Por Simone Silva
Desde que publicamos o artigo “Um novo padrão de financiamento e um novo tipo de pesquisa”[i], faz um ano, mudanças importantes foram efetivadas na ciência e tecnologia (C&T). A aprovação do Marco Legal de C&T – Lei 13.243/16 em janeiro, temática também tratada em artigo,[ii] foi a consolidação, por meio de lei, do novo padrão ao qual nos referimos no primeiro artigo. Após a ascensão do governo ilegítimo à Presidência da República, as medidas seguem aprofundando a crise e alterando a relação do Estado com a C&T produzida nas universidades públicas. Após fundir o Ministério de C&Ti ao Ministério das Comunicações, o governo anuncia a intenção de subordinar o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), a Agência Espacial Brasileira (AEB) e a Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnem) a uma Coordenação Geral de Serviços Postais e de Governança e Acompanhamento de Empresas Estatais e Entidades Vinculadas, que pertencerá a uma diretoria com o mesmo nome e, que, por sua vez, responderá à Secretária Executiva do Ministério que já não é mais somente de C&Ti. Somado aos freqüentes cortes de verbas e bolsas, o cenário constituído consolida a intenção de estabelecer um novo padrão da pesquisa nas universidades públicas que pode provocar alterações importantes em sua estrutura.
A história da C&T no Brasil está marcada pelas especificidades da opção por um projeto de desenvolvimento dependente. A regulamentação da pós-graduação no Brasil talvez seja o melhor exemplo da opção pela heteronomia. A tentativa de criar uma pós-graduação no Brasil como cópia pastiche do modelo estadunidense expõe o nível de abstenção que as frações burguesas e o governo brasileiro assumiram em relação à produção de algum projeto que representasse culturalmente o país. A palavra autonomia fui subtraída do dicionário desses senhores como procedimento necessário para que o projeto de desenvolvimento do país tivesse o formato dos acordos bilaterais realizados no período.
Para falar de desenvolvimento científico, vale sempre lembrar que, no Brasil, a pesquisa se realiza fundamentalmente nos programas de pós-graduação, e que a consolidação dela se deu no período da ditadura empresarial-militar sob as bases dos Planos Nacionais de Desenvolvimento elaborados e controlados pelo governo, em parceria com as frações burguesas locais. Assim, os mais bem avaliados cursos de mestrado e doutorado atualmente, em sua maioria, foram criados neste período e beneficiados com os investimentos do período militar. Mas, também viviam sob o controle do Estado. O CNPq chegou a estar diretamente subordinado à Secretaria de Planejamento da Presidência da República (Seplan).
Embora existissem polos de resistência, não só no movimento docente e estudantil organizado, mas de membros da academia que, individualmente ou através de fóruns da comunidade científica, criticavam a ditadura e as investidas, em sua maioria bem-sucedidas, de controle da produção científica, os altos investimentos do período promoveram algum grau de hesitação em relação à defesa da autonomia por algumas associações científicas, as quais “parecia[m], num sentido mais amplo, ter aceito o lugar que o regime militar queria que a ciência (e a comunidade científica) ocupasse na formação social brasileira”[iii]. No entanto, quando os investimentos minguaram a autonomia voltou a ser a preocupação de boa parte da sociedade acadêmica. A mesma sociedade acadêmica que, logo depois, convocada por sua autoridade no campo científico, adquirida por meio da aquisição do monopólio de determinação do que pode ser validado como ciência[iv], assume o papel de administrar a distribuição dos parcos recursos para a pesquisa, elaborando políticas de avaliação para a contenção da distribuição das verbas aos programas de pós-graduação. Vale ressaltar que aqueles que elaboraram e implantaram as políticas de avaliação, em grande parte, nunca foram submetidos a elas para conseguir financiamento.
A Reforma do Estado motiva alterações importantes por meio das políticas de financiamento. As fundações de apoio (1994) e os fundos setoriais (1999) constituem uma nova porta para a entrada de financiamento público ou privado. Mas, é a partir do século XXI que a ofensiva na aproximação entre a ciência e tecnologia desenvolvida no âmbito da pós-graduação das instituições federais de ensino e as demandas das empresas se consolidam. Decerto, este novo quadro vai influenciar as universidades públicas tanto do ponto de vista de sua estrutura (ensino, pesquisa e extensão), quando do ponto de vista de sua produção científica.
