representações”) como elemento constitutivo. A distribuição dos conteúdos entre os eixos parece muitas vezes aleatória, sem elementos que permitam compreender a conexão entre conteúdo e eixo.
Uma história patriótica
Não é apenas a história europeia e asiática trabalhada na 3ª série do Ensino Médio que é subordinada aos “nexos” e “vínculos” com a história brasileira: este é o procedimento constante que perpassa o conjunto dos componentes propostos. E os problemas não se restringem à “ênfase em História do Brasil” explicitamente defendida no documento, com a consequente redução do tempo destinado à abordagem dos processos históricos extranacionais, mas abarcam também a perspectiva com que a história nacional é abordada e a subordinação da história extranacional a seus nexos e vínculos com o Brasil.
Uma das maiores contradições para uma proposta que se pretende atenta às diversidades é o viés patriótico, nacionalista e brasilcentrista com que são enunciados os mais diversos conteúdos de História do Brasil, das séries iniciais ao Ensino Médio. O HHI5FOA054 (5ª série) propõe expressar “o que é ser brasileiro”, deixando evidente o pressuposto unificador e reducionista da existência de um “tipo brasileiro”; o HHI5FOA059 (5ª série) propõe problematizar os significados e os sentidos dos símbolos nacionais – hino, bandeira, brasão, selo. É difícil imaginar que crianças de 9 a 10 anos, no contexto de um currículo centrado na história nacional, tenham condições para uma “problematização” destes símbolos muito diversa daquela (in)existente nas famigeradas aulas de Moral e Cívica.
Muitos conceitos e designações já superados pela historiografia são reproduzidos sem qualquer problematização. É o caso dos “ciclos” da cana de açúcar, do ouro e da mineração e do café (CHHI7FOA085) e, pior, da naturalização do termo “conquista” para designar a submissão dos povos ameríndios pelos europeus, presente em inúmeros componentes (081, 086, 099, 100, 101, 106) reproduzindo uma perspectiva eurocêntrica.
Em diversos casos, há indicação arbitrária e injustificada dos aspectos a serem considerados no estudo de determinado processo. A julgar pela prescrição do documento, o Golpe de 1964 deve ser conhecido e compreendido “como resultado das tensões sociais gestadas desde o processo de Redemocratização,por meio do estudo das condições sociais no campo, das propostas de reformulação da educação e dos movimentos culturais urbanos” (CHHI9FOA137). A injustificada prioridade a estes três aspectos em detrimento de inúmeros outros fundamentais (agravamento da crise econômica, politização crescente do movimento operário, participação de empresários e militares na conspiração golpista; interferência do Estados Unidos, etc) determina a impossibilidade de uma compreensão de conjunto que leve em conta a articulação dos fatores políticos, econômicos e sociais que desencadearam o golpe – algo inteiramente factível para a faixa etária do 9º ano (13/14 anos).
Os conflitos sociais são apagados e há uma definição idealizada de sociedade civil que fundamenta a concepção liberal de cidadania que atravessa o documento. Ao propor o estudo da “Abertura política” “como resultado de demandas da sociedade civil organizada” (CHHI9FOA137), o documento ignora e omite a existência de um projeto de “distensão política” gestado no interior da ditadura e colocado em prática desde meados dos anos 1970, que condicionou fortemente os rumos do processo. O componente CHHI9FOA139 apresenta uma conceituação de sociedade civil restrita aos movimentos populares, mencionando explicitamente os movimentos negro, indígena, de mulheres e pela ampliação dos direitos das crianças e adolescentes. Deixa-se de considerar como parte da sociedade civil, portanto, todas as organizações constituídas pela classe dominantes, entidades empresariais e lobyes constituídos pelas grandes empresas, o que apenas reforça o sentido apassivador e idealizado da compreensão proposta.
O “resto do mundo” só existe para que o Brasil exista…
A abordagem dos diversos processos desenvolvidos nos continentes europeu, africano, asiático e mesmo no restante da América Latina é desorganizada pelo princípio geral que compreende “a História do Brasil como o alicerce a partir do qual tais conhecimentos serão construídos ao longo da educação básica” (p. 242). Os processos fundamentais constituidores do mundo moderno e contemporâneo são estudados não para que se compreenda sua historicidade própria, mas apenas sob o viés dos “nexos” e “vínculos” com a história brasileira. Já os processos relacionados à pré-história, ao mundo antigo e ao medievo, são quase inteiramente esquecidos, pois não oferecem tantas possibilidades de estabelecimento de “nexos” e “vínculos”.
Partir da história nacional para compreender processos relativos a realidades mais distantes é procedimento didático compreensível para as séries do primeiro ciclo (1ª a 5ª série), permitindo a progressiva familiarização das crianças com processos desconhecidos. Torna-se, no entanto contraproducente e redutor a partir da 6ª série e mais ainda no Ensino Médio, implicando na renúncia em compreender outras culturas e processos pelo que foram e são, subordinando sua compreensão à ênfase naquilo que mais se aproximar com a história brasileira.
São inúmeros os exemplos das distorções produzidas. A única referência à história humana anterior à escrita nos 200 componentes (CHHI6FOA069), que poderia ser desbodrada em diversas temáticas e para além da 6ª série, é articulada ao debate claramente menos abrangente “sobre as prováveis rotas do ser humano para a América, tais como via Estreito de Bering, via do Atlântico ou via do Pacífico” (CHHI6FOA070). A História Africana só é estudada a partir do século XVI, como se sua relevância fosse decorrência do tráfico de escravos (CHHI8FOA070). A Revolução Francesa – processo cuja importância para a conformação do mundo contemporâneo é indiscutível – é estudada apenas com o objetivo de identificar “os nexos entre os processos de Independência [na América] e as transformações ocorridas na Europa” (CHHI8FOA111) e para reconhecer “as incorporações do pensamento liberal no Brasil” (CHHI8FOA114). A busca por “nexos” ocorre também quando se propõe “reconhecer nexos entre o processo de reordenamento da mão de obra no Império e as transformações ocorridas na economia internacional, por meio do estudo do fim do comércio atlântico de escravos” (CHHI8FOA116).
Ao invés de indagar o passado com base nas questões do presente – o que seria um procedimento historiográfico mais adequado -, o que se propõe é pensar o estrangeiro com base na experiência nacional (naturalizada e tomada acriticamente), produzindo-se nexos forçados e empobrecedores e uma leitura anacrônica de processos passados interpretados em função de uma experiência particular e de um presente naturalizado.
