domingo, 31 de maio de 2020

Em PDF gratuito: "Ideias para a luta" (Indicação da Expressão Popular para a batalha das ideias)


No final do século XX, diante da queda do bloco soviético e da ofensiva neoliberal, a esquerda internacional encontrou-se diante de uma crise teórica, pelo abandono do materialismo-dialético como referencial de análise da realidade; uma crise programática, decorrente da primeira, que a deixou incapaz de compreender as transformações nos mundos do Trabalho e do Capital para superá-las; e uma crise organizativa, diante da incapacidade de seus instrumentos de responderem aos desafios dos novos tempos.

Autora desta reflexão, a cientista política e militante Marta Harnecker não depôs as armas, nem se rendeu à pós-modernidade, ao contrário, se manteve firme recorrendo sempre à análise rigorosa e à pesquisa profunda, que marcam sua trajetória por quatro décadas, a partir dos aprendizados e das contradições dos movimentos políticos latino-americanos.

Em Ideias para a luta, ela nos oferece um guia dos desafios a serem enfrentados para a construção das lutas sociais neste século. Neste trabalho, destaca-se o papel do instrumento político, a ferramenta portadora de um projeto para a sociedade, não apenas de uma categoria ou setor social. Porém, de maneira alguma, um instrumento engessado por modelos e fórmulas importadas ou pré-concebidas. Ao contrário, uma organização produzida e alimentada pelas lutas sociais que não se limita pela luta institucional, e que não vê os movimentos populares como correia de transmissão de um centro iluminado e vanguardista.

Desde o método de direção ao papel da militância e da democracia interna, alcançando os programas e pautas de mobilizações, Ideias para a luta oferece uma teoria resultante da prática, ao mesmo tempo em que se coloca à disposição para construir novas práticas. Trata-se de uma obra imprescindível para pensar e reconstruir a esquerda e a luta do socialismo no século XXI.

Você pode baixar de forma gratuita diretamente CLICANDO AQUI ou seguir com a compra do livro digital e contribuir com o projeto editorial popular da Expressão Popular

MAIS INFORMAÇÕES: Editora Expressão Popular

quinta-feira, 28 de maio de 2020

¿Qué Patrimonios de la Humanidad atesora África?

El turismo en el continente africano se ha visto quebrantado debido al impacto de la pandemia del nuevo coronavirus. Sin embargo, la naturaleza y la cultura de África están colmadas de una exótica belleza que se evidencia en los patrimonios de la humanidad de su territorio decretados por la Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura (Unesco).

A solo unas horas de haberse conmemorado el Día de África, este 25 de mayo, compartimos imágenes de estos asombrosos sitios



El desierto del Namib, ubicado en Namibia, es el único desierto costero del mundo. Está compuesto de dunas y formaciones fósiles transportadas por el viento durante siglos, y fue decretado como Patrimonio de la Humanidad de la Unesco en el año 2013. Foto:The New York Times.


Las espectaculares imágenes del agua cayendo por los 100 metros de altura de Las cataratas de Victoria del río Zambeze, forman ya parte del pasado. Este Patrimonio de la Humanidad (1989) se ha visto gravemente afectado por las sequías a causa del cambio climático. Foto:BBC.




Tombuctú es una ciudad situada al norte de Malí, reconocida por su papel en la historia del islamismo en el continente africano durante los siglo XV y XVI. En 2015, tres años después de ser saqueados y demolidos, los mausoleos de los santos de Tombuctú fueron restaurados; 16 de ellos forman parte del Patrimonio de la Humanidad de la Unesco. Foto:Reuters.




Declarada Patrimonio de la Humanidad por la Unesco en el año 1979, Cartago es actualmente una de las más importantes ciudades de la República Tunecina. Allí se avistan las Termas de Cartago, y otras ruinas que exhiben los restos del Imperio Romano en la africana Túnez.. Foto:Rutas de escape.




La isla de Mozambique, Patrimonio de la Humanidad de la Unesco en 1991, consta de una historia marcada por el comercio de esclavos. Ubicada en en la región norte de Mozambique, era frecuentada por árabes que proseguían su comercio de siglos con el Mar Rojo, Persia, la India y las islas del Índico. En el año de 1507 los portugueses ocuparon la isla, construyendo la pequeña fortificación. Foto:Kaskazini.



El Bosque tropical de Atsinanana, en Madagascar, fue añadido a la lista de Patrimonios de la Unesco en 2010, para su conservación, debido a la caza de lémures, la tala forestal ilegal y el tráfico de maderas preciosas de este ecosistema que alcanza un 90% de carácter endémico por su separación del resto de África. Foto:Wildmadagascar.




El Sangha Trinational, es una zona boscosa conformada por varios parques nacionales y situada entre los estados de Camerún, la República Centroafricana y la República del Congo, que alberga numerosas especies de elefantes, gorilas, aves tropicales, cerdos salvajes y antílopes, entre otras bellezas naturales que la llevaron a ser declarada Patrimonio de la Humanidad por la Unesco en el año 2012. Foto:Unesco.



FUENTE: Cubadebate

quarta-feira, 27 de maio de 2020

A história do antimaquiavelismo: um gênero da literatura política.

Machiavelli demoníaco

Por Alvaro Bianchi


Maquiavélico! Como o nome de um modesto secretário florentino, amante da liberdade, do povo e da República, se transformou em adjetivo que denota um comportamento pérfido, falso e malévolo? Quantos personagens há na obra de Maquiavel que poderiam ter ocupado esse indesejado lugar, o de dar nome ao mal: os cruéis Agátocles, Oliverotto de Fermo e Ramiro de Orco; o implacável César Bórgia; o obstinado Giuliano della Rovere. É verdade que a fama de Nicolau Maquiavel em Florença não era das melhores, e quando ocupava o posto de segundo secretário foi denunciado duas vezes: uma por práticas sexuais condenadas e outra por apropriar-se de documento oficial. Mas certamente não merecia esse adjetivo.

Talvez seja essa fama e as inimizades que angariou em Florença, ao lado daquela “grande e continua malignità di fortuna” da qual sempre reclamou, que fizeram a publicação de suas obras principais demorar tanto – O príncipe, Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio e História de Florença. Foi apenas em outubro de 1531, quatro anos depois da morte do autor, que o tipógrafo Antonio Blado, de Roma, publicou os Discursos. O príncipe saiu alguns meses mais tarde, em janeiro de 1532, e as Histórias em março. Pouco depois apareceram em Lyon, na França, as Óperas toscanas de seu ex-amigo, o poeta Luigi Alamanni, nas quais é feita referência jocosa a um “áureo livro moral”, que intérpretes julgaram ser O príncipe.

Alamanni, exilado na França depois de ter participado de uma fracassada conjuração para assassinar Giulio de Médici, nunca perdoou Nicolau por ter tentado se reaproximar dos senhores de Florença. Para alguns, o poeta foi o autor do primeiro documento do antimaquiavelismo. Inaugurou assim um gênero da literatura política. Outros o seguiram, como o cardeal Reginald Pole, que ouviu Thomas Cromwell, chanceler de Henrique VIII, referir-se ao florentino e mais tarde teve a oportunidade de lê-lo, durante uma estadia na Itália. Em um texto redigido em 1539, mas publicado apenas dois séculos depois, Pole definiu Maquiavel como “inimigo do gênero humano” e O príncipe como um livro “ditado pelo diabo”. Os ataques contra ele se tornam mais frequentes e intensos, porém, a partir da segunda metade do século 16, e seu nome passou a integrar o Index de livros e autores censurados ou proibidos já em 1557, quando foi incluído na categoria de “culpado”. Também entrou no Index librorum prohibitorum a Summo Pontifice, publicado em 1564, durante a última sessão do Concílio de Trento, quando o florentino passou a fazer parte da categoria “primeira classe”, composta de autores que tiveram não apenas as obras condenadas, mas também o próprio nome.

Embora a antimachiavellistica seja vasta e tenha se espraiado pelos séculos, a imagem esculpida por Pole era também de outros tantos, e o secretário florentino passou a ser visto como uma figura demoníaca. Para o huguenote Innocent Gentillet, que publicou, em 1579 um discurso contra Maquiavel, tratava-se de um defensor das tiranias e responsável por ter ensinado aos franceses “ateísmo, sodomia, perfídia, crueldade, usura e outros vícios semelhantes”. O livro de Gentillet circulou por toda a Europa e foi rapidamente traduzido em latim, inglês, holandês e alemão. Ao todo foram 24 edições nos 75 anos após a primeira publicação. Outros livros se seguiram e nas últimas décadas do século Maquiavel se tornou um personagem conhecido de muitos. Sinal dessa difusão era sua presença no teatro elisabetano, frequentemente como a própria encarnação do demônio, o qual muitas vezes recebia o apelido de Old Nick. Marlowe colocou o próprio florentino na abertura de O judeu de Malta, fê-lo dizer “para alguns, talvez meu nome seja odioso”, e Shakespeare se referiu em Henrique VI ao “assassino Machiavel”.

