Dilma Rousseff e Aécio Neves no debate da Rede Record deste domingo (19/10) |
Por Atilio A. Boron
Versão original em espanhol: La izquierda y el balotaje en Brasil
Tradução de Renato Kilpp e Gabriel Eduardo Vitullo
Obedecendo
a uma ordem direta de Adolf Hitler, em 18 de Agosto de 1944, Ernst Thälmann morria
fuzilado pelas SS no campo de concentração de Buchenwald. Seu corpo foi imediatamente
cremado, para que não sobrasse qualquer vestígio de sua passagem por este
mundo. Thälmann havia chegado a este tétrico lugar depois de passar onze anos de
sua vida na prisão de Bautzen, para onde fora enviado quando a Gestapo o deteve
– assim como a milhares de seus camaradas – pouco depois da ascensão de Hitler
ao poder, em 1933. Nesta prisão foi submetido a um regime de confinamento solitário,
cumprindo a pena que lhe foi imposta pelo imperdoável delito de ter sido o
fundador e o dirigente máximo do Partido Comunista Alemão. Thälmann era também um
dos líderes da Terceira Internacional, que em seu VI Congresso – realizado em Moscou
em 1928 – havia aprovado uma linha política ultra-esquerdista, de “classe
contra classe”. Esta orientação política se traduzia na absoluta proibição de estabelecer
acordos com os partidos socialdemocratas ou reformistas, caracterizados como
“socialfascistas” e considerados como sendo a ala esquerda da burguesia. Nem sequer
o mortal perigo que representava o irresistível avanço do nazismo na Alemanha e
a estabilização do regime fascista na Itália conseguiram mudar esta diretriz.
León Trotsky se opôs a ela e a condenou imediatamente. Antonio Gramsci, na prisão,
confessava a um prisioneiro socialista, Sandro Pertini, que este lema que
debilitava a resistência ao fascismo “era uma estupidez”. Tanto o
revolucionário russo quanto o fundador do PCI eram conscientes de que o sectarismo
dessa tática expressava um temerário desprezo pelas urgências da conjuntura e
que sua aplicação terminaria por abrir as portas aos horrores do nazismo,
comprometendo por muito tempo as perspectivas da revolução socialista na
Europa. A Terceira Internacional abandonou essa postura em seu VII e último
Congresso, em 1935, para adotar as teses das frentes populares ou frentes
únicas antifascistas. Mas já era tarde demais.
O suposto subjacente da tese do
“socialfascismo” era que todos os partidos, à exceção dos comunistas,
constituíam uma massa reacionária e que não havia distinções significativas
entre elas. Chama a atenção o profundo desconhecimento que esta doutrina evidenciava
em relação ao que Marx e Engels haviam escrito no Manifesto Comunista. Em seu
capítulo II dizem, por exemplo, que “os comunistas não formam um partido à
parte, oposto a outros partidos operários... Os comunistas só se distinguem dos
demais partidos proletários quando, por um lado, nas diferentes lutas nacionais
dos proletários, destacam e fazem valer os interesses comuns a todo o
proletariado, independentemente da nacionalidade; e, por outro lado, quando,
nas diferentes fases do desenvolvimento pelas quais passam as lutas entre o
proletariado e a burguesia, representam sempre os interesses do movimento em seu
conjunto”. Lenin, por sua vez, durante o curso da Revolução Russa,
reiteradamente ressaltou a necessidade de que todos os bolcheviques elaborassem
uma política de alianças com outras forças políticas, que, preservando a
autonomia e a identidade política dos comunistas, pudesse, em certas circunstâncias,
levar à prática ações e iniciativas concretas que fizessem avançar o processo revolucionário.
Havia, tanto nos fundadores do materialismo histórico como no líder russo, uma
clara ideia de que poderia haver partidos operários, ou representantes de
outras classes ou grupos sociais (a pequena burguesia é o exemplo mais corrente)
com os quais se poderia forjar alianças transitórias e pontuais e que nada
poderia ser mais prejudicial para os interesses dos trabalhadores que
subestimar essa possibilidade e, desse modo, abrir as portas à vitória das
expressões mais recalcitrantes e violentas da burguesia. Voltaremos a este tema
mais adiante.
Os parágrafos anteriores vem à mente porque nos últimos días muitos companheiros
e amigos do Brasil me fizeram chegar mensagens onde anunciavam suas intenções
de abster-se no segundo turno de 26 de outubro, ou de votar em branco ou nulo,
com o argumento de que tanto Aécio quanto Dilma eram o mesmo, e que para a
causa popular seria a mesma coisa a vitória de um ou de outro. O povo
brasileiro, diziam estas mensagens, sofrerá os rigores de um governo que, em qualquer
caso, estará a serviço do grande capital e contra os interesses populares. O
motivo destas linhas é demonstrar o grave erro em que incorreria se assim fosse.