A abolição do capitalismo
A mais surpreendente proeza da proposta é que em seus 200 componentes não há uma única referência ao sistema social e econômico vigente nos últimos três séculos, como também à classe social que nele é dominante. Os termos capitalismo, capital e burguesia estão inteiramente ausente da proposta, abolindo do estudo de História conceitos imprescindíveis para a compreensão do mundo contemporâneo.[5] A Revolução Industrial, processo decisivo para a conformação da realidade social tal como existe atualmente, é também inteiramente excluída dos componentes de História, sendo mencionada apenas nos conteúdos de Física! (p. 205, 210, 213 e 215). Sem capitalismo, sem burguesia e sem revolução industrial, é difícil imaginar o mundo em que vivem os elaboradores da proposta.
Também são excluídos inteiramente as movimentos de ideias e os processos que implicam em resistência ao capitalismo. Não há nas 302 páginas das BNCC uma única referência aos termos socialismo/socialista, comunismo/comunista, anarquismo/anarquista e marxismo/marxista, ainda que os componentes de História encontrem espaço para mencionar o stalinismo, em referência generalizante a “processos históricos tais como o fascismo, o nazismo e o stalinismo” (CHHI3MOA052). Logicamente também são apagados da História as Revoluções de 1848, a Comuna de Paris e a Revolução Russa. O século XIX está inteiramente ausente, e com ele o processo de afirmação e desenvolvimento do capitalismo, da mesma forma que as contestações e resistências que a ele se impuseram. Mesmo com a suposta ênfase na história latino-americana, também não há qualquer referência ao governo de Salvador Allende, a despeito de ter constituído experiência histórica original de proposição de transição pacífica ao socialismo.
A exclusão é evidente retrocesso, pois com todas as contradições e problemas, são processos que estão contemplados na maior parte dos currículos atualmente vigentes e que ficam excluídos, interditando radicalmente a compreensão do mundo contemporâneo e suas contradições e conflitos, ou levando a uma leitura superficial e harmoniosa de processos que em realidade são tensos e conflitivos. Por exemplo, é proposto para o 9º ano “Compreender o século XX como um momento de reordenação e reformulação das relações de trabalho, em função das transformações na economia mundial” (CHHI9FOA130). Na ausência de qualquer referência ao sistema capitalista e à burguesia, provavelmente as “transformações na economia mundial” apareçam como sujeitos de si mesmas, sem articulação com uma totalidade mais ampla que estabeleça seu significado e permita sua efetiva compreensão.
Uma história em migalhas
Para sermos justos, devemos reconhecer que “capitalismo” não é o único conceito explicativo abrangente que desaparece com a proposta das bases curriculares em História. Desaparecem também feudalismo, mercantilismo e escravismo (ainda que existam referências à escravidão, jamais compreendida como sistema). Com isto, fica realmente difícil compreender o que entendem os especialistas do MEC com o primeiro dos objetivos gerais enunciados para o Ensino Médio –“Entender a sociedade como fruto da ação humana que se faz e refaz continuamente”. Como é possível esperar que este objetivo seja atingido se, além de interpretarmos as experiências diversas tendo como referência a história brasileira, ainda abdicamos de conceitos e categorias de alcance explicativo mais amplo? Com estas opções, é difícil ir além de uma história em migalhas, constituída por fragmentos desarticulados, histórias particulares com pouca relação entre si e destituídas de qualquer determinação mais ampla.
O documento não enuncia a questão primordial “história para quê?”, ou “história no ensino fundamental e médio para quê?”. Começaríamos o esboço de resposta a esta questão pensando possibilidades de desnaturalizar o que nos aparece naturalizado, fetichizado e deshistoricizado nas relações sociais políticas, econômicas e culturais atualmente existentes. Propor a compreensão da história como fruto da ação humana que se faz e refaz continuamente poderia auxiliar neste caminho. Mas não é o que se concretiza com os componentes propostos, infelizmente.
A fragmentação é agravada pela exclusão quase total de todos os processos anteriores ao século XVI, reafirmando-se o pressuposto de que o sentido de tudo é determinado pelo início da constituição da Luso-América. Que possibilidade temos de compreender a historicidade das relações sociais com este pressuposto? Que diversidade e pluralidade é possível se o outro só nos interessa em sua relação e seus “nexos” conosco? Mais estranho ainda é observar que a omissão de diversos conteúdos coexiste com inúmeras repetições de outros, para a qual os autores da proposta apresentam uma justificativa pouco convincente: “as repetições que se observam em alguns títulos (…) objetivam apontar para a recursividade que caracteriza a progressão no processo de construção do conhecimento e de desenvolvimento do estudante” (p. 244).
Na redação de grande parte dos componentes, a perspectiva fragmentadora se evidencia com “sugestões” ou “exemplos” que propõem abordar conteúdos históricos a partir de aspectos particulares, muitas vezes bastante específicos e insuficientes para uma compreensão mais ampla. A utilização de termos e conceitos não problematizados – como por exemplo “poder”, “política” e “cultura” produz anacronismos flagrantes. Um exemplo são os componentes 100 e 101, que propõem estudar o “contexto político”, respectivamente, “da África subsaariana às vésperas da conquista” e “dos povos indígenas habitantes do território brasileiro ao tempo da Conquista”, sem cogitar que a noção contemporânea de “contexto político” é anacrônica e imprópria para a compreensão da organização social – simultaneamente política, econômica e cultural – dos reinos africanos e comunidades indígenas.
Os exemplos de escolha arbitrária e injustificada são inúmeros. A nota CHHI2MOA027 propõe a análise dos processos de independência das Américas “tais como a Independência dos Estados Unidos, Haiti e do Paraguai”. Por que esta escolha, em detrimento da Argentina e México, por exemplo, que são processos de impacto continental? O que é referido como “exemplo” não será tomado como percurso único pela editoras e produtores de materiais didáticos?
