REINALDO JOSÉ LOPES
COLABORAÇÃO PARA A
COLABORAÇÃO PARA A
Povos indígenas da Amazônia e do cerrado carregam em seu DNA as marcas
de um parentesco insuspeito com aborígines da Austrália e nativos de
Papua-Nova Guiné. O resultado, que aparece de forma independente em dois
estudos divulgados nesta terça (21), reforça a ideia de que o
povoamento original do continente americano foi muito mais complexo do
que os arqueólogos costumavam imaginar.
A questão é como explicar exatamente essa complexidade. Enquanto uma das
pesquisas diz que duas populações diferentes se misturaram logo no
início da presença humana nas Américas, outra defende uma única grande
onda migratória no começo, com a vinda posterior de grupos aparentados
aos povos da Oceania.
Os levantamentos estão na "Science" e na "Nature", as duas maiores
revistas científicas do mundo, e ambas têm participação de pesquisadores
brasileiros. No caso da "Science", a arqueóloga Niède Guidon, da
Fundação Museu do Homem Americano (PI), é coautora da pesquisa, enquanto
o estudo da "Nature" teve participação de Tábita Hünemeier, da USP,
Francisco Salzano e Maria Cátira Bortolini, da UFRGS, e Maria Luiza
Petzl-Erler, da UFPR.
LUZIA EM FAMÍLIA
A pesquisa traz dados novos para uma polêmica que se arrasta desde o fim
dos anos 1980. A questão é saber se a mais antiga brasileira, a célebre
Luzia, que morreu há 11,5 mil anos em Pedro Leopoldo, região de Lagoa
Santa (MG), de fato representa uma população primitiva com traços
"negros".
Para Neves e seus colegas, isso indica que Luzia e seu povo teriam
surgido a partir de uma população com traços vagamente africanos, os
quais, na verdade, eram uma espécie de modelo básico da morfologia
craniana dos primeiros seres humanos modernos, mantido pelos habitantes
da Oceania, que ficaram confinados em suas ilhas por dezenas de milhares
de anos.
Essa população teria chegado primeiro às Américas, atravessando o
estreito de Bering. Mais tarde, grupos da Sibéria mais semelhantes aos
índios atuais teriam se miscigenado com o grupo de Luzia, dando origem
aos indígenas modernos.
O estudo da "Nature" comparou centenas de milhares de pequenas variantes
genéticas dos indígenas da América do Sul e da América Central com
variantes equivalentes de outras populações espalhadas pelo mundo todo. O
método é complicado, mas pode-se dizer que ele procurou testar se
algumas dessas populações do resto do mundo tinham mais variantes em
comum com os indígenas das Américas do que as outras.
PARENTES
O resultado é que justamente os povos da Oceania, tanto na Austrália
quanto em Papua-Nova Guiné e ilhas pertencentes às Filipinas e a Índia,
apresentam sutis semelhanças genéticas com os nativos de regiões
brasileiras: os suruís e karitianas (grupos de Rondônia) e os xavantes
(de Mato Grosso). Algumas análises também incluem os guaranis de Mato
Grosso do Sul na lista. Curiosamente, os povos da Oceania têm
características vagamente africanas, como a pele negra e o formato do
crânio.
É claro que ninguém diria que os xavantes são "negros", porém. O que os
autores do estudo propõem, na verdade, é que o grupo que daria origem
aos povos da Oceania passou por episódios de miscigenação com tribos de
aparência que chamaríamos de "asiática". Essa população já híbrida
–batizada por eles com o termo guarani "Ypykuéra", ou "ancestrais"– é
que teria chegado aqui e, por sua vez, misturada a uma nova onda
siberiana, gerou os índios modernos. A contribuição "oceânica" original
não teria passado de uns 2% do total da herança genética dos indígenas
amazônicos de hoje.
Rasmus Nielsen, dinamarquês da Universidade da Califórnia em Berkeley
(EUA) que coordenou a pesquisa na "Science", discorda. Ele também
encontrou variantes "australianas" no DNA dos suruís, mas diz que esse
aporte genético parece ter vindo bem depois da colonização original do
continente, talvez por meio de outros migrantes da própria Sibéria. De
quebra, seu grupo reanalisou os crânios de Lagoa Santa e afirma não ter
visto sinal de traços "aborígines" no povo de Luzia.
O interessante é que os geneticistas brasileiros do grupo da "Nature"
também sempre viram com ceticismo a ideia da ancestralidade da Oceania
nos primeiros habitantes das Américas. Agora, estão revisando essa
posição.
"Quando eu vi os resultados pela primeira vez, tive primeiro de
desconstruir alguns argumentos que me pareciam muito sólidos, para
depois repensar e construir novos", disse Tábita Hünemeier à Folha.
"Acho que o ponto principal é que nós geneticistas não havíamos
planteado, por impossibilidade técnica, a possibilidade de os indivíduos
de Lagoa Santa serem já misturados com nativos americanos, por causa da
morfologia austromelanésia [da Oceania]. Agora sabemos que Luzia
poderia muito bem ser uma representante da População Y", explica ela. A
esperança de testar essa ideia, afirma Tábita, é obter genomas dos
esqueletos de Lagoa Santa para testar a ideia –algo tecnicamente muito
difícil, mas que talvez não seja totalmente impossível.
*
TENTANDO ENTENDER A OCUPAÇÃO DAS AMÉRICAS
O que diz a teoria tradicional sobre a ocupação das Américas?
Os primeiros humanos vieram da Ásia, via estreito de Bering,
espalhando-se pelo continente. Esse grupo teria características
"mongólicas", semelhantes às da maioria dos índios atuais.
Qual o problema com ele?
Esqueletos encontrados no continente –entre eles, o de Luzia, de 11,5
mil anos, da região de Lagoa Santa (MG)– têm traços "negros", africanos,
diferentes dos povos asiáticos que teriam dado origem aos nativos
americanos.
De onde eles vieram?
A principal hipótese é que elas tenham parentesco com os povos da atual Oceania.
Mas eles não têm traços africanos? Onde entra a Oceania nisso?
Os grupos que saíram da África e foram para a Oceania, há dezenas de
milhares de anos, ficaram isolados dos grupos que ocuparam a Ásia e,
assim, mantiveram algo da morfologia dos primeiros seres humanos
modernos.
Como esse pessoal foi parar na América?
Aí é que mora a confusão. Embora existam hipóteses mais radicais
–travessia oceânica–, os trabalhos na "Science" e na "Nature" dão outras
explicações.
Quais?
Os dois grupos acreditam em migração por Bering, mas de formas diferentes.
Os cientistas na "Science" sugerem que os grupos ligados à Oceania
teriam um papel secundário na ocupação do continente. Chegaram muito
depois, e em quantidade muito menor, do que os asiáticos.
Já o artigo na "Nature" diz que ambos os grupos talvez sejam igualmente
antigos no continente. Isso implicaria forte miscigenação logo no início
da presença humana nas Américas, dando origem a indígenas como certas
tribos da Amazônia, como os suruís.
Nenhum comentário:
Postar um comentário