As leis aprovadas neste período promovem um salto importante na aproximação universidade-empresa. A Lei de Inovação Tecnológica (10.973/04) estimula sobremaneira esta relação, esgueirando-se de cobrar que as empresas privadas constituam seus próprios centros de pesquisa. Ao contrário, as universidades estão sendo instadas a desenvolver Produção & Desenvolvimento – P&D. A criação da Embrapii – Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial, uma organização social, cujo objetivo é compartilhar os riscos da inovação com as empresas, permitindo a elas buscar uma melhor colocação na competitividade internacional, tem aumentando o credenciamento de programas de pesquisas de universidades e institutos federais. De forma semelhante, tem aumentado o número de parques tecnológicos com a presença de grandes empresas nos campi das universidades públicas. A aprovação do marco legal de C&T em janeiro é a cereja do bolo da festa das empresas nas universidades públicas.
Contudo, o projeto não é somente a aproximação entre a universidade e a empresa. Há ainda a substituição de financiamento, o que acreditamos que irá criar um novo padrão de pesquisa. A redução do financiamento público à pós-graduação, além de economizar em gastos com políticas de interesse público, cria uma situação de caos e faz com que pesquisadores e instituições justifiquem a presença das empresas como única fonte de financiamento possível, o que muda o caráter da universidade.
A partir de 2015, há uma drástica redução de investimentos públicos em pesquisa. Neste ano, os cursos de pós-graduação foram surpreendidos com o corte de 75% nas verbas do Proap – Programa de Apoio à Pós-Graduação e de responsabilidade da Capes. Esta verba é destinada ao apoio da produção científica, como, por exemplo, a divulgação de eventos científicos. As bolsas de iniciação científica também foram reduzidas. Destinadas a graduandos, estas bolsas são fundamentais na relação básica da formação – ensino e pesquisa. A urgência das pesquisas e a vontade dos estudantes de fazerem parte dela tem gerado granduandos pesquisadores sem nenhum auxílio financeiro.
Em março de 2016, a Capes bloqueou cerca de 7 mil de bolsas de Demanda Social por considerá-las ociosas. No entanto, eram bolsas em transição de mestrandos ou doutorandos que haviam defendido suas dissertações e teses para novos alunos. A redução das bolsas de pesquisa no exterior e o fim do programa Ciência Sem Fronteiras são mais algumas contribuições para a negligência com a pesquisa nas universidades. A propósito, até o momento os maiores cortes aconteceram nas bolsas de pesquisa no exterior. No CNPq, a curva ascendente que partiu, em 2013, de 401 milhões de reais para 808 milhões, no ano seguinte, teve uma pequena queda no ano de 2015, 724,5 milhões, e o seu fim em 2016, quando nenhuma bolsa exterior foi oferecida. A Capes ofereceu este ano apenas 2000 bolsas de 12 meses para pesquisa no exterior e está orientando que se divida as bolsas em até quatro meses para atender um número maior de alunos, mesmo que isto reduza o tempo de pesquisa. Em outubro de 2016, mais um corte está sendo anunciado: o CNPq parece estar programando para os próximos dias um corte de 20 a 30% nas bolsas de pesquisas de mestrandos, doutorandos e bolsas de produtividade. É este quadro de redução de bolsas e verbas que a nefasta PEC 55 pretende congelar por duas décadas. Toda redução realizada antes da aprovação deste descalabro tende a reduzir ainda mais os investimentos na área de pesquisa desenvolvida nas universidades.