Algumas escolhas parecem totalmente arbitrárias e injustificadas, como a opção por discutir o impacto do 13 de maio para a população negra e o movimento negro (CHHI7FOA089), omitindo qualquer referência ao 20 de novembro, data que igualmente tem grande impacto e ressalta os aspectos de conflito e resistência; ou a escolha/indicação das colônias de São Vicente, Salvador, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Pernambuco e Maranhão, como aquelas nas quais devem ser estudadas as relações mantidas pelos colonos com os povos africanos e indígenas (CHHI8FOA102). Aqui não há como não pensar nos testes padronizados e deixar de ver os “exemplos” como indicação de conteúdos que deles constarão.
O componente CHHI9FOA136 propõe compreender a “conformação de uma noção de Brasil e de brasileiros, emergida da atuação política de setores médios urbanos e das políticas culturais do Estado Novo, por meio do estudo do Modernismo (Semana da Arte Moderna), Teatro Experimental do Negro e da política de estado para a cultura”. Por que a eleição destes processos em detrimento de outros tão relevantes como a emergência e atuação do movimento operário e a fundação do PCB? Para afirmar que a noção de Brasil e de brasileiros é produto da atuação de setores médios e do Estado?
A desestruturação da linha temporal na distribuição dos conteúdos acentua a fragmentação, pois dificulta o encadeamento histórico dos processos, muitas vezes prevendo o estudo de processos cujos antecedentes serão estudados apenas em anos posteriores. Já para o início do 2º ciclo (6ª série) propõe o estudo dos “processos de colonização ocorridos nas Américas, com ênfase na colonização portuguesa” (CHHI6FOA065). Isto será feito sem qualquer noção anterior relativa ao mundo moderno, ao mercantilismo e às condições gerais que tornaram possível o processo de colonização! Apenas no 8º ano será proposta a compreensão do contexto econômico de Portugal, e ainda assim sem qualquer referência mais ampla.
A democracia do capitalismo e a cidadania do consumidor
A perspectiva política e ideológica conformista e conservadora fica bastante explícita nas concepções que fundamentam o eixo “Dimensão Político-Cidadã”, que naturaliza a concepção liberal de democracia, com a opção por conceitos frágeis e apassivadores como “exclusão social” (CHHI7FOA094), em detrimento de outros de maior alcance explicativo como “exploração”. Difunde-se assim uma concepção prescritiva, moralizante e a-histórica de cidadania. O componente 134 menciona expressamente os “direitos e deveres trabalhistas e dos movimentos sociais de trabalhadores rurais e urbanos”, enquanto o 142 menciona a “luta pela ampliação dos direitos e deveres ao longo do século XX. (grifos meus).
Na quarta série do Ensino Fundamental, antes mesmo de serem apresentadas à qualquer noção sobre direitos sociais, as crianças aprenderão que “as relações de consumo são regulamentadas pela legislação, por meio de estudo de documentos como o Código de Defesa do Consumidor, identificando mudanças e permanências nessas relações ao longo do tempo” (CHHI4FOA044). Como em momento algum serão apresentadas à história e ao conceito de capitalismo, certamente entenderão o consumo de mercadorias como natural e inevitável, ainda que com “mudanças ao longo do tempo”.
Várias proposições reforçam a perspectiva patriótica, como “reconhecer-se como cidadão brasileiro” (CHHI6FOA077). A abordagem nacionalista leva inclusive à estranha formulação constante no componente 092, que propõe “reconhecer e discutir princípios dos direitos humanos e civis dos brasileiros”, desconhecendo a universalidade destes direitos que é proclamada em documento cujo estudo é proposto em outros componentes (CHHI4FOA043). Já o componente 140 nomeia o movimento dos trabalhadores como “movimento trabalhista”, uma designação que carrega significado específico vinculado ao varguismo e a uma determinada concepção sindical.
A perspectiva liberal implica também em forte individualização da História, em oposição aos avanços consolidados pela História Social, o que enseja forte ênfase nos sujeitos individuais em detrimento das forças sociais. Assim, o componente 081 propõe “Reconhecer o protagonismo dos sujeitos e dos grupos históricos no processo de formação do povo brasileiro” e o 083 sugere “Inferir, a partir de fontes diversas, o protagonismo de sujeitos em processos históricos no Brasil expressos em movimentos tais como a Confederação dos Tamoios (1556-1567). A Cabanagem (1835-1840) e a Balaiada (1838-1841)”. Pretende-se assim interpretar importantes movimentos sociais da história brasileira como produto de ações individuais. Já o componente 103 estabelece que se deva “Valorizar o protagonismo dos ameríndios, africanos, afro-brasileiros e imigrantes, em diferentes eventos da História do Brasil”. A despeito da redação genérica e imprecisa (o protagonismo de todos em diferente eventos), o provável é que enseje estudos fragmentários sobre ações e liderança individuais.
Começar de novo…
Não é possível corrigir pontualmente, emendar ou sanar deficiências desta proposta fazendo supressões acréscimos específicos. Ainda que se admita a necessidade de definição de uma Base Nacional Comum Curricular – o que está muito longe de ser consensual e deve ser objeto de discussão séria e sistemática -, a elaboração dos componentes de História (assim como de todas as demais disciplinas) precisa ser resultado de um processo amplo, cujo debate abarque os pressupostos, eixos, objetivos e conteúdos (e não apenas fragmentadamente estes últimos). Só assim será possível produzir um conjunto de conteúdos que possibilite que os estudantes compreendam a conformação histórica do mundo em que vivem, que dominem conceitos históricos fundamentais e que possam compreender o caráter histórico (e portanto transitório) das relações sociais atualmente vigentes.
Notas
[1] MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Portaria n. 592, de 17 jun. 2015. Diário Oficial da União, 18 jun. 2015, seção 1, p. 16, Disponível em: http://bit.ly/21qoWj4
[2] MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Base Nacional Comum Curricular. 25 out. 2015. Disponível em: http://bit.ly/21qoWj4
[3] Grande parte dos textos críticos produzidos avalia as inconsistências e prejuízos dentro de campos e sub-áreas específicos, produzindo críticas consistentes mas que muitas vezes não chegam a explicitar a relação entre os problemas identificados com a concepção geral que orienta as BNCC de História.
[4] MELLO, Paulo Eduardo Dias de. Base Nacional Comum, Direitos e Objetivos de Aprendizagem e Desenvolvimento e o IDEB: nexos, contextos, rastros e o lugar do professor, p. 23-24. Disponível em http://bit.ly/1STwUQb , p. 23 e 24.
[5] A omissão não é exclusiva da proposta de História, pois nas 302 páginas do documento o termo burguesia não é grafado nenhuma vez, e o capitalismo uma única vez, nos componentes de sociologia (CHSO3MOA009).
FONTE: Blog Junho