A história da antimachiavellistica procede sem interrupção pelos séculos, mas os argumentos principais já estavam todos postos no 16. Os contextos são outros e os atores políticos muito diferentes, mas a imagem demoníaca perdura e resiste até mesmo em plenos séculos 20 e 21. É bastante conhecido o comentário de Leo Strauss, em 1958, o qual considerava a doutrina de Maquiavel  “diabólica e ele próprio é um diabo”. Ideia semelhante aparece em livreco de Olavo de Carvalho, publicado em 2011, no qual o objetivo de Maquiavel é definido como a construção de um “Estado pós-cristão ou anticristão”, o que exigia “abolir a Fortuna em nome da Virtù, subjugar Deus a uma vontade humana que escolheu livremente o Inferno”. Conclui o astrólogo afirmando: “Se isso não é diabolismo em estado puro […], então é preciso rever a definição de diabo”.

Como compreender essa interpretação teológica – escatológica, às vezes – e sua persistência? Fosse ela meramente ficcional não poderia ter durado tanto. Mesmo a mentira precisa da verdade para sobreviver. Benedetto Croce pode ajudar a resolver esse enigma. Em um pequeno texto, publicado em 1925, o qual se tornaria peça-chave da machiavellistica contemporânea, o crítico abrucês anunciou: “Maquiavel descobriu a necessidade e a autonomia da política, que está além – ou melhor, aquém – do bem e do mal moral, que tem leis contra as quais é inútil rebelar-se, que não pode ser exorcizada nem expulsa do mundo com água benta”.



Essa revolução copernicana, essa descoberta da autonomia da política levada a cabo por Maquiavel, era interpretada por Croce no âmbito de sua filosofia dos distintos, a qual distinguia o espírito teórico do espírito prático, produtor de ações e não de teorias, e por sua vez distinguia neste último as dimensões da Economia ou da Política, referente ao útil, e da Ética, própria do bem. Croce esclarecia que o conceito de útil não se confundiria com o mero egoísmo. Por essa razão, embora Economia e Política fossem atividades amorais, não era imorais. A relação da Economia e da Política com a Ética não era, assim, de antagonismo, e sim de distinção.

A invenção de Maquiavel, segundo Croce, era em primeiro lugar uma descoberta filosófica. O que havia de verdadeiramente revolucionário na obra do secretário florentino era sua filosofia, e não naquelas máximas da política prática que fizeram sua fama. Embora poderosa, a interpretação croceana era falha. Croce negava ao florentino uma moral que lhe era imanente. Não é possível deixar de notar uma moral laica, terrena, na obra de Maquiavel, na qual a resistência do povo à opressão é a própria medida da política. É nessa chave que ganha sentido a crítica do florentino à Igreja, essa colossal força heterônoma que subjugava as cidades e condenava o povo à dominação. Naqueles dois humores que segundo Maquiavel sempre habitam as cidades – o povo que “não quer ser comandado nem oprimido pelos grandes” e “os grandes [que] desejam comandar e oprimir o povo” –, a Igreja sempre esteve do lado dos grandes, enquanto o florentino sempre depositou sua esperança no povo. Apenas este poderia assegurar a liberdade da cidade.

Por um lado, a relação de Maquiavel com a moral cristã não era de mera indiferença, como sugere Croce. O pensamento do florentino assumia uma atitude hostil e fortemente antagônica a essa moral. Têm razão aqueles que desde o século 16 o acusam de violar preceitos caros ao cristianismo. Nessa crítica, é bom lembrar, católicos como Pole e protestantes como Gentillet sempre concordaram. Mas o princípio cristão mais importante que Maquiavel violou foi o da autoridade – e, em primeiro lugar, a autoridade da Igreja, vista como uma força corrupta e dissolvente, causa das misérias e sofrimentos do povo da península Itálica. A autonomia da política era não apenas um princípio heurístico, um “cânone de interpretação”, como diria Croce. Era, também, um desafio político ao poder da Igreja.

É por essa razão que o antimaquiavelismo foi predominantemente conservador ou reacionário. Maquiavel não ofendeu muitas almas sensíveis e piedosas que consideravam aberrante seu realismo político. As pessoas que se sentiram ofendidas eram, em sua maioria, representantes dos poderes políticos e eclesiásticos dominantes. Se tem algo que elas nunca perdoaram em Maquiavel não foi aquela máxima que recomendava ao príncipe ser temido, ou a outra que dizia para usar bem a crueldade, ou ainda aquela que prescrevia realizar as injúrias “todas juntas” e os benefícios “pouco a pouco”. A Igreja da Inquisição não precisava do florentino para saber disso, e os jesuítas, seus adversários ferrenhos, não estavam muito dispostos à autoacusação. O que nunca perdoaram em Maquiavel foi a afirmação de uma moralidade laica, mundana e feroz, que via no povo o guardião da liberdade e nos grandes a fonte da dominação e da opressão. Essa é a verdade do antimaquiavelismo e essa é a lição do secretário florentino para nosso presente, para um tempo no qual a liberdade se encontra sob ameaça. E é por isso que para os grandes ele continuará sendo sempre demoníaco.

Alvaro Bianchi é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp e professor livre-docente da mesma instituição. Coordena o Laboratório de Pensamento Político (Pepol/Unicamp) e dirige o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas  da Unicamp.


segunda-feira, 25 de maio de 2020

"Vivemos um novo tipo de guerra fria"

Entrevista de Anita Prestes ao Diário do Grande ABC

Miriam Gimenes
Do Diário do Grande ABC

Anita Leocádia Prestes carrega o nome de mulheres fortes. O primeiro foi uma homenagem a Anita Garibaldi, revolucionária brasileira. O segundo, à avó paterna, que era à frente de seu tempo.

A historiadora, nascida em uma prisão nazista, é filha da militante alemã Olga Benário, que morreu em um campo de concentração – quem a criou foi a avó [Leocadia Felizardo Prestes] e uma das tias, Lygia –, e do militante comunista brasileiro Luís Carlos Prestes. 

Acaba de lançar o livro A Vida é Tomar Partido [Viver é tomar partido: memórias](Boitempo), em que escreve suas memórias, inclusive sobre as lutas que travou em mais de oito décadas de vida, que não foram poucas.

A senhora acaba de lançar um livro de memórias que mostra não só a luta dos seus pais como também a sua para defender seus ideais. Como foi revisitar a sua história?

Eu não tinha nenhum projeto de escrever memórias. Mas houve muita gente, amigos, insistindo, achando que era importante, que conheci episódios importantes do País. Que havia os aspectos humanos dos meus pais (Luís Carlos Prestes e Olga Benário) que eu poderia ressaltar mais nas minhas memórias. E, em particular, que poderia falar da minha avó (paterna, Leocádia) e minhas tias (Eloisa, Clotilde, Lygia e Lúcia), mostrar o papel delas, de toda a luta que tiveram. Tudo isso me incentivou a escrever. Também vi que era importante descrever uma parte da atuação política, para as novas gerações, para conhecerem a experiência do PCB, que desempenhou um papel importante no Brasil, mas teve erros também. E o título só surgiu no final. Aprendi com a minha família a sempre tomar partido, não ficar indiferente. Minha avó  vinha do século XIX, mas ela sempre estava participando (politicamente), esse legado me influenciou muito.

A luta que travou durante toda a vida, assim como seus pais, foi contra o fascismo. Como vê que o movimento continua com força, principalmente no Brasil?

É um grande perigo e tem de haver mobilização contra isso. Na Alemanha, por exemplo, na década de 1990 estive lá, já havia um movimento antifascista grande, que hoje prossegue. Existem grupos de militantes antifascistas que se mobilizam, trabalham para desmascarar, denunciar as ameaças. No Brasil está tudo muito desorganizado, difícil. A derrota das esquerdas foi grande. Se você não se mobiliza, eles vêm aí com essa pressão, e o resultado pode ser desastroso.

A senhora nasceu em uma prisão nazista na Alemanha. Sua mãe foi vítima do nazismo. Como recebeu as declarações de que o nazismo foi movimento de esquerda?

Foi uma das muitas besteiras que falam, faz parte. Tem vários pesquisadores dos militares justamente mostrando isso, que essa loucura, no fundo, faz parte de toda uma política que está sendo aplicada pelo governo brasileiro. Aparentemente é tudo um besteirol grande, parece até caricato, mas por trás há uma luta contra o marxismo, além do comunismo, que não representa no momento nenhum perigo. É uma luta no fundamental contra o movimento popular, ou qualquer tipo de movimentação do povo. É o novo tipo de guerra fria. Agora não tem a União Soviética, então inventaram esse marxismo cultural. É absurdo.