A anexação dos ministérios e a subjugação das agências e conselhos indicam que as atuais políticas para a C&T em muito se diferem do período da ditadura empresarial-militar, quando os investimentos e o interesse pelo controle por parte do Estado tinham outra dimensão. O quadro hoje é o inverso. O governo, tal qual durante o governo Collor quando o ministério de C&T foi transformado em secretaria, reduz o papel do ministério e corta investimentos. O novo ministro, Gilberto Kassab, está promovendo uma sequência de substituições nos principais órgãos que regulam e fomentam a pesquisa. Mudou o presidente da Capes, da Finep e do CNPq. Para a coordenação da Capes, depois da saída de Jorge Guimarães, que foi estacionar na presidência da Embrappi, o governo anterior havia nomeado Carlos Afonso Nobre (ITA) em 2015, e o atual governo o substituiu por Abílio Baeta (UFRGS), presidente da Capes no governo de FHC. No caso da Finep, Wanderley de Souza (UFRJ) foi substituído por Marcos Cintra (FGV-SP), que foi secretário do Planejamento, Privatização e Parceria do município de São Paulo durante o governo de Paulo Maluf. O CNPq terá Mario Neto Borges (UFSJ), professor aposentado e ex-reitor como seu presidente.
Entender que a luta em defesa da universidade pública não pode acontecer de acordo com questões corporativistas é a necessidade básica para enfrentar essa situação catastrófica.
A questão não é salarial, nem bolsas de graduação, mestrado e doutorado, nem ainda as condições de trabalho. A questão é a crise como projeto para a universidade, que em pouco tempo a inviabilizará. E a crise são todos estes elementos agregados às políticas de parcerias com o setor privado e a transformação da produção científica e tecnológica em produção e desenvolvimento para empresas. Infelizmente, em muitos momentos só se enxerga o problema que se quer enxergar evitando encarar a complexidade da situação. A SBPC meses atrás estava empolgada com a aprovação do marco legal e imputava à lei a possibilidade do Brasil “dar certo na inovação tal qual já deu certo na ciência”. Para a SBPC, o caminho é o marco legal já que este tem o objetivo de estimular e simplificar o processo de inovação, estabelecendo uma relação mais próxima entre pesquisa, governo e empresas.[v] Atualmente, a mesma SBPC tem protestado contra a fusão dos ministérios, o corte de bolsas e verbas e o rebaixamento dos conselhos e agencias de pesquisa na estrutura do novo ministério. Por vezes, as autoridades científicas atuam em defesa das questões que lhes afligem pontualmente, sem olhar para o conjunto do projeto. Ao não analisar a totalidade das políticas para a pesquisa no Brasil, seus nexos e as implicações para a universidade pública, as lutas pontuais, mesmo se atendidas momentaneamente, não mudam o curso do projeto catastrófico em curso.
O discurso insistente dos governos e das frações burguesas de que a Educação e a Ciência são elementos essenciais para o desenvolvimento do país se torna cada dia mais vazio. As medidas aplicadas ou em curso apontam para uma situação cada vez mais de dependência. Nenhuma possibilidade de autopropulsão de um projeto de desenvolvimento que atenda às necessidades da população. Investimentos direcionados às demandas empresariais visando ao compartilhamento de riscos das empresas na competitividade da inovação, buscando ajudá-las a obter melhores condições no mercado internacional por intermédio do dinheiro público e da universidade pública, não parece ser um bom projeto de desenvolvimento do país que se preocupe com as questões prementes para a garantia do bem-estar dos povos.
Com efeito, a ciência e a tecnologia têm um papel importante no processo de acumulação de capital. No Brasil, 85% da pesquisa é realizada nos programas de pós-graduação da universidade pública, o que contribui para transformá-la em um espaço privilegiado do saber. Por sua vez, os empresários, em lugar de investir em seus próprios centros de pesquisa e desenvolvimento e contratar cientistas formados pela universidade para seu quadro funcional, optam, como parasitas, por utilizar a universidade, seus pesquisadores e até seu espaço físico, interferindo, assim, nas caraterísticas da produção científica. Cortar verbas e bolsas é, portanto, um artifício que, além de significar uma falsa economia de gastos públicos, cumpre o papel de empurrar a comunidade universitária a se submeter às empresas para obter financiamento, abrindo mão da autonomia da pesquisa, admitindo a constituição ao novo padrão de pesquisa, que prioriza o capital, e abandonando a função social da universidade.
Notas
[i] SILVA, S