Assista ao vídeo: "Doutores da Economia: Marx - Episódio 3"

Programa da BBC 

Clique no link abaixo para assistir ao vídeo:




Doutores da Economia: Karl Marx e a Economia Marxista

Karl Marx previu que o capitalismo estava condenado. Durante décadas, suas teorias foram ignoradas. No entanto, ultimamente, outros pensadores econômicos estão começando a perguntar se o capitalismo é inerentemente instável. 

Marx previu que cada crise econômica seria pior que a anterior, até, finalmente, o capitalismo entrar em colapso. Mas, como ele estava sempre à beira da falência, poucos acreditaram nele. As teorias de Marx oferecem uma visão surpreendente para a catástrofe das hipotecas sub-prime e as causas do crash de 2008. É hora de levar Marx a sério?


sábado, 27 de fevereiro de 2016

Saneamento básico é fundamental no combate ao mosquito da dengue

"Não vamos resolver só pedindo para as pessoas tirarem água do pratinho", afirma a professora da FAU-USP Ermínia Maricato, lembrando que milhões de pessoas vivem excluídas da infraestutura das cidades

Região e Redes – Tão urgente quanto a reforma política e tributária, o debate sobre a reforma urbana subiu ao topo da agenda em meio à séria crise de saúde pública causada pela infestação do mosquito Aedes aegypti, transmissor do zika e do chikungunya, além dos vírus causadores da dengue e da febre amarela.

Um olhar para além da saúde pública se faz necessário para entender o que nos faz conviver com esse mosquito há décadas. Para tratar da complexidade do tema, o site de pesquisadores Região e Redes, que defende a universalização da saúde no Brasil, ouviu a professora livre docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) Ermínia Maricato.

Na entrevista, a professora critica o problema da exclusão nas cidades, que deveria ser o foco principal da reforma urbana. "Esqueceu-se da cidade dos pobres, que depois do boom imobiliário se expandiu mais ainda. Esquecemos das políticas públicas de saneamento e habitação. Construíram casas sem olhar onde é local de habitação", afirma.

A professora da FAU entende a reforma urbana como o direito à cidade. "É a democracia urbana. É a antibarbárie. Reforma urbana é a luta de classes reconhecida nas cidades, enquanto palco de relações sociais", afirma.

Sobre a questão do impacto causado pelo mosquito da dengue, ela diz: "Não vamos resolver só pedindo para as pessoas tirarem água do pratinho para evitar o mosquito. Mas a mídia está criando uma condição neste país que não tem quem se engaje. Porque parece que são todos bandidos, corruptos, sacanas. É uma desinformação diária fantástica o que está em curso".

Além de estudiosa do tema, Ermínia formulou a proposta de criação do Estatuto das Cidades e do Ministério das Cidades. É autora dos livros O impasse da política urbana no Brasil e Brasil cidades (Vozes, 2011). “Não adianta fazer o urbanismo do espetáculo passando por cima de décadas de demandas atrasadas”, afirma a professora, que reconhece nos novos movimentos sociais uma esperança de discussão do direito à cidade.

Grande parte da infestação do mosquito Aedes aegypti e da prevalência das doenças dele decorrentes são notificadas em bairros pobres e periféricos. Como esse problema é avaliado nas discussões sobre desenvolvimento urbano?