Na época da ditadura a senhora trabalhou bastante a questão do comunismo aqui no Grande ABC, nas montadoras. Que memórias tem dessa época?

A minha experiência, que está no livro, foi principalmente com um grupo de operários da Volkswagen (em São Bernardo). Eu estava muito entusiasmada porque a diretriz principal do partido na época era organizar o partido no movimento operário e nas grandes fábricas. E lá tinha um grupo de jovens comunistas muito interessante, porque eles eram pessoas já com um nível de escolaridade mais alto, ferramenteiros, pessoas inteligentes, com boa formação, e eu dava curso de marxismo para eles, eram muito interessados, combativos. Mas houve falta de segurança, foi todo mundo preso, e depois descobrimos que o serviço de segurança da fábrica denunciava os trabalhadores à polícia, era um nível de repressão muito aperfeiçoado. Para mim foi uma experiência interessante, mas que mostra que não dá para repetir.

Chegou a ser condenada a quatro anos e meio de prisão durante o exílio por este trabalho. Como recebeu a notícia à época?

Era uma tortura bárbara a que esse pessoal foi submetido. Eu fui uma das denunciadas, e não só pelo pessoal da Volks. Teve um dirigente (do PCB) de São Paulo que foi preso e me identificou, falou do meu pseudônimo, Alice. Eles não sabiam quem eu era, não me conheciam como filha do Prestes. A polícia começou a procurar uma Alice em São Paulo, mas não encontraram. Imagina, com esse nome tem muitas. Quando descobriram quem eu era, a minha situação ficou pior. Saiu manchete nos jornais, e o tribunal militar tinha interesse em caracterizar isso (de quem era filha). Tanto que levei a pena maior no processo, enquanto tinha gente de maior responsabilidade incluída. Consegui escapar (foi para Moscou) com a ajuda do partido.

Também viu, ainda que de outro país, o nascimento das greves no Grande ABC e do partido dos trabalhadores. Como vê o desenrolar da história deste partido?

Meu pai achava interessante o surgimento de um Lula, porque havia operários com a mesma disposição dele à época. Mas acho que o PT e o Lula enveredaram pelo reformismo, nunca foram consequentes lutadores pelo socialismo. Na realidade, o projeto dele e do próprio PT seguiu o caminho de melhorar a vida dos trabalhadores, só isso. E sem entender que o estágio do capitalismo de hoje não tem como resolver os problemas dos trabalhadores dentro do marco do capitalismo. Você tem de ter um projeto de reformas profundas, que abram caminho em direção ao socialismo. Não foi isso que foi feito. A Carta ao Povo Brasileiro do Lula (2002) deixou claro que ele estava a fim de conciliar com o grande capital, que deixou ele se eleger. Ele foi derrotado por três eleições seguidas. Entendeu que para conseguir se eleger, na ausência de importante mobilização popular, tinha de se articular com o grande capital, banqueiros, imperialismo; então chegaram a um acordo. Fez uma política de melhorar as condições de vida dos trabalhadores, mas sem fazer nada para realmente transformar essa sociedade. Ao mesmo tempo, os banqueiros nunca estiveram tão felizes. Na hora que a crise ficou séria, em 2013, essas políticas do PT não agradavam mais; eles foram tirados de lá, derrubados. 

A ditadura foi um período muito triste não só da história brasileira, como em outros países com regimes totalitários. Como vê as pessoas fazendo manifestações pedindo a volta do AI-5 e o fechamento do Congresso Nacional?

Faz parte de um projeto do qual (o presidente Jair) Bolsonaro está sendo o executor. Não é nem dele esse projeto. Há uma discussão de quais são as origens desse projeto; tudo indica ser o conservadorismo norte-americano. Dizem que ‘a guerra fria acabou’ e precisaram inventar outro pretexto para brecar e fazer frente às lutas populares. Se lembrar, o golpe de 1964 tinha duas bandeiras, contra a corrupção e o comunismo. Toda essa estratégia, essa política traçada nas origens desse grupo, junto com os evangélicos, que foi uma penetração norte-americana aqui, e o Estado de Israel, é que conseguiu fazer do Bolsonaro o seu executor no Brasil. E são os próprios militares que dizem isso. O general (Sérgio Augusto de) Avellar Coutinho, em um livro escrito há alguns anos, pouco conhecido, justamente defende essas ideias de que o Bolsonaro é um dos executores.

Os trabalhadores, classe que defendeu durante sua trajetória, veem cada vez mais seus direitos cerceados. O que esperar do futuro?

A pandemia agravou a situação da classe trabalhadora, mas isso vem vindo desde o (governo de Michel Temer). A alteração da legislação trabalhista vem daí, a terceirização. Cada vez tem menos gente com carteira assinada, os trabalhadores trabalham por hora, não têm férias, não têm direito trabalhista nenhum, todas as conquistas foram por água abaixo. E agora, com a pandemia, acho que vai piorar. Enquanto não houver organização popular para fazer frente a essa avalanche fascista não tem como ver algo melhorar.

Tudo que não é relacionado à direita, hoje, é classificado como comunista. As pessoas não têm o entendimento do que é o comunismo?

É uma ignorância grande e as elites no Brasil promovem essa ignorância. Com o ministro da Educação que temos hoje (Abraham Weintraub), como vamos esperar o avanço cultural? Todo o conjunto é contra a ciência, a cultura, é toda uma política de fazer as pessoas se alienarem. E daí para pior.

Enquanto historiadora, qual a importância do estudo da disciplina para o futuro da humanidade?

Os jovens que não conhecem sua história como podem transformar a realidade ? É impossível. Não existe vácuo. Se não se tem um mínimo de conhecimento da história vai-se cair na conversa dos bolsonaristas, que disseminam um mundo de coisas falsas para os jovens assimilarem. E é esse pessoal que está gritando na rua, se deixando manipular.

Acredita que o socialismo é solução para os principais problemas enfrentados pela sociedade hoje?

É a única solução que se tem. Mas não quer dizer que seja de imediato. Tem de preparar o terreno para isso. Forças políticas e sociais que devem se organizar, principalmente os trabalhadores em diferentes setores. A partir disso vão surgir lideranças que sejam realmente autênticas, identificadas com os interesses dos trabalhadores, que não vão capitular diante do grande capital. Não sou pessimista, mas no Brasil vai demorar muito (para isso acontecer). Não vejo nenhuma liderança. A história do País, do jeito que se desenvolveu, com as elites escravocratas conseguindo fazer com que os setores populares ficassem alijados da política e fossem sempre derrotados, com seus líderes sendo trucidados, a exemplo o próprio Tiradentes. Isso é um legado muito pesado que carregamos.

A senhora dedicou sua vida a um ideal. Se arrepende de algo?

Não me arrependo de nada. Os próprios erros (que cometi) foram procurando acertar. Quando falhamos, achávamos que estávamos certos; é difícil acertar na política. Tudo que fiz foi sempre com propósito honesto e errar faz parte da luta, que teve muitos aspectos positivos. Me orgulho muito dos meus pais, aprendi muito com a experiência deles; minha avó era uma mulher incrível, minhas tias também. Aprendi muito com essa família em que tive sorte de nascer.

FONTE: Diário do Grande ABC

sábado, 23 de maio de 2020

VIVER É TOMAR PARTIDO: ANTONIO GRAMSCI E O ÓDIO CONTRA A INDIFERENÇA

Publicado: Sábado, 23 Maio 2020 08:57, Suplemento Pernambuco
Escrito por Antonio Gramsci (trad. Daniela Mussi e Alvaro Bianchi; Imagem: Reprodução da internet)


Abaixo, um trecho do livro Odeio os indiferentes, seleta de textos políticos escritos por Antonio Gramsci (1891-1937; foto), intelectual polivalente responsável por algumas das obras  (como seus Cadernos do cárcere) e conceitos (como o de "hegemonia") mais importantes obras do século XX. Gramsci entendia a política como a saga das grandes maiorias, e o texto abaixo deixa clara a necessidade de assumirmos uma posição política dentro (e a favor) do coletivo. Esse texto, assim como os demais do livro, foi escrito em 1917 

Com seleção, tradução e aparato crítico de Daniela Mussi e Alvaro Bianchi, Odeio os indiferentes reúne 21 dos mais de 200 artigos de Gramsci escritos no ano da Revolução Russa. 

***

INDIFERENTES [nota1]

Odeio os indiferentes. Creio, como Federico Hebbel, que “viver quer dizer tomar partido” [nota 2] . Não podem existir os que são apenas homens, estranhos à idade. Quem vive verdadeiramente não pode não ser cidadão, assumir um lado. Indiferença é apatia, parasitismo, velhacaria, não é vida. Por isso odeio os indiferentes.