Da mesma forma que a desastrosa política do “socialfascimo”, que pavimentou o
caminho de Hitler ao poder, a tese de que Aécio e Dilma “são o mesmo” vai
provocar, caso triunfe o primeiro, terríveis consequências para as classes
populares do Brasil e de toda a América Latina, para além da obviedade de que
Aécio não é Hitler e de que o PSDB não é o Partido Nacional Socialista Alemão.
A análise marxista ensina que, em primeiro lugar, resolver os desafios da
conjuntura exige, como tantas vezes dissera Lenin, uma “análise concreta da
situação concreta” e não somente uma manipulação abstrata de categorias
teóricas. Dizer que Aécio e Dilma são políticos burgueses é uma caracterização tão
grosseira como dizer que o capitalismo brasileiro é o mesmo que existe na Finlândia
ou na Noruega – os dois países mais igualitários do planeta e com maiores
índices de desenvolvimento humano, segundo diversos informes produzidos pelas
Nações Unidas – para, a partir daí, extrair um lúcido “guia para a ação” que
oriente a política das forças populares. Nenhuma análise séria do capitalismo,
ao menos da perspectiva marxista, pode limitar seu exame ao plano das
determinações essenciais que o caracterizam como um modo de produção
específico. Muito menos quando se trata de analizar uma conjuntura política.
Cometer esse erro é cair no que Gramsci criticou como um exemplo do
“doutrinarismo pedante” do infantilismo esquerdista que proliferou na Europa
nos anos 20 e 30 do século passado. Por esta mesma razão dizer que Hitler e
León Blum eran dois políticos burgueses não permitiu avançar um milímetro
sequer na compreensão da dinâmica política da crise geral do capitalismo na
Europa, por não falar da capacidade para enfrentar eficazmente a ameaça
fascista. Em um caso tratava-se de um déspota sanguinário, fervoroso
anticomunista, que submeteria seu país e toda a Europa a um banho de sangue; no
outro caso, tratava-se de um primeiro ministro socialista da França, líder da
Frente Popular, que acolhia os alemães e os italianos que fugiam do fascismo e
que se opôs, sem sucesso para a desgraça da humanidade, aos planos de Hitler.
Era evidente que ambos não eram o mesmo, apesar de sua condição de políticos
burgueses. Mas o sectarismo ultra-esquerdista passou por cima destas supostas ninharias
e, com sua miopia política, facilitou a consolidação dos regimes fascistas na
Europa.
Em segundo lugar, qualquer um minimamente informado sabe muito bem que, por
suas convicções ideológicas, por sua inserção em um partido como o PSDB e por
sua trajetória política, Aécio Neves representa a versão dura do
neoliberalismo: imperio irrestrito dos mercados, desmantelamento do “nefasto
intervencionismo estatal”, redução dos investimentos sociais, “permissividade”
ambiental e apelo à força repressiva do estado para manter a ordem e contera os
revoltados. Foi por isso que nada menos que o Clube Militar – um antro de
golpistas reacionários, nostálgicos da brutal ditadura de 1964 – decidiu brindar-lhe
com seu apoio, dado que, segundo seus integrantes, o ex-governador de Minas
Gerais possui “as credenciais necessárias para interromper o projeto de poder
do PT, que marcha para à sovietização do país”. Fora o desvario que manifestam
os proponentes deste disparate, seria um gesto de imprudência que a esquerda não
perceba o crescente processo de fascistização de amplos setores das camadas
médias e o clima macartista que satura diversos ambientes sociais e que, em consequência,
subestimasse a transcendência do que significa o explícito apoio a Aécio de
parte dos militares golpistas, o setor mais reacionário (e muito poderoso) da
sociedade brasileira. Que depois da vergonhosa capitulação de Marina, Aécio tenha
prometido assumir como própria a “agenda social e ecológica” dela é apenas uma
manobra propagandística que somente espíritos incuravelmente ingênuos podem
levar a sério.
Em terceiro lugar, a indiferença de um setor da esquerda brasileira diante do
resultado do segundo turno reedita o otimismo suicida com que Thälmann enfrentou,
da prisão, a estabilização do regime nazista: “depois de Hitler” - dizia a seus
companheiros de infortúnio, tratando de consolá-los - “viremos nós”.