Vemos nas periferias quatro problemas seríssimos na área do saneamento: água, esgoto, drenagem de águas fluviais e coleta de resíduos sólidos, que vão formando barreiras. Córrego não é mais córrego. É área de descarte de lixo. Ali se tem a condição perfeita para a produção de mosquito. Estou falando de casos de São Paulo, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre. Em cidades praianas, o problema é ainda mais grave: tem as palafitas, os mangues. Mas a política urbana foi reduzida. É voltada para o mercado imobiliário com o (Programa) Minha Casa, Minha Vida, expulsando os pobres para os conjuntos habitacionais fora da cidade. Foi assim (que ocorreu) o fomento de uma especulação imobiliária fantástica.

Esqueceu-se da cidade dos pobres, que depois do boom imobiliário se expandiu mais ainda. Esquecemos das políticas públicas de saneamento e habitação. Construíram casas sem olhar onde é local de habitação. Não cabe na cabeça dos economistas que a localização é uma variável econômica. Se você constrói fora da cidade, depois tem de levar a cidade para lá. Isso é caríssimo. Custa caro o deslocamento diário das pessoas até as fontes de trabalho e de emprego.

Desde 2007 percebo que os espaços institucionais estão mortos. Por isso, defendi que tínhamos que atuar na sociedade, nos movimentos sociais. Nós temos vivido uma absoluta morte do pensamento técnico e científico, uma valorização do senso comum e um recrudescimento do pensamento nazifascista. Ainda assim, algumas cidades têm avançado muito apesar do cenário adverso. Por exemplo, São Paulo, a capital do capital, a capital da classe média, da ideologia do condomínio, tem tido avanços importantes dentro de uma conjuntura bastante desfavorável.
Se o saneamento é básico e com impactos em diversas áreas, por que ainda não aparece como prioridade dos governos?
Saneamento trata de quatro questões: água, esgoto, drenagem e resíduos sólidos. Se você não coleta os lixos, não se salvam os cursos d’água das cidades. O lixo vai direto para lá.
Em São Paulo, a capital do capital, os rios e córregos são canais de esgotos. Para piorar, a engenharia brasileira disseminou o tamponamento de córregos com avenidas asfaltadas em cima. Isso não resolve problema algum. Só piora, e é caro.
No Brasil, temos de tirar os mercadores das decisões sobre o investimento do dinheiro. Isso tudo tem a ver com financiamento de campanha. Por isso, tem de acabar com esse financiamento empresarial, porque eles passaram a definir quais obras seriam feitas. Anos atrás, nós lutamos aqui em São Paulo para cancelar o início das obras de um túnel que não tinha prioridade para a cidade e ia custar R$ 1,5 bilhão. Era o túnel da operação Águas Espraiadas, uma obra imobiliária e não viária. Nem ônibus passava pelo projeto do túnel. Mas é uma obra definida pelas empreiteiras e pelo então prefeito. O que aconteceu com as prioridades?
E o papel do saneamento para evitar a proliferação de mosquitos?
Saneamento deveria ser a prioridade. A falta de drenagem de águas fluviais cria os mosquitos. O córrego não pode ficar cheio de lixo parado. Por isso, precisamos recuperar rios, córregos. Temos poças que não acabam mais. Mas não. Para afastar o mosquito joga-se veneno.
A questão do saneamento é fundamental e básica nessa discussão sobre o combate à malária, febre amarela, dengue e à febre do zika e do chikungunya. Nós temos hoje mais de 2 milhões de pessoas em áreas de proteção de mananciais na Região Metropolitana de São Paulo. Não é um problema de um prefeito, mas de muitos prefeitos e do governador.
Como está definida a responsabilidade pelo saneamento entre os governos?
A competência para o desenvolvimento urbano não é federal. É municipal em casos de municípios isolados. E é metropolitana quando compartilhada entre estado e município. Agora, nós temos o Estatuto da Metrópole, mas tudo isso foi esquecido. O que resultou desse período todo foi um arcabouço legal que tem seu ápice com a criação do Estatuto das Cidades e que o Judiciário ou os operadores do direito desconhecem solenemente. É muito impressionante você ver juiz dar despejo ignorando totalmente a lei. Hoje, se você olhar a Constituição Brasileira, o Estatuto das Cidades e os Planos Diretores, verá que não é simples determinar o despejo de uma comunidade. Até porque, muitas dessas propriedades, sem um registro muito correto, estão cumprindo a função social da propriedade, prevista na Constituição e no Estatuto das Cidades.
É importante que a questão urbana seja de âmbito local. Conquistamos isso na Constituição de 1988. Dizíamos que era preciso prestigiar a democracia local. Então, o desenvolvimento urbano, a questão do saneamento e do transporte são de competência urbana local. O próprio governo federal, em vez de cobrar dos municípios, passou a centralizar muitas coisas. Os movimentos sociais também fizeram com que o governo federal decidisse mais. Mas não é competência federal decidir sobre a ocupação do solo de uma cidade ou região metropolitana. No máximo pode estabelecer diretrizes.
Existe alguma estratégia para que as questões referentes às cidades sejam pensadas sob uma ótica regional?
Existe. Foi aprovado no ano passado o Estatuto das Metrópoles (http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13089.htm). Aliás, nós somos ótimos com leis. Fomos elogiados na ONU pelo arcabouço legal que avançamos. Em 2005, foi aprovada a lei de consórcios públicos, que é essa que permite aos municípios se organizarem nas regiões. Temos a Lei do Saneamento Básico, de 2007. A dos Comitês de Bacias, que são obrigatórios e que são intermunicipais. A Política Nacional de Mobilidade Urbana, de 2012, a Lei de Resíduos Sólidos, de 2012. Tivemos nos últimos 30 anos uma reforma legal geral. Existe a orientação para se ter uma “consertação” regional.
Então, o que impede de avançarmos nesse sentido e de forma mais rápida?
A questão é de poder político. Na questão urbana como um todo, nós mais avançamos quando não tínhamos dinheiro. Isso é incrível. Foi nas décadas de 1980 e 1990. Avançamos no sentido de combate à desigualdade, para ampliar a democratização com a participação popular nos conselhos e com orçamento participativo. Claro que o problema do saneamento é urbano e é territorial, mas o engajamento da sociedade é fundamental. Não vamos resolver só pedindo para as pessoas tirarem água do pratinho para evitar o mosquito. Mas a mídia está criando uma condição neste país que não tem quem se engaje. Porque parece que são todos bandidos, corruptos, sacanas. É uma desinformação diária fantástica o que está em curso.
O saneamento é um dos pontos-chave na questão urbana no cenário atual? Além das doenças transmitidas por mosquitos, quais são os indicativos de que a reforma urbana é imprescindível no Brasil?