A indiferença é o peso morto da história. É a bola de chumbo dos inovadores, é a matéria inerte na qual afundam rapidamente os entusiasmos mais esplêndidos, é o pântano que cerca a velha cidade e a defende melhor que as mais rígidas muralhas, melhor que o peito dos seus guerreiros, porque envolve em seus vórtices lodosos os agressores, dizimando-os e desencorajando-os até que desistam do empreendimento heroico.

A indiferença opera com força na história. Opera passivamente, mas opera. É a fatalidade; é aquilo com o que não se pode contar; é o que interrompe os programas, subverte os melhores planos; é a matéria bruta que se rebela contra a inteligência e a sufoca. O que vem em seguida, o mal que se abate sobre todos, o possível bem que um ato heroico (de valor universal) pode desencadear, não se deve tanto à iniciativa operante de poucos, quanto à indiferença, o
absenteísmo dos muitos. O que se passa não resulta tanto dos desejos de alguns como da massa dos homens que abdicam de sua vontade, deixam acontecer, permitem o entrelaçamento de nós que posteriormente apenas a espada pode romper, aceitam a promulgação de leis que depois só a revolta pode revogar, deixam subir ao poder homens que apenas os motins poderão derrubar. A fatalidade que parece dominar a história não é senão aparência ilusória
da indiferença, do absenteísmo. Os fatos amadurecem na sombra, poucas mãos, não submetidas a qualquer controle, tecem a trama da vida coletiva, e a massa ignora pois não se preocupa. Os destinos de uma época são manipulados segundo visões restritas, interesses imediatos, ambições e paixões pessoais de pequenos grupos ativos, e a massa dos homens ignora pois não se preocupa. Contudo, os fatos amadurecidos dão seus resultados; a trama tecida na sombra alcança seu limite: então a fatalidade oprime tudo e todos, a história se assemelha a um enorme fenômeno natural, uma erupção, um terremoto que a todos vitima, os desejantes e não desejantes, os que sabiam e os que ignoravam, os ativos e os indiferentes. Estes últimos se irritam, gostariam de poder escapar às consequências, deixando claro que não desejavam os fatos e que não são responsáveis por eles. Alguns choramingam piedosamente, outros blasfemam obscenamente, mas nenhum ou poucos se perguntam: “Tivesse eu cumprido meu dever, buscado fazer valer minha vontade, o meu conselho, o curso das coisas teria sido o mesmo?”. Nenhum ou poucos assumem a culpa pela própria indiferença, pelo ascetismo, por não terem oferecido os próprios braços e atividade aos grupos de cidadãos que combatiam para evitar aquele mal e conquistar o bem ao qual se propunham.

A maioria, ao contrário, prefere falar de fracassos ideais em vez de reconhecer os acontecimentos alcançados, de programas definitivamente arruinados e de outras amenidades similares. Restituem, assim, a ausência de responsabilidade própria. Não é que não possam ver as coisas de maneira clara, e que não sejam às vezes capazes de prospectar soluções belíssimas para os problemas urgentes ou aqueles que, embora exijam tempo e ampla preparação, urgem. Mas essas soluções permanecem belamente infecundas, essa contribuição para a vida coletiva não é impulsionada por alguma luz moral; é produto de curiosidade intelectual, não de um sentido pungente de responsabilidade histórica que deseja ativar a todos para a vida, que não admite agnosticismos e indiferenças de qualquer tipo.

Odeio os indiferentes também porque me irrita o seu choramingar de eternos inocentes. Pergunto a qualquer um desses como cumpriu a tarefa que a vida propôs e propõe cotidianamente, daquilo que realizou e especialmente daquilo que não realizou. Sinto que posso ser inexorável, que não preciso desperdiçar minha piedade ou compartilhar minhas lágrimas. Sou resistente, vivo, sinto na virilidade da minha consciência pulsar a atividade da cidade futura que estou ajudando a construir. Nela a cadeia social não pesa sobre poucos, cada acontecimento não é devido ao acaso, à fatalidade, mas é obra inteligente dos cidadãos. Não há ninguém na janela contemplando enquanto alguns se sacrificam, se esvaem em sacrifício; aquele que permanece de plantão na janela para aproveitar daquilo que a atividade desses poucos alcança – ou para desafogar a própria desilusão vituperando o sacrificado – desfalece sem conseguir o que pretende.

Vivo, tomo partido. Por isso odeio quem não o faz, odeio os indiferentes.



NOTAS 

* As notas são de autoria de Daniela Mussi e Alvaro Bianchi.

[nota 1] Publicado em La Città Futura, n. único, 11 fev. 1917, p. 1-2.

[nota 2] A frase se encontra no diário do poeta alemão Friedrich Hebbel (1813-1863), traduzido para o italiano em 1912. Ver Friedrich Hebbel, Diario: traduzione e introduzione di Scipio Slataper (Lanciano, R. Carabba, 1912), p. 82. Em 1911, primeiro ano de Gramsci na Universidade de Turim, o professor Arturo Farinelli ministrou um curso sobre Hebbel.

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Cultura, património cultural e a responsabilidade social dos intelectuais

Por Manuel Augusto Araújo 

Não deve ser menorizada a crescente bordelização da cultura pelo turismo cultural e a perda de capacidade crítica em que os padrões estéticos são progressivamente substituídos pelos ditames do mercado. O capitalismo apropria-se da cultura nos mesmos termos em que se apropria da ciência: não como factor essencial de desenvolvimento humano mas como instrumento de dominação.


«Mastigação ruidosa» (2018), do ilustrador japonês Shintaro Kago (1969) 
Cultura e Património Cultural, material e imaterial, são conceitos relativamente recentes na longa história da humanidade, bem como o reconhecimento da sua importância nuclear na identidade de um povo de uma nação, da sua soberania. Como T.S.Elliot escreveu, O tempo presente e o tempo passado / são, talvez, presente num tempo futuro / e o tempo futuro contido no tempo passado, é essa relação dialéctica entre o passado, o presente e o futuro de um povo, de uma nação que a Cultura e o Património Cultural consubstanciam.

Durante séculos os patrimónios culturais foram objecto dos mais diversos vandalismos. É na Revolução Francesa que a Assembleia Constituinte cria uma Comissão dos Monumentos com a missão de proteger e conservar as obras de arte, o que estava em contraciclo com a fúria revolucionária que destruía tudo o que simbolizava o poder absolutista no exercício do controlo social e imposição de crenças políticas, sociais e religiosas. É essa mudança de mentalidades em relação ao património cultural e à cultura que inicia um processo de protecção, conservação e valorização do património e uma, ainda que tímida, democratização da cultura.

Tem o seu reverso que é o percepcionar-se que a supremacia política deve apoiar-se na afirmação da supremacia cultural. Uma estratégia que Napoleão Bonaparte colocou em prática.

Nas campanhas napoleónicas o imperador fazia-se acompanhar por uma corte de intelectuais que avaliavam e inventariavam as obras de arte a roubar. A pilhagem de igrejas, catedrais, conventos, museus, colecções privadas por toda a Europa e Norte de África foi sistemática e sem precedentes. Troféus de guerra para mostrar ao mundo o poder de Napoleão e a supremacia política e cultural da França. Derrotado Napoleão, o Segundo Tratado de Paris, de 20 Novembro de 1815, pela primeira vez na história determina a devolução das obras de arte aos seus países de origem.

O segundo grande roubo sistemático de património cultural foi realizado pelos nazis na Segunda Guerra Mundial. O projecto de Hitler é similar ao de Napoleão. Projectava construir um enorme complexo cultural em Linz, dedicado às obras que o führer considerava reflectirem a ideologia do partido nazi.

A campanha de devolução das obras pós-guerra foi muito publicitada e originou a jurisprudência da Convenção de Haia de 1954, que estabeleceu regras internacionais sobre o património cultural e está na origem do trabalho desenvolvido pela UNESCO, as classificações de Património Cultural Material e Imaterial da Humanidade, para salvaguardar universal e intemporalmente os patrimónios imóveis, os patrimónios intangíveis e os patrimónios naturais, representativos da diversidade cultural, natural e da expressão criativa em todo o mundo. Com essas e muitas outras iniciativas de organizações locais, nacionais e internacionais, vertida em abundante legislação, deveria a Cultura e o Património Cultural Material e Imaterial e o Natural estar protegido de qualquer atentado e a cultura, na multiplicidade das suas manifestações ser um dos grandes esteios das identidades nacionais.

Não está, e os atentados agora são outros de outro calibre. Nos centros decisores do capitalismo internacional, com destaque para as instituições financeiras sediadas nos EUA, prepara-se a intensificação de uma nova onda de privatizações de tipo novo e radical: vender o máximo possível de bens imobiliários estatais, incluindo os patrimónios histórico-culturais e naturais.

