domingo, 12 de outubro de 2014

América Latina e Caribe: entre a profundidade das mudanças e a ameaça de restauração conservadora

ESCRITO POR ATILIO BORON  

Compartilho uma reflexão inicial sobre as posições e discussões sustentadas no Encontro que as forças de esquerda e progressistas tiveram em Quito, nos dias 29 e 30 de setembro, com o tema “As revoluções na Pátria Grande: metas e desafios”.

Primeiro, a constatação de que o ciclo de ascensão do movimento popular na América Latina e o Caribe se deteve. Claro, a dinâmica da luta de classes segue seu curso nos distintos países, e em alguns casos com muita intensidade, onde se pode observar um arquipélago de resistências aos acelerados processos de expropriação e saque, perpetrados pelas grandes transnacionais do “agronegócio” e da mineração, principalmente. Ciclo que, sem dúvida, poderá renascer em não muito tempo.

Em outras palavras, a formidável maré de caráter continental desatada em fins do século 20, com a vitória de Hugo Chávez nas eleições presidenciais venezuelanas de 1998, se estancou. Poder-se-ia se dizer que o ponto mais elevado deste ciclo ascendente foi a derrota da ALCA em Mar del Plata, em novembro de 2005, e que o estouro da nova crise geral do capitalismo em 2008 marcou o princípio do fim daquela fase. Um exemplo eloquente deste processo é proporcionado pelo auge e decadência do Fórum Social Mundial de Porto Alegre, importantíssimo nos primeiros anos do século, e reduzido à irrelevância nos últimos tempos.

Outro exemplo é aportado pela constatação da “guinada à direita” do centro de gravidade do espectro político, em países como Argentina, Brasil, Uruguai, outrora referenciais da “centro-esquerda” latino-americana; ou pelas crescentes pressões exercidas pelo bloco oligárquico-imperialista sobre os governos bolivarianos da Bolívia, Equador e Venezuela.

Segundo, e como corolário do anterior, depois do desconcerto inicial e do retrocesso experimentado pela direita latino-americana ante o avanço do movimento popular, desencadeou-se um processo de reorganização e reacomodação das forças conservadoras. Em linha com o que observara Antonio Gramsci, em período de crise, estas mudam nomes, agendas, estratégias, táticas, organizações e lideranças para enfrentar, em nosso caso sob direção geral de Washington, os desafios colocados pela nova situação.

As opções são várias: apostam no golpe de Estado na Bolívia (2008) e Equador (2010), e fracassam, não por acaso em dois países que haviam experimentado vigorosos processos de auge das massas. Já antes, em uma mobilização premonitória, tinham tentado na Venezuela, em 2002, derrubar Hugo Chávez, mas a impressionante resposta popular frustrou tais propósitos. Mas triunfaram em duas peças mais frágeis da cadeia imperialista, apelando a novas táticas: os “golpes institucionais”, em Honduras (2009) e Paraguai (2012).

Essa “direita recarregada” se monta sobre o projeto de recuperação e disciplinamento da América Latina e Caribe, desenhado pela Casa Branca a partir das crescentes dificuldades que sua primazia encontra no Oriente Médio, Ásia Central e Extremo Oriente, o que a leva a privilegiar o controle de sua “retaguarda estratégica” a qualquer preço.

Neste novo cenário, essa direita patrocinada, financiada, organizada e aconselhada por Washington lança um projeto de “restauração conservadora”, que combina estratégias institucionais (como criação – ou recriação – de partidos de uma direita neocolonial, que opere falaz e provisoriamente dentro das regras do jogo da democracia) com outras de caráter francamente insurrecionais e sediciosas, como retrata com total clareza a agressão perpetrada contra a República Bolivariana da Venezuela, com suas trincheiras que ocasionaram quase meia centena de mortes, uma vez que a direita voltou a saborear a derrota nas eleições de 2013.

Entre ambas as estratégias, as institucionais e insurrecionais, se apresenta um amplo leque de opções intermediárias, ainda que todas elas com um denominador comum: substituir por qualquer meio os governos que não se alinham incondicionalmente a Washington. Por exemplo, os que não admitem a instalação de bases militares norte-americanas em seus territórios. Isto os converte automaticamente em inimigos a serem derrotados, apelando-se a qualquer recurso.