A necessidade da reforma urbana salta aos olhos quando se constatam as condições de vida da maior parte dos trabalhadores que vive segregada nos bairros periféricos ou em municípios-dormitórios. Ou quando se observa o sacrifício diário que é imposto nos transportes coletivos. Um capítulo especial tem sido dedicado às mulheres e jovens. Um grande exército de trabalhadoras domésticas (aproximadamente 30% de chefes de família são mulheres nas regiões metropolitanas) abandona seus filhos em bairros periféricos para passar o dia trabalhando e circulando com a finalidade de obter rendimentos que não passam de dois salários mínimos. Os jovens vivem uma espécie de “exílio na periferia”, já que não há transporte acessível e eficiente para sair do bairro, que, muitas vezes, não tem escolas adequadas, centros esportivos e culturais. Eu ouvi queixas de jovens que não podiam ir ao centro ver um show ou filme e voltar para casa após a meia-noite, pois os ônibus não circulam após esse horário.
A vida nessa “subcidade” não está imune às imposições da máquina de alienação: felicidade é consumir. A violência é um resultado absolutamente visível e previsível, potencializada por organizações criminais que ocupam o espaço na ausência do Estado ou, por outro lado, potencializada pela sua presença, por meio de uma polícia violenta que conhece raça e cor. No mais, predomina a política do favor.
Reforma urbana é direito à cidade. É a democracia urbana. É a antibarbárie. Reforma urbana é a luta de classes reconhecida nas cidades, enquanto palco de relações sociais.
Outros aspectos da nossa realidade, que reafirmam a necessidade da reforma urbana, dizem respeito ao meio ambiente. A forma de expansão descontrolada das metrópoles no Brasil – e elas fornecem um modelo para as demais cidades – compromete esgotos domésticos, os rios, córregos, lagos, lagoas e praias. Os mais pobres não cabem nas cidades – mais de 80% do déficit habitacional encontram-se nas faixas entre zero e três salários mínimos – e, como precisam inevitavelmente de um lugar para morar, ocupam encostas íngremes, mangues, dunas ou Área de Proteção de Mananciais (APM).
Em São Paulo, aproximadamente 2 milhões de pessoas moram nas APM. E isso não se dá por falta de leis de proteção ambiental. Essas áreas não interessam ao mercado imobiliário devido à legislação proibitiva. São as áreas que sobram para os que não têm lugar na cidade formal: áreas de proteção ambiental e áreas de risco de desmoronamento. Outros aspectos do desastre ambiental, decorrentes desse predatório padrão de uso e ocupação do solo, estão na impermeabilização contínua da superfície da terra, incluindo o tamponamento de córregos, o que acarreta frequentes enchentes, poluição acentuada do ar e expansão horizontal desmedida, reforçando a dependência em relação ao automóvel.
Como o nível de desenvolvimento brasileiro contribuiu com a atual situação urbana dos grandes centros brasileiros, incluindo os problemas de saúde pública?
A marca do subdesenvolvimento está presente nas características da rede de cidades com grandes metrópoles que centralizaram e centralizam as relações econômicas com o interior e o exterior – esse foi um dos principais objetos do livro Imperialismo e Urbanização na América Latina, organizado por Manuel Castells. E está também nas características intraurbanas. Apesar da reestruturação produtiva, globalização, financeirização e ideário neoliberal, eu continuo achando que o viés patrimonialista assegurou às elites brasileiras uma relação vantajosa diante dos interesses capitalistas internacionais na produção das cidades. Estou de acordo com (Carlos) Lessa e (Sulamis) Dain. A captura da renda fundiária ou imobiliária são prerrogativa dessas elites locais ou nacionais. De um lado, um mercado altamente especulativo e, de outro, a segregação, exclusão ou apartheid territorial remetendo grande parte da população para fora das cidades ou para favelas. São duas partes da mesma moeda.
A autoconstrução ilegal da moradia fora das áreas urbanizadas é determinada pelos baixos salários e pelo mercado restrito e excludente. À industrialização dos baixos salários corresponde a urbanização dos baixos salários. Por causa desse problema estrutural, o Estado não tem o controle sobre o uso e a ocupação do solo urbano em toda a sua extensão. A legislação urbanística se aplica apenas a uma parte da cidade que é dominada pelo mercado imobiliário capitalista, stricto sensu. Esse padrão de uso e ocupação do solo, que tem um exemplo nos municípios-dormitórios das regiões metropolitanas, não pode ser desligado da baixa e precária mobilidade decorrente da pouca importância dada aos transportes coletivos.
É possível vencer esse atraso?
Durante muitos anos eu achei que era. Retomamos a proposta de reforma urbana iniciada em 1963 e, na luta contra a ditadura, construímos um movimento nacional forte e diverso, com participação de lideranças sociais, sindicais, ONGs, pesquisadores, professores universitários, urbanistas, engenheiros, advogados, assistentes sociais, sanitaristas etc. Elegemos parlamentares, prefeitos e até senadores. Conquistamos um significativo arcabouço legal (Constituição Federal de 1988, Estatuto da Cidade, Planos Diretores Participativos, Marco Regulatório do Saneamento, Lei Federal dos Resíduos Sólidos, Lei Federal da Mobilidade Urbana) e institucional (Ministério das Cidades, Conferência Nacional das Cidades e centenas de conselhos participativos em todos os níveis de governo). Enquanto os investimentos estavam escassos, entre os anos 1980 e 1990, vivemos um período muito criativo nos governos locais, com experiências que ficaram famosas no mundo todo, como orçamento participativo, programa CEU (Centro Educacional Unificado), urbanização de favelas etc. Estamos falando de reformas que podem conviver com relações capitalistas numa sociedade mais democrática. Quando o governo federal retomou os investimentos – chamado por alguns de neodesenvolvimentismo –, as cidades foram tomadas de assalto por alguns capitais: empreiteiras de construção pesada (infraestrutura, em especial rodoviária), incorporadores imobiliários e indústria automobilística.
A taxa de desemprego nunca foi tão baixa desde que é registrada. Mas as cidades explodiram, seja pelos incríveis congestionamentos viários – o que atingiu também a classe média –, seja pelo aumento fantástico dos preços dos imóveis e aluguéis reproduzindo, em novas bases, a segregação e a exclusão urbanas. Com as obras da Copa do Mundo e a especulação imobiliária, esse impacto nas cidades se aprofundou. Os subsídios aos automóveis duplicou o número de carros em poucos anos. Os subsídios à moradia, em contexto de mercado fundiário e imobiliário sem controle, impactaram o preço da terra e dos imóveis.
A proposta de reforma urbana tinha como núcleo central a reforma fundiária. Mas a função social da propriedade ficou apenas no papel. Ainda que esse papel seja a Constituição Federal e a Lei Federal Estatuto da Cidade. É preciso ainda dois aspectos políticos que contribuíram com essa derrota da utopia da reforma urbana, além, evidentemente, da conjuntura capitalista internacional: primeiro, as forças que propuseram a reforma urbana foram engolidas pela institucionalidade, assim como alguns partidos de esquerda, e perderam a capacidade transformadora; segundo, o financiamento das campanhas eleitorais, especialmente na escala local, está imbricado com as forças que têm nas cidades seu grande negócio.
Isso posto, o que é possível fazer para vencer essa barbárie que se instalou nas cidades brasileiras?