O editorial de 17 de Janeiro de 2014, da revista Economist, «The 9 trillion dolars sale», não deixa margem para dúvidas. Escrevem que Thatcher e Reagan usaram as privatizações como ferramenta para combater os sindicatos e transformar em receitas diversos serviços públicos, telecomunicações e transportes, e que os seus sucessores no século XXI, «necessitam fazer o mesmo com os edifícios, terrenos e recursos naturais, porque é um enorme valor que está à espera de ser desbloqueado». Reconhecem a dificuldade da avaliação de alguns desses activos, como o Louvre, o Pártenon ou Parque Nacional de Yellowstone. Dificuldade obviamente superável se recordarmos os inúmeros artigos na comunicação social corporativa que aconselhavam os gregos a venderem os seus monumentos para saldarem as dívidas.

A cultura do «casino cósmico»

Neste «casino cósmico», como o definiu Georges Steiner, o perigo é real, multiforme. Não se devem menorizar as suas formas directas ou indirectas de privatização do Património Cultural aparentemente mais tímidas como as do programa Revive, nem a formatação dos padrões culturais pelo imperialismo cultural, nem a crescente bordelização da cultura pelo turismo cultural, nem a perda de capacidade crítica em que os padrões estéticos, ainda que muito contestados, são progressivamente substituídos pelas ditames do mercado, ainda que mascarados em lenga-lengas fastidiosas e repetitivas salpicadas de considerações artísticas.

A normalidade da anormalidade do estado de sítio cultural que se vive é tudo se reger pelas leis do mercado, crescendo nos charcos do entretenimento agitados pelo furor bulímico em que normalizam os chamados eventos culturais – o conceito eventos tem uma forte carga ideológica indiciando a banalização destruidora de quaisquer hipóteses de projectos culturais de democratização da cultura explodidos nos lugares comum de criação de novos públicos, leiam-se os regulamentos da Europa Criativa –, coloridos pacotes de mercadorias que são açambarcados para serem consumidos sem deixarem rasto. O seu único objectivo é disfarçarem o vazio comatoso desta sociedade, o seu spleen para, na melhor das hipóteses, o ocultarem protegendo-nos. Laboriosamente as forças dominantes foram moldando o gosto para depois o alimentarem com qualquer coisa que é sempre a mesma coisa. Essa dita cultura, mau grado o intenso ruído em que se envolve para abafar as vozes dissonantes, é parte integrante do aparelho repressivo do totalitarismo democrático que impõe o pensamento único.

Desde os anos 60 que se tem alargado a superfície global onde se vai dissolvendo o território, o exercício de soberania, a língua e a identidade cultural, tornados conceitos móveis e transitivos. O objectivo é a conquista do mundo pelo mercado. Nessa guerra os arsenais são financeiros e o objectivo da guerra é governar o mundo a partir de centros de poder abstractos. Mega polos do mercado que não estarão sujeitos a controlo algum excepto à lógica do investimento. A nova ordem é fanática e totalitária. A cultura é um dos alvos dessa guerra e o mercado, que não reconhece outra hierarquia cultural que não seja a do que é rentável, ocupa cada vez mais o espaço que antes era ocupado pelo Estado.

O meio intelectual, a partir dos anos 50, já se tinha apercebido dessa situação e se alguns consideram o advento da dominação do mercado sobre a cultura como uma expropriação outros, como Adorno e Horkheimer, percebem claramente que essa dominação intermediada pelas nascentes indústrias culturais e criativas é «um sistema político e económico que tem por finalidade produzir bens de cultura – filmes, livros, música popular, programas de televisão, etc. – como mercadorias e como estratégia de controlo social.»

A produção de produtos ditos culturais faz-se em linhas tayloristas que impõem um ritmo em que deixa de existir tempo para pensar a criação artística, o que acaba por ser uma forma de censura económica, pauperizando a cultura até a reduzir a uma sucessão de entretenimentos não significantes, em que tudo é idêntico. O património cultural e os museus são o alimento substantivo do turismo cultural em que a relação, que deveria ser estrutural e estratégica, permanece numa nuvem de indefinições, confusão de conceitos e de áreas de actuação. O que interessa, o que conta é o que gera dinheiro, muito dinheiro. A introdução ao Programa-Quadro Europa Criativa 2021-2027 da União Europeia (UE) é elucidativa: «a cultura está no centro do rico património e da história da Europa e tem um importante papel no aumento da atractividade de lugares e no reforço da identidade única de espaços específicos. A cultura e a criatividade podem ser importantes motores e impulsionadores da inovação, bem como uma fonte significativa para o empreendedorismo. A cultura é um importante motor para o aumento das receitas de turismo, numa altura em que o turismo cultural é um dos segmentos do turismo com maior e mais rápido crescimento a nível mundial.» É um texto esclarecedor pela miscigenação de conceitos em que o que acaba sempre por vir à superfície é a gestão, o empreendedorismo, como adubos da inovação. A importância do «rico património e da história da Europa» é o «aumento da atractividade de lugares», leia-se turismo cultural para as multidões prontas a disparar o seu olhar distraído, registado em selfies, enquanto invadem museus e outro património edificado. O que conta é o dinheiro, muito dinheiro que o mercado cultural pode gerar, pelo que as iniciativas culturais se desligam de qualquer projecto cultural para se subordinarem ao que é mais vendável.

Mais esclarecedor fica quando elencam as indústrias culturais e criativas e se olha para a distribuição de verbas por essas áreas. São integrados nos «Sectores culturais e criativos», todos os sectores cujas actividades se baseiam em valores culturais e/ou artísticos ou noutras expressões criativas, quer essas actividades tenham fins comerciais ou não, independentemente do tipo de estrutura que garante a sua execução e seja qual for o modo de financiamento dessa estrutura. Essas actividades incluem a concepção, a criação, a produção, a divulgação e a conservação dos bens e serviços que encarnam uma expressão cultural, artística ou qualquer outra expressão criativa, e funções conexas, como a educação ou a gestão. Os sectores culturais e criativos incluem, nomeadamente, a arquitectura, os arquivos, as bibliotecas e os museus, o artesanato, o audiovisual (em particular o cinema, a televisão, os jogos de vídeo e as actividades multimédia), o património cultural material e imaterial, o design, a publicidade, a moda, os festivais, a música, a edição de publicações, a literatura, as artes performativas, a rádio e as artes plásticas. Ao mesmo nível das Meninas de Velasquez ou da Ronda da Noite de Rembrandt está um anúncio à Coca-cola ou ao BurgerKing. O Saraband do Bergman ou a Regra do Jogo do Renoir fica submergido na quantidade brutal de videojogos que já é um volume de negócio superior ao do cinema ou das séries televisivas. Festivais de Música? Os de música sinfónica são residuais, em quantidade e em espectadores, se comparados com os de música pop, o que também se reflecte na indústria discográfica, basta olhar para os espaços que ocupam nas estantes de venda e também nos espaços de «crítica musical» na imprensa. A literatura nada com respiração assistida no plâncton das edições dos media da imprensa corporativa, das revistas de glamour, etc.

A moda invade tudo e é dominante em todos os outros géneros artísticos, para isso lá estão os gestores culturais, esse baixo clero pós-moderno com especiais aptidões para ocultar e tornar eficaz o vazio da cultura inculta instalada em todos os patamares do entretenimento da iliteracia cultural por esses intermediários culturais, gestores culturais, programadores, curadores, comissários, agentes do pensamento dominante que aceleram pelas auto-estradas do bullying cultural que se impuseram durante os anos 80, como Pierre Bourdieu bem os caracterizou e que é sempre de recordar: «são os encarregados de uma subtil actividade de manipulação nas empresas industriais e na gestão da produção cultural (…) a sua distinção é uma forma de capital incorporado, porte, aspecto, dicção e pronúncia, boas maneiras e bons hábitos que, por si, garante a detenção de um gosto infalível o que sanciona a investidura social de um decisor do gosto, de modo bem mais significativo do que o faz o capital escolar, de tipo académico (…) a ambiguidade essencial e a dupla lealdade que caracteriza o papel desses intermediários é serem os mercadores de necessidades que também se vendem continuamente a si próprios, como modelo e garantes do valor dos seus produtos, são óptimos actores, apenas porque sabem dar boa imagem de si acreditando ou não no valor daquilo que apresentam e representam». Intermediários culturais sempre entre duas actividades promocionais onde a arte e a cultura são sempre e só mercadoria e o público se alicia com mentiras ou melhor (pior) não verdades.

Esclarecedor é também o enquadramento financeiro para a execução do Programa durante o período 2021-2027, em linha com os anteriores. «O Programa continua a apostar em 3 vertentes: Subprograma MEDIA, Subprograma CULTURA e Vertente Intersectorial, sendo que esta última introduz uma novidade dirigindo-se a “Cultura e Meios de Comunicação”». Através da vertente intersectorial o Programa visará também «promover a cooperação política em matéria de cultura no seio da UE, promover um ambiente de liberdade, diversidade e pluralismo na comunicação social e apoiar o jornalismo de qualidade e a literacia mediática».