Em terceiro lugar, há que ter em conta os impactos fortemente negativos que a atual crise geral do capitalismo exerce, através de múltiplos fios condutores, sobre as economias latino-americanas, e suas implicações nos diversos esquemas regionais de integração, como o Mercosul, a Unasul, a Petrocaribe, a CELAC etc.

A interminável recessão, que já se prolonga por mais de seis anos, provocou a diminuição da demanda e dos preços da maioria das commodities produzidas na região, crescentes restrições e condicionamentos impostos pelos grandes capitais para realizar investimentos em países das periferias e, em alguns casos, uma queda no volume das remessas dos emigrados, criando uma situação fiscal cada vez mais comprometida para os governos da região.

Essa combinação de fatores afeta com maior intensidade países como Bolívia, Equador e Venezuela, que nos últimos anos embarcaram em ambiciosos programas de reforma social, combate à pobreza e à desigualdade e custosos investimentos em infraestrutura. O desequilíbrio nas contas públicas agudiza a vulnerabilidade das economias latino-americanas, aumenta  sua dependência externa e debilita o impulso integracionista ao ter de fazer frente às tensões comerciais e financeiras da conjuntura, abrindo-se aos influxos da economia mundial, o que vai contra os acordos regionais de cooperação econômica e política.

Um exemplo: se os países da ALBA necessitam cada vez mais de dólares para importar bens essenciais para seu aparato produtivo, tenderão inevitavelmente a orientar suas relações econômicas a países que possam pagar nessa moeda por suas exportações, em detrimento dos intercâmbios econômicos pagáveis com o Sucre ou com moedas locais. O estancamento do Mercosul tem como uma de suas causas precisamente essa mesma situação. E as restrições em matéria de integração econômica pouco tardam em se projetar sobre a cena política.

Não surpreende, portanto, que a Unasul se tenha visto negativamente afetada pelo clima econômico recessivo imperante na economia mundial, clima que, com uns anos de atraso, em relação a sua irrupção nos capitalismos metropolitanos, terminou por asfixiar os países da área.

Quarto e último (por enquanto, como diz o Comandante): houve um consenso muito grande no Encontro acerca de que a sustentabilidade dos processos de reformas não descansa sobre pactos ou acordos com o establishment local ou internacional (cuja história ensina que invariavelmente terminam com a derrota do campo popular), mas sobre a ininterrupta extensão e aprofundamento das reformas.

Não há consolidação do conquistado se a marcha se detém ou se cai na armadilha do falso realismo do “possibilismo”. Claro que, para continuar o avanço, não bastam apelações retóricas ou culto ao voluntarismo. É necessário aperfeiçoar a organização dos movimentos sociais e forças políticas identificadas com o processo de transformações e trabalhar incansavelmente nisso que Fidel chama de “batalha de ideias”, a conscientização do campo popular.

Em suma: a fórmula da sustentabilidade desses processos que mudaram o mapa sociopolítico latino-americano, desde o começo do século, é “organização + conscientização”. É sabido que cada avanço a um horizonte revolucionário – até a construção de uma sociedade não só pós-neoliberal, mas pós-capitalista – desencadeará as mais ferozes reações da direita vernácula e seus senhores imperialistas, como desgraçadamente comprova o assassinato perpetrado por esses dias em Caracas, do jovem deputado chavista Robert Serra.

Alguns setores do progressismo (inclusive de uma certa esquerda) podem cair em um eleitoralismo teórico em relação ao caráter onipresente e permanente da luta de classes, coisas que jamais ocorrem com nossos inimigos, demasiadamente acostumados ao exercício do poder para se distrair com tais bobagens.

A direita, a burguesia imperial e seus aliados na periferia sabem que a luta de classes é tão real e inexorável como a lei da gravidade, e levam essa crença até suas últimas consequências no terreno da práxis. Se para prevalecerem no conflito têm de matar, vão matar; se têm de torturar, vão torturar; se têm de desaparecer com seus inimigos, farão com que desapareçam. Avançar convictamente é a única maneira de desbaratar seus planos.

Atilio Boron é sociólogo argentino.
Traduzido por Gabriel Brito, do Correio da Cidadania.


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