Na escala da política urbana, e isso é competência do poder municipal, aplicar as leis, os programas e planos diretores que ficaram nas gavetas e nos discursos. O transporte coletivo, por exemplo, é prioridade legal em todos os planos diretores, mas na prática é o carro e o rodoviarismo que comandam a mobilidade e os investimentos em consonância com o mercado imobiliário. Isso quer dizer que túneis, pontes, viadutos, novas avenidas, além de se prestarem para a visibilidade que o marketing eleitoral explora e render dividendos para campanha eleitoral, agregam valor às propriedades localizadas nos seus arredores. A proposta de reforma urbana, com ênfase na função social da propriedade e no IPTU progressivo, não foi implementada com a finalidade de democratizar as cidades.
Na escala metropolitana, precisamos avançar numa gestão compartilhada. Evitar que cada município aponte um rumo diverso, ou sem levar em consideração o outro, numa região em que a urbanização é contínua e desconhece limites institucionais. Nas metrópoles não há mais solução municipal para políticas de habitação, transporte, saneamento ambiental, drenagem, coleta e disposição final do lixo, coleta e tratamento de esgoto, captação e distribuição da água, além de saúde e educação. A Constituição de 1988 remeteu à esfera estadual a competência da definição de regiões metropolitanas e sua gestão. Mas os governadores e os legislativos estaduais não querem afrontar os municípios e suas políticas paroquiais. Esses desafios ainda se mantêm atualizados.
Assim como outras questões sociais, econômicas e políticas estruturais, como uma reforma urbana pode contribuir com o desenvolvimento, em seu sentido mais amplo, da sociedade brasileira?
A luta salarial não dá conta de melhores condições de vida nas cidades. Os governos Lula e Dilma lograram melhorar a taxa de salários. No entanto, essa melhora que permite comer melhor, comprar motos, carros, eletrodomésticos, não permite a compra de melhores transportes coletivos. Porque o automóvel não resolve o problema. Também não impede o avanço de epidemias como a dengue. Há de se fazer reformas e uma delas passa pela terra urbana ou terra urbanizada. Além do que foi apontado, poderíamos calcular o custo social dessa cidade espoliada que beneficia apenas alguns. Acho incrível que os economistas não reconheçam o impacto que a especulação imobiliária tem na inflação. Eu vivo isso cotidianamente no meu bairro com o preço dos aluguéis, do estacionamento, do cafezinho etc.
Temos alguns estudos que revelam o custo das aproximadamente 40 mil mortes anuais e perto de 400 mil feridos no trânsito ao sistema previdenciário. Temos estudos que mostram o impacto e o custo da poluição do ar na saúde das pessoas. Temos ainda estudos que mostram o custo das horas paradas no trânsito, mas como disse alguém “tudo isso contribui para aumentar o PIB”. Até mesmo os doentes nos hospitais. A professora Tania Bacelar (economista e socióloga) lembra sempre dessa invisibilidade do espaço e do território em nossos debates nacionais. No entanto, sei que a resposta a essa pergunta não é simples.
Em artigo publicado na revista 'Política Social e Desenvolvimento', você menciona que “exceção é mais regra do que a exceção e a regra é mais exceção do que regra”, no cotidiano das cidades. O que isso significa?
Essa frase do teatrólogo Bertold Brecht (1898-1956) expressa bem a dialética presente nas cidades brasileiras, onde a lei se aplica de acordo com as circunstâncias. Grande parte da população urbana, exatamente a de mais baixas rendas, mora ilegalmente, desconhecendo legislação de parcelamento do solo, ambiental, de zoneamento, de código de obras e edificação etc. Essa ilegalidade parece fornecer um chão para todas as outras: não há polícia, cortes ou tribunais para a solução de conflitos. Os direitos básicos previstos em lei não são observados. A proporção dessa população varia conforme a cidade e a região do país. No Norte e parte do Nordeste mais de 50% da população urbana moram na cidade ilegal, onde “a exceção é mais regra que exceção”. Isso é, sem dúvida, chão fértil para a violência.
Interessante lembrar como contraponto: a legislação e os planos diretores são detalhistas e os procedimentos de controle do uso e ocupação do solo são profusamente burocráticos.
A sociedade brasileira, que se sente cada vez menos representada por seus governantes, pode delegar as discussões e a realização de uma tarefa dessa magnitude exclusivamente aos políticos?
Não há a menor dúvida de que precisamos de uma reforma política no país. Os interesses do agronegócio e da especulação imobiliária são dominantes no Congresso Nacional e isso tem a ver com financiamento de campanha.
Para a reforma urbana precisamos também combater o analfabetismo urbanístico ou geográfico, que atinge também muitos economistas, advogados etc. A terra é um componente que se renovou na globalização financeirizada. Cada pedaço de cidade é único. A aplicação da função social da cidade, da função social da propriedade e do IPTU progressivo são fundamentais. A especulação imobiliária empobrece as cidades. Mas, muitos a veem como progresso e desenvolvimento. A universidade teria uma tarefa importante aí.
Na década de 1960, os partidos de esquerda defendiam a necessidade de uma reforma urbana no Brasil. Hoje, quem são os defensores?
Penso que num determinado momento, entre 2007 e 2013, a reforma urbana ficou totalmente esquecida. Parecia a alguns que um montão de obras iria resolver os problemas do desenvolvimento do país e das cidades. Acontece que as obras não obedeceram a alguns pré-requisitos: a precedência de uma reforma fundiária/imobiliária e a obediência a um planejamento baseado nas necessidades sociais. Eu costumo dizer que são obras sem plano e plano sem obras. Estamos em dívida com o transporte coletivo há décadas. Não adianta querer fazer o fetiche (urbanismo do espetáculo) do futuro trem bala, monotrilho, passando por cima de décadas de demandas atrasadas. Os lobbies atuam nas câmaras municipais, assembleias legislativas, antecâmaras de governos e partidos sem descanso. Mas acho que uma nova geração vem aí. Jovens do MPL (Movimento Passe Livre), Intervozes, Levante Popular da Juventude, MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) estão começando a construir uma unidade popular que tem muito a ver com cidade e democracia. Constatei a busca dessa unidade em algumas cidades, já que sou muito demandada para falar a eles. Claro que o momento é de muita tensão, já que o jogo dos conservadores é pesado, o que inclui, evidentemente, a grande mídia.
Como a questão urbana é muito complexa, vejo como muito importante o papel dos profissionais de arquitetura, urbanismo, engenharia, assistência social, agrônomos, paisagistas, médicos, sanitaristas, economistas, entre outros. Mas é uma minoria que tem o pé na realidade e tem propostas concretas para a solução de problemas. Abundam profissionais que vendem ideologia sob a forma de resultados práticos. No Judiciário, a legislação urbana é majoritariamente desconhecida. Mas existe no Brasil uma expertise considerável ligada a problemas urbanos.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Vídeo: Introdução ao Marxismo, por Mauro Iasi

