Por Argemiro Ferreira
Embora até hoje o fato nunca tenha sido
arrolado na folha corrida do ex-todo-poderoso Henry Kissinger, agora já se sabe de
mais uma tentativa alucinada dele. Mantida quase 40 anos sob sigilo rigoroso,
se efetivada ela poderia tornar-se uma ação militar de consequências
imprevisíveis.
Como secretário de Estado do então
presidente Gerald R. “Jerry” Ford (que o manteve no cargo depois da renúncia do
presidente Richard Nixon), Kissinger julgou-se suficientemente poderoso para
desencadear uma série de planos secretos de contingência que incluíam ataques
aéreos e explosões de minas contra alvos de Cuba. Tudo a pretexto de não deixar
os EUA parecerem “fracos” aos olhos do mundo.
As ações planejadas por ele, segundo os
relatos agora levados ao conhecimento dos próprios norte-americanos, deveriam
ocorrer como resposta à decisão de Fidel Castro de enviar militares cubanas a
Angola, no final de 1975. Os papéis ocultados por 38 anos da opinião pública
mundial, foram divulgados na última quarta-feira.
Segundo eles, Kissinger planejou atacar
Cuba em seguida a incursão cubana em Angola.
Uma frase textual dita pelo secretário
de Estado ao presidente Ford é citada: “Acho que vamos ter de arrasar Castro”.
A aventura parece ter assustado até o
próprio presidente Ford, depois destas palavras de
Kissinger ao general George Brown, da
Chefia do Estado Maior Conjunto das Forças Armadas: “Se decidirmos usar o
poderio militar, ele terá de ter sucesso. Não poderemos nos limitar a meias
medidas”, instruiu o secretário de Estado no dia 24 de março de 1976.
O grupo também incluía o secretário da
Defesa, Donald Rumsfeld – que anos mais tarde ocuparia o mesmo cargo ao ser
desencadeada, em 2003, à sombra do presidente George W. Bush e seu vice Dick
Cheney, a sangrenta guerra contra o Iraque.
Kissinger, depois do maior momento de
fúria irracional (“arrasar Castro”), pode ter sentido a conveniência de um
recuo: “Provavelmente não podemos fazê-lo antes das eleições presidenciais (de
1976)”, reconheceu diante de Ford. Só então ganhou o apoio do presidente: “Eu
concordo”.
Certos excessos retóricos que podem ser
percebidos hoje na leitura dos papéis também podem ser melhor entendidos ao se
considerar as incertezas políticas do governo Ford naqueles dias. Empossado em
agosto de 1974, em seguida à renúncia de Nixon, o novo presidente desgastara a
própria imagem ao assinar imediatamente o perdão para o presidente que o fizera
vice. Apesar da reação negativa quase unânime, candidatou-se depois à reeleição
– o que o levaria à derrota diante do democrata Jimmy Carter e à passagem do
cargo em janeiro de 1977.
Além de ter prolongado
desnecessariamente a presença no poder de Kissinger, já comprometido então com
a ampliação da guerra do Vietnã, a repressão aos protestos em casa e o apoio a
algumas das ditaduras mais sanguinárias da América Latina (Chile, Argentina,
Brasil, América Central, etc.), ele passa o resto da vida agora a fugir de autoridades
e países que sonham puni-los pelos crimes passados.
A própria ideia fixa de Kissinger
segundo a qual a presença de cubanos em Angola seria interpretada como sinal de
fraqueza dos EUA parece risível hoje – capaz até de reduzi-lo a mero personagem
grotesco daquele momento histórico. Ajuda apenas a entender outras de suas
ações – como a autorização dada à ditadura argentina para apressar o banho de
sangue e terminar “o trabalho” antes da reabertura, em janeiro, do Congresso
dos EUA.
Sua fixação em Cuba é outro capítulo
grotesco. Em 15 de março de 1976, por exemplo, disse em reunião realizada no
escritório oval da Casa Branca que “até os iranianos estão preocupados com a
chegada de cubanos aos países do Oriente Médio. Acho que temos de humilhá-los.
Se eles entrassem na Namíbia ou na Rodésia, eu seria a favor de liquidá-los”.
De acordo com os documentos, os planos
de contingência de Kissinger previam opções militares para bloquear barcos
cubanos transportando tropas e material de guerra contra bases e aeroportos de
Cuba. Nos papéis são discutidos riscos, inclusive a possibilidade de a União
Soviética frustrar bloqueios tomando ou afundando barcos. Segundo um dos documentos,
isso poderia resultar em “escalada para guerra generalizada”.
Os planos de contingência motivaram nota
cautelosa sobre que tipo de provocação justificaria disparar resposta militar
dos EUA. Eles afirmaram que embora o “limiar” (“threshold”) deva estar baixo,
se Cuba se movimentar contra territórios dos EUA, tem de estar no ponto mais elevado
(“highest”) para a África.
A herança do governo Ford, cujo mandato
foi inferior aos quatro anos tradicionais, foi discreta. Mas coube a ele
projetar dois então desconhecidos –Dick Cheney e Donald Rams, os inventores da
guerra do Iraque no governo do segundo Bush. Ford morreu em dezembro de 2006,
com 93 anos de idade.
O fim do sigilo sobre esses documentos,
agora à disposição dos interessados, foi mais uma iniciativa do grupo
independente National Security Archive, que funciona em Washington. Paralelamente
os professores William M. LeoGrande, da American University, e Peter Kornbluh,
que dirige o Projeto Documentação de Cuba no National Security Archive, lançaram
o livro Back Channel to Cuba: The Hidden History of Negociations Between Washington
and Havana.
Os autores afirmaram que a história de
tais conversações e as lições dela resultantes permanecem especialmente
relevantes num momento em que tanto o presidente Barack
Obama como o presidente cubano Raul
Castro declararam publicamente a urgência de esforços e movimentos além do
legado de hostilidade perpétua das relações EUA-Cuba.
FONTE: Carta Maior
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