Em termos orçamentais a Comissão propõe a afectação de 1,85 mil milhões de Euros ao Programa global, divididos do seguinte modo: subprograma MEDIA, 1,08 mil milhões de Euros; subprograma CULTURA, 609 milhões de Euros; e 160 milhões de Euros para a vertente intersectorial. Tal proposta traduz-se num aumento de 450 milhões de Euros face ao actual Programa Europa Criativa 2014-2020 e a grande aposta é no incremento da comunicação social estipendiada.

A bitola é a do mercado, os apoios são ao empreendedorismo, As justificações na distribuição das verbas revelam os objectivos da UE e o que nos espera por detrás da cortina «de promover um ambiente de liberdade, diversidade e pluralismo na comunicação social e apoiar o jornalismo de qualidade e a literacia mediática» em que a verba para os media é reforçada pela do denominado subprograma intersectorial, pelo que 67% do orçamento Europa Criativa é dirigido para o controle de informação que se integra no sistema mundial de formação da opinião pública e da interpretação da realidade pela comunicação social corporativa, mercenária, ao serviço do pensamento totalitário dominante. Os sobrantes 33% são para o que selam como cultura, mas com a banda larga aplicada, estamos conversados. Há excepções, mas as excepções são a confirmação da regra e a regra é o triunfo imperial do espectáculo que bordeliza a cultura, o património cultural e os museus com o mercado a extrair benefícios máximos do empobrecimento moral e intelectual da sociedade. É o fim da cultura na sua relação ideológica e política com a sociedade. Cultura amarrada à perda de futuro como dimensão ontológica humana em que se procura que a alienação global seja voluntária.

A responsabilidade dos intelectuais

Todo este processo decorre por o capitalismo neoliberal ter percebido que a cultura, a produção teórica eram armas nucleares que eram necessário despoletar para perpetuar o imperialismo e impor um pensamento único. Puseram em marcha um processo de desagregação social dos intelectuais para os isolar e os atirar para as periferias do poder político. Os intelectuais, que nunca foram um grupo homogéneo mas que, como Régis Debray anotou, se «sentiam, pelos seus saberes e conhecimentos diferenciados, ser uma colectividade de pessoas, socialmente legitimadas para tornarem públicas as suas opiniões» detendo um poder, que embora de origens diferentes, influenciava ou ia contra o dos políticos eleitos, foram progressivamente marginalizados do tecido social.

Um processo que incidiu sobretudo nas áreas culturais distanciando o Estado das políticas culturais, retirando-lhes importância política e pública, entregando progressivamente ao mercado e à iniciativa privada os instrumentos da cultura, diligenciando para que o mercado e a iniciativa privada contaminassem as políticas culturais das instituições que tutelam, como se a cultura fosse um território que floresce numa terra de ninguém e para que a arte e a cultura perdessem o sentido de ser a utilidade que transforma a vida.

Para essa nova ordem é fundamental anular a cultura enquanto núcleo de práticas e actividades, enquanto instrumentos de produção material, recepção e circulação que dão sentido à vida e ao mundo com o fim último de que já não seja sequer possível pensar que é possível pensar uma sociedade alternativa onde os valores da civilização, da humanidade, da cultura, da política se plantam para florescer, ainda que com todas as contradições e dificuldades.

Para essa nova ordem é fundamental que os intelectuais, especialistas e profissionais qualificados sejam elementos passivos das suas competências, remetidos às suas áreas especializadas, tendo por interlocutores os seus pares e não a sociedade para perderem influência na construção da consciência colectiva.

Neste estado de sítio há que exigir aos intelectuais que façam novamente ouvir a voz que já tiveram no discurso público, com a consciência de que se ela não é decisiva é fundamental para se sobrepor à turbulência ruidosa do pensamento dominante, que procura tornar inaudível qualquer discurso crítico que o ponha em causa. Devem readquirir o sentimento do seu papel social, mesmo com a incertitude de não terem no imediato sucesso garantido.

Há que resistir, resistir sempre e sem vacilações para que a cultura e a arte se recentrem na vida e encontrem aquilo que podem e querem fazer com os seus materiais e instrumentos sem se entregarem nas mãos do mercado, recusando-se a responder às exigências de gerar lucro, normalizando-as pelas imposições do consumo imediato e padronizado onde se afoga o espírito crítico.

Há que continuar e lutar com a firme convicção de que «no entanto, ela (a Terra) move-se», como disse Galileu enfrentando o tribunal da Inquisição.

FONTE: ODiario.info

sábado, 16 de maio de 2020

Não deixem de assistir: Uma excelente aula sobre a educação cubana

"Educação: a pedra angular da Revolução Cubana"
Live da Associação Cultural José Martí da Baixada Santista
(Realizada no dia 15/05/2020)

"Um povo de homens educados será sempre um povo de homens livres" . José Martí 

Clique no link abaixo: 


sexta-feira, 15 de maio de 2020

BIBLIOTECA SOCIALISTA: "Rumo à Internacional Americana" e "O Conceito Socialista da Reforma Universitária"

Dois textos de Julio Antonio Mella, traduzidos por Luiz Bernardo Pericás, que acabam de ser publicados na seção "Biblioteca Socialista" da revista Mouro, Ano 11, No. 14.



QUEM FOI JULIO ANTONIO MELLA?



BIBLIOTECA SOCIALISTA

Texto 1


Julio Antonio Mella

Já passou do plano literário e diplomático o ideal de unidade da América. Os homens de ação da atualidade sentem a necessidade de concretizar em uma fórmula precisa o anseio que, desde Bolívar até nossos dias, foi considerado como a aspiração redentora do Continente.

Antes de entrar em uma discussão sobre a melhor forma de organizar a unidade continental é necessário responder à seguinte questão: quem há de fazer a unidade da América?

Várias são as organizações que proclamam a fraternidade entre os povos do Continente. Deixemos de lado os brados hipócritas dos diplomatas nos grandes bacanais das cerimônias de posse de um novo governo ou em alguma ridícula comemoração oficial: nunca obterão um resultado prático. Certos congressos científicos latino-americanos poderiam servir de alguma maneira, ao ideal de união, se não fossem utilizados pelos governos de sainete como propaganda de seus sistemas despóticos.

Confessemos que até hoje a unidade da América foi, em alguns casos, uma afável utopia forjadora de um ideal, e em vários outros, uma aprazível forma de resolver o problema de acomodar-se bem na vida. Neste último caso, trata-se daqueles que falam, regularmente, de hispano-americanismos e que consideram Primo de Rivera ou dom Alfonso como pontífices máximos dessa religião da qual os sacerdotes são os escritores fracassados e famintos, junto com os comerciantes enriquecidos, egressos da “Península” para se evadir do serviço militar do rei e da pátria que adoram à distância.

Respondamos à pergunta: a unidade da América já foi efetuada pelo imperialismo ianque. A União Pan-Americana é a Internacional do futuro império político que terá como única capital Wall Street e como sua nobreza, os reis das distintas indústrias. A unidade da América sonhada por todos os espíritos elevados da atualidade, contudo, é aquela da nossa América, da América calcada na justiça social, da América livre e não da América explorada, da América colonial, da América feudo de umas quantas empresas capitalistas servidas por uns tantos governos, simples agentes do imperialismo invasor. Esta unidade da América só pode ser realizada pelas forças revolucionárias inimigas do capitalismo internacional: trabalhadores, camponeses, indígenas, estudantes e intelectuais de vanguarda. Nenhum revolucionário de hoje pode deixar de ser internacionalista. Deixaria de ser revolucionário. Nenhum programa de renovação, nem a destruição de qualquer tirania, poderiam ocorrer sem uma ação conjunta de todos os povos da América, sem exceção dos Estados Unidos. As duas tiranias que estão mais próximas de cair, as do Peru e da Venezuela, poderão ser substituídas por governos similares, mas nunca por um regime que trate de exterminar sua verdadeira causa: a exploração do povo por uma pequena minoria que o mantém na ignorância. Para que se possa criar uma nova sociedade nas repúblicas da América, se faz necessária a cooperação de todas as forças revolucionárias do Continente.

Convencidos da existência de um inimigo grande e forte, é preciso tomar as medidas táticas para combatê-lo. Todo homem novo acredita ser possível e conveniente a formação de uma frente única entre todas as forças anti-imperialistas da América Latina. Distintas organizações têm entre seus fins a luta contra o imperialismo.

Considerando que fora dos Estados Unidos o inimigo se chama imperialismo –e no interior dessa nação, capitalismo-, é preciso ampliar a frente única para além do Rio Grande e constituir um só exército entre todos os explorados por Wall Street.