Qual é a atualidade do marxismo hoje? Por que ele ainda incomoda tanto? Por que todas as formas conservadoras e reacionárias sempre se levantam atacando o marxismo, não apenas no debate acadêmico, teórico, mas no calor da luta de classes? 



Ver "La Dictadura Perfecta"


Una película mexicana de 2014 del género comedia y sátira política, que confronta temas serios, de manera cómica, entretenida e inteligente. Tiene como tema principal la manipulación que tiene los medios de comunicación sobre la sociedad.






quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Disponible para descargar las Obras Completas de Lenin en PDF

Tomo I al Tomo XVII





Proyecto de digitalización y distribución gratuita en curso siendo realizado por los camaradas del Proyecto Nadia de Ediciones Emancipación en base a la edición de la Obras Completas de Akal (Madrid).

el Tomo I 

https://mega.co.nz/#!PglkCTAZ!xwDGQlCremqnSBjYiS9KlfAuD5Hqv_Mk-LuazlJzl6o

el Tomo II
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el Tomo III
https://mega.co.nz/#!SosDSTAZ!WaEmeb86RNXic-hEVksPt_psOl1k5IonWVLY-0NRcsw

el Tomo IV
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el Tomo V
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el Tomo VI
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 el Tomo VII

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el Tomo VIII
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el Tomo IX
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el Tomo X
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el Tomo XI
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el Tomo XII
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el Tomo XIII
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el Tomo XIV
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el Tomo XV
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el Tomo XVI
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el Tomo XVII
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