Equivocou-se tragicamente. Alguém pode pensar que depois de Aécio florescerá a
revolução no Brasil? O mais certo é que se inicie um ciclo de longa duração onde
as alternativas à esquerda, inclusive de um processo “light” como o do PT,
desapareçam do horizonte histórico brasileiro por longos anos, como ocorreu depois
do golpe de 1964. É ilusório pensar que, sob Aécio, as classes e camadas
populares irão dispor de condições mínimas para reorganizar-se depois do
fracasso experimentado pelas políticas suicidas do PT; também é ilusório
imaginar que novos movimentos sociais poderão surgir e atuar com um certo grau
de liberdade numa esfera pública, cada vez mais controlada e limitada pelos
aparelhos repressivos do estado; ou ainda supor que novas forças partidárias poderão
irromper para disputar, a partir das ruas ou das urnas, a supremacia da
direita.
Em quarto lugar, é óbvio que a opção com que irá se deparar o povo brasileiro
no próximo 26 de outubro não passa por reação ou revolução. Passa pela
restauração conservadora que representa Aécio Neves ou pela continuidade de um neodesenvolvimentismo
atravessado por profundas contradições mas levado ao Planalto por aquele que,
na época, foi o mais importante partido de massas da esquerda na América
Latina. Em que pese a sua lastimável capitulação perante as classes dominantes
do Brasil, sua incapacidade para compreender a gravidade da ameaça imperialista
que paira sobre o seu país – o país mais cercado por bases militares
norte-americanas de toda a América Latina! – e o abandono de seu programa
original, o PT conserva ainda a fidelidade de um segmento majoritário dos
condenados da terra no Brasil e um certo compromisso, poucas vezes cumprido mas
mesmo assim presente, com as aspirações emancipatórias das classes populares
que em 1980 o fizeram nascer. Por isso, e diante da desaceleração da reforma
agraria no Brasil, Dilma pelo menos tem que sair e explicar ao MST as razões do
seu comportamento e prometer a adoção de algumas medidas para modificar essa situação.
Já Aécio não tem nada a ver com o MST nem com os camponeses brasileiros, e
frente aos seus reclamos responderá com a polícia militarizada.
Em quinto e último lugar, é bom ressaltar que o anterior não implica qualquer exaltação
do PT, que na sua triste involução passou de uma organização moderadamente
progressista a ser um típico “partido da ordem” e que sequer lhe serve adequadamente
o adjetivo reformista. Também não se desprende da nossa argumentação a
necessidade ou a conveniência de que as forças de esquerda estabeleçam uma aliança
com o PT ou selem acordos programáticos com ele de olho para o futuro. Mas na atual
conjuntura, definida pelo fato institucional das eleições residenciais e não
pela iminência de uma insurreição popular revolucionária, o voto em Dilma é o
único instrumento disponível no Brasil para evitar um mal maior, muito maior.
Os companheiros que advogam pela neutralidade ou pela indiferença deveriam,
para serem honestos, assinalar qual é a outra força política que poderia
impedir a vitória do Aécio, e qual é a estratégia política para tal fim, seja eleitoral
(que não existe) ou extra-institucional ou ainda insurrecional, algo que
ninguém consegue enxergar no horizonte. Portanto não há outra arma para impedir
a vitória de Aécio e a esquerda não pode se refugiar numa pretensa
neutralidade. E caso se consiga derrotar a reação conservadora liderada pelo
PSDB (como muitos na América Latina e no Caribe esperamos ferventemente) caberá
aproveitar os quatro anos que vem pela frente para reorganizar o campo popular
desorganizado, desmoralizado e desmobilizado pelas políticas do PT. E submeter
o segundo governo de Dilma a uma crítica implacável, empurrando-a, a partir “de
baixo”, dos movimentos sociais e das novas formas partidárias, a adotar as
políticas necessárias para um ataque a fundo contra a pobreza e a desigualdade,
contra a prepotência dos oligopólios e contra as chantagens das classes
dominantes aliadas ao imperialismo. No plano internacional o trunfo dos tucanos
teria gravíssimas consequências porque colocaria no Planalto a uma força
política submetida por completo aos ditames da Casa Branca; sabotaria os
processos de integração supranacional em andamento como o Mercosul, a UNASUL e
a CELAC; serviria como ponta de lança para atacar a Revolução Bolivariana e os
governos de esquerda e progressistas da região; para isolar a Revolução Cubana
e para oferecer apoio material e humano do Brasil para as infinitas guerras do
império. Este não se engana, e não por nada tem lançado, junto aos seus aliados
locais, uma fortíssima campanha para que seu candidato, Aécio, triunfe no
próximo domingo. Ninguém na esquerda pode ignorar que, se tal coisa chegasse a
acontecer, uma longa noite cairia sobre a América Latina e o Caribe, abrindo um
funesto parêntese que sabe lá quanto tempo demoraríamos em fechar. Sem exagerar
nas analogias históricas, conviria meditar sobre a sorte corrida por Thälmann e
seus camaradas comunistas graças à adoção de uma tese que sustentava a
igualdade essencial de todos os políticos burgueses.
Nenhum comentário:
Postar um comentário