Se aceitamos estas verdades -e só os ignorantes ou os retrógrados podem negá-las-, há que convir que a luta está configurada em todo o mundo entre estes dois polos: o capitalismo explorador com múltiplas máscaras e o povo explorado que inicia variadas contendas, com distintos matizes. Na China, no Marrocos e na Inglaterra se combate os capitalistas nacionais, etc. Na América o enfrentamento deve ser contra cada uma das tiranias e contra a metrópole em comum, situada politicamente em Washington.

Os internacionalistas exploradores já criaram uma série de organizações capazes de formar a consciência continental de submissão: a União Pan-Americana, os sindicatos petroleiros, as agências de notícias, a propaganda cinematográfica e muitas outras.

É necessário também constituir uma Internacional americana capaz de aglutinar todas as forças anti-imperialistas e revolucionárias do Continente para forjar uma frente única e poder enfrentar a grandiosa influência do inimigo, da mesma forma como nos organismos humanos é preciso aparecer a célula inicial que irá crescer.

O caminho está muito adiantado. Existem na América Latina distintas forças que já aceitam a luta internacionalista e estão vinculadas a diferentes internacionais. Assim vemos o poderoso Working Party [sic] nos Estados Unidos e os partidos comunistas do México, Argentina, Uruguai, Chile, Brasil, Guatemala e Cuba, afiliados à Comintern. Vários sindicatos operários também estão associados às organizações internacionais. Na América Latina existem diversas entidades que aspiram a este fecundo internacionalismo por rumos diferentes e que possivelmente realizariam maior labor se fossem respaldadas por uma internacional americana anti-imperialista e revolucionária: a União Latino-Americana, a Liga Anti-Imperialista das Américas, quase todas as agremiações operárias do Continente, várias federações estudantis e grupos de propaganda e cultura poderiam, mantendo sua autonomia, formar uma frente única, em uma perfeita internacional que se constituísse e que tivesse por base de organização as fortes instituições com tendências internacionais anunciadas em parágrafos anteriores.

Ainda que esta entidade só servisse como agência central de notícias e de formação entre todas estas forças, já mereceria existir (uma das maiores dificuldades que tem o movimento revolucionário nas Américas é a falta de comunicação entre os diferentes núcleos de lutadores).

A Europa e a Ásia estão distantes. Ambas têm, nestes momentos, graves problemas a resolver. A América trairia os mártires que tombam nesses dois mundos se não se aprestasse a imitá-los e a socorrê-los em suas lutas. O ideal da humanidade é um só nesses instantes. Neste século, as mudanças não serão realizadas por nações isoladas. A civilização se universaliza. Um câmbio na Europa e na Ásia terá influência definitiva na América.

Aceitemos as experiências da Europa em suas lutas e lancemo-nos a conquistá-las adaptando seus procedimentos revolucionários a nossos ideais.

Cárcere de Havana, 2 de dezembro de 1925.

Julio Antonio Mella

* Publicado originalmente in Venezuela Libre, Havana, Ano IV, No. 15, setembro-dezembro de 1925, p. 7 a 15. Traduzido por Luiz Bernardo Pericás.

Texto 2


Julio Antonio Mella

Muito se fala de “Reforma Universitária”. Um burburinho com tons revolucionários chega aos ouvidos, trazido pelo mal-estar e inquietação entre os estudantes. Na revista Tren Blindado e em palestras públicas trataremos de discutir as bases sociais deste movimento, seus antecedentes históricos, seus princípios fundamentais e tudo aquilo que seja necessário para sua melhor compreensão pela massa estudantil.

O primeiro que precisamos definir é o verdadeiro conceito da reforma universitária. Há muito palavrório liberal e vazio sobre o tema, devido ao fato de que, em vários lugares, indivíduos que participaram deste movimento eram da burguesia liberal. Mas se a reforma for empreendida com seriedade e com espírito revolucionário, ela só poderá ser levada a cabo com um espírito socialista, o único espírito revolucionário do momento.

As universidades, como outras tantas entidades do regime atual, estão estruturadas para apoiar o domínio da classe no poder. Acreditar que os intelectuais ou as instituições de ensino não têm vinculação com a divisão sociológica de classes é uma ingenuidade dos míopes políticos. Nunca uma classe sustentou uma instituição (muito menos as de educação), se não para seu benefício. É nas universidades (e em todas as instituições de ensino), onde se forja a cultura da classe dominante, de onde saem seus servidores no amplo campo da ciência que ela monopoliza. As universidades dos países capitalistas modernos produzem advogados, engenheiros, técnicos de todo tipo, para servir aos interesses econômicos da classe dominante: a burguesia capitalista. Achar que os médicos podem ser uma exceção seria um grave erro. A imensa maioria deles se forma para trabalhar em entidades de beneficência coletiva ou para compor os quadros da burguesia profissional individualista e exploradora? Que muitos doutores não tenham êxito pelas mesmas injustiças do regime atual não significa que a aspiração da corporação não seja esta.

Isto posto –discussão que, para qualquer pessoa que tenha um nível cultural e social médio, não precisa ser estendida aqui-, diremos que a reforma universitária deve ser realizada na mesma lógica de todas as outras dentro da organização econômica e política atual. Não há qualquer socialista honesto que acredite ser factível reformar toda esta velha sociedade paulatinamente, até fazer surgir dela uma nova e resplandecente, como nas antigas utopias. A primeira condição para reformar um regime –a história sempre o demonstrou- é a tomada do poder pela classe portadora dessa reforma que, nos dias de hoje, é o proletariado. Tudo deve se convergir a esta finalidade. Mas o fato de que a solução definitiva seja nisto, como em outras mil coisas, a revolução social proletária, não significa que se deva estar indiferente às reformas (no sentido revolucionário do termo), já que estas noções não são antagônicas.

Um conceito socialista da luta para aprimorar a Universidade é similar ao do proletariado em sua ação para melhorar as condições de sua vida e de seu meio. Cada avanço não é uma meta, mais sim um degrau para continuar ascendendo, ou uma arma a mais que se ganha ao inimigo para vencê-lo na “luta final”.

Lutamos por uma universidade mais vinculada às necessidades dos oprimidos, por uma universidade mais útil à ciência e não às castas plutocráticas, por uma universidade onde a moral e o caráter do estudante não se moldem nem no velho princípio do “magister dixit”, nem no individualismo das universidades republicanas da América Latina ou dos EUA. Queremos uma Universidade nova que faça no campo da cultura o que no da produção farão as fábricas do amanhã, sem acionistas parasitas nem capitalistas exploradores. Sabemos que não o vamos conseguir imediatamente. Mas na simples luta para alcançar esse ideal da universidade do futuro obteremos um duplo triunfo: estimular a consciência dos jovens (conquistando redutos na frente educacional contra os inimigos do povo trabalhador) e provar, ante todos os revolucionários sinceros, que a emancipação definitiva da cultura e de suas instituições não poderá ser realizada senão junto com a emancipação dos escravos da produção moderna que são, também, os títeres inconscientes do teatro cômico dos regimes políticos atuais.

* Publicado originalmente in Tren Blindado, Ano I, No. 1, México, setembro de 1928. Traduzido por Luiz Bernardo Pericás.




VEJA TAMBÉM:

Este fue un texto inédito hasta su publicación este 10 de enero de 2020 en el sitio web de la embajada de Cuba en Italia. Originalmente escrito en inglés por Tina Modotti, a inicios del año 1932, el documento se encuentra en el fondo del Socorro Rojo Internacional (SRI) en Moscú. Fue entregado al embajador de Cuba en Italia, José Carlos Rodríguez Ruiz, el 6 de enero de 2020, por la investigadora alemana Christiane Barckhausen-Canale, notable experta internacional sobre la vida de Tina y autora del libro “Verdad y leyenda de Tina Modotti”, Premio Ensayo de Casa de las Américas del 1988, La Habana, Cuba.


quinta-feira, 14 de maio de 2020

BAIXAR LIVRO EM PDF: "A Rosa do Povo", de Carlos Drummond de Andrade

Publicado em 1945, A Rosa do Povo é o livro politicamente mais explícito de Carlos Drummond de Andrade, reunindo cinquenta e cinco poemas.

ANDRADE, Carlos Drummond de. A Rosa do Povo. 21ª Ed- Rio de Janeiro: Record, 2000.

LINK PARA DOWNLOAD:



terça-feira, 12 de maio de 2020

Planet of the Humans, com legendas em português

Michael Moore Apresenta: Planeta dos Humanos | Documentário Completo | Dirigido por Jeff Gibbs



Michael Moore apresenta o Planet of the Humans, um documentário que se atreve a dizer o que ninguém mais dirá neste Dia da Terra - que estamos perdendo a batalha para impedir a mudança climática no planeta Terra porque estamos seguindo líderes que nos conduzem pelo caminho errado - vendendo o movimento verde para interesses financeiros e a empresas americanas. Este filme é o alerta para a realidade que temos medo de enfrentar: que, em meio a um evento de extinção causado pelo homem, a resposta do movimento ambiental é pressionar por reparos leves e band-aids. É muito pouco, muito tarde.

Mudar o debate é a única coisa que talvez possa nos salvar: controlar o consumo fora de controle. Por que esse não é tratado como o grande problema? Porque isso seria ruim para os lucros, ruim para os negócios. Nós, ambientalistas, caímos em ilusões, ilusões "verdes", que são tudo menos verdes, porque temos medo de que isso seja o fim - e depositamos todas as nossas esperanças em biomassa, turbinas eólicas e carros elétricos?

Nenhuma quantidade de baterias vai nos salvar, adverte o diretor Jeff Gibbs (ambientalista e co-produtor de "Fahrenheit 9/11" e "Tiros em Columbine"). Esse filme, urgente e imperdível, é um ataque frontal às nossas crenças sagradas e têm a garantia de gerar raiva, debate e, esperançosamente, disposição para ver nossa sobrevivência de uma nova maneira - antes que seja tarde demais.



domingo, 10 de maio de 2020

"Com o russo em Berlim"

Poema de Carlos Drummond de Andrade vibrando com o avanço soviético sobre a Alemanha nazista

Por Marcos Cesar de Oliveira Pinheiro
Professor Adjunto da FEBF/UERJ

Neste mês de maio de 2020, em que se comemora os 75 anos do fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), segue abaixo o poema de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) intitulado "Com o russo em Berlim", em que o poeta lamenta não estar participando diretamente da derrota do nazismo e vibra com as perspectivas de vitória "com o russo em Berlim". O poema, escrito em 1ª pessoa, é composto por 17 estrofes, sempre concluídas com a expressão “com o russo em Berlim”, ora em tom de afirmação, ora em forma interrogativa. 

Cabe chamar a atenção de que a participação das forças soviéticas, geralmente minorada pela historiografia tradicional, ainda hoje não é colocada em suas reais dimensões. Embora prevaleça a versão de que o nazismo só foi derrotado graças à participação norte-americana e o dia D (6/6/1944), quando os aliados ocidentais (EUA, Inglaterra e Canadá) desembarcaram na Normandia (França), versão que se fez disseminada por décadas de cinema e reportagens em tom de Guerra Fria, como também nos livros didáticos de História, a evidência dos fatos demonstra que a virada aconteceu mesmo em solo soviético, onde os nazistas sofreram sua primeira grande derrota. Como bem sintetiza o historiador Eric Hobsbawm, no seu livro Era dos Extremos: o breve século XX(1914-1991), em que afirma: “De Stalingrado em diante, todo mundo sabia que a derrota da Alemanha era só uma questão de tempo” (p. 47).

O trabalho de construção da História Oficial é incessante no sentido de contribuir, na luta ideológica – uma das formas em que se dá a luta de classes –, para a construção do consenso dominante,  mesmo quando tal situação é mascarada, não estando explicitada e encoberta pelo conflito entre diversos revisionismos empreendidos pelos intelectuais orgânicos a serviço das classes dominantes. Por História Oficial, entende-se aquela elaboração histórica que convém aos grupos dominantes na sociedade e que se encontra consagrada e difundida principalmente nos livros escolares e na mídia. A História Oficial é expressão da ideologia dominante, ou seja, dos interesses das classes dominantes numa determinada sociedade dividida em classes antagônicas. Por isso mesmo, a História Oficial procura proclamar e difundir as vitórias e os sucessos alcançados pelos donos do poder, de hoje e do passado, nos permanentes conflitos sociais presentes na história mundial. Em outras palavras, veladamente ou não, trata-se de consagrar o capitalismo, comumente, com o nome fantasia de "democracia", para encobrir o conteúdo de classe da ordem burguesa (capitalista). Assim, a lógica da História Oficial, ainda que revestida com uma aparência "sofisticada" da renovação historiográfica, é esquecer, silenciar, deturpar e combater os ideais e as lutas dos setores, que não obtiveram êxito em seus propósitos revolucionários e transformadores e, muitas vezes, sofreram duras derrotas. Isto é, liquidar qualquer tradição revolucionária.

Como afirma a historiadora Anita Prestes, ao chamar a atenção da importância crescente da elaboração da História Oficial nas sociedades contemporâneas:

Em nossas sociedades contemporâneas, são os intelectuais orgânicos, comprometidos com a burguesia que cumprem a função de produzir tal História Oficial. Dessa forma, são consagradas inúmeras deformações históricas, inúmeras inverdades históricas e silenciados numerosos acontecimentos que não são do interesse dos setores dominantes que sejam do conhecimento da grande maioria das pessoas e, em particular, das novas gerações. (Anita Prestes, "O historiador perante a História Oficial", Germinal: Marxismo e Educação em Debate, v. 1, n. 2, jan. 2010, p. 94)

Com base na "tese dos totalitarismos", muito em voga  no pensamento social liberal como também entre os muitos grupos ditos de "esquerda" e muito conveniente ao consenso e à hegemonia construídos pela burguesia nas sociedades contemporâneas, foi aprovada, no dia 19/09/2019, uma resolução do Parlamento Europeu em que se "equipara e condena nazi-fascismo e comunismo". Uma falsificação histórica que junta opressores e oprimidos, vítimas e carniceiros, invasores e libertadores. Trata-se de mais um capítulo de impor uma elaboração histórica que convém aos grupos dominantes da geopolítica europeia, mas também mundial, num tempo de um crescimento perigoso de fascismo, racismo e nacionalismo. Importante lembrar as palavras do escritor alemão Thomas Mann, que, em 1945, avisou: "Colocar comunismo russo no mesmo plano moral que o nazifascismo, porque ambos seriam totalitários, é, na melhor das hipóteses, superficial; na pior, é fascismo. Quem insiste nesta equiparação pode considerar-se a si próprio um democrata mas, na verdade e no fundo do seu coração, é um fascista, e irá seguramente combater o fascismo de forma aparente e hipócrita, e deixa para o comunismo todo o ódio."

Mas vamos ao poema de Drummond.

Com o russo em Berlim* (1945)

Carlos Drummond de Andrade

Esperei (tanta espera), mas agora,
nem cansaço nem dor. Estou tranquilo,
Um dia chegarei, ponta de lança,
com o russo em Berlim.

O tempo que esperei não foi em vão.
Na rua, no telhado. Espera em casa.
No curral; na oficina: um dia entrar
com o russo em Berlim.

Minha boca fechada se crispava.
Ai tempo de ódio e mãos descompassadas.
Como lutar, sem armas, penetrando
com o russo em Berlim?

Só palavras a dar, só pensamentos
ou nem isso: calados num café,
graves, lendo o jornal. Oh, tão melhor
com o russo em Berlim.

Pois também a palavra era proibida.
As bocas não diziam. Só os olhos
no retrato, no mapa. Só os olhos
com o russo em Berlim.

Eu esperei com esperança fria,
calei meu sentimento e ele ressurge
pisado de cavalos e de rádios
com o russo em Berlim.

Eu esperei na China e em todo canto,
em Paris, em Tobruc e nas Ardenas
para chegar, de um ponto em Stalingrado, 
com o russo em Berlim.

Cidades que perdi, horas queimando
na pele e na visão: meus homens mortos,
colheita devastada, que ressurge
com o russo em Berlim.

O campo, o campo, sobretudo o campo
espalhado no mundo: prisioneiros
entre cordas e moscas; desfazendo-se
com o russo em Berlim.

Nas camadas marítimas, os peixes
me devorando; e a carga se perdendo,
a carga mais preciosa: para entrar
com o russo em Berlim.

Essa batalha no ar, que me traspassa
(mas estou no cinema, e tão pequeno
e volto triste à casa; por que não
com o russo em Berlim?).

Muitos de mim saíram pelo mar.
Em mim o que é melhor está lutando.
Posso também chegar, recompensado,
com o russo em Berlim.

Mas que não pare aí. Não chega o termo.
Um vento varre o mundo, varre a vida.
Este vento que passa, irretratável,
com o russo em Berlim.

Olha a esperança à frente dos exércitos,
olha a certeza. Nunca assim tão forte.
Nós que tanto esperamos, nós a temos
com o russo em Berlim.

Uma cidade existe poderosa
a conquistar. E não cairá tão cedo.
Colar de chamas forma-se a enlaçá-la,
com o russo em Berlim.

Uma cidade atroz, ventre metálico
pernas de escravos, boca de negócio,
ajuntamento estúpido, já treme
com o russo em Berlim.

Esta cidade oculta em mil cidades,
trabalhadores do mundo, reuni-vos
para esmagá-la, vós que penetrais
com o russo em Berlim.

* ANDRADE, Carlos Drummond de. A Rosa do Povo. 21ª Ed- Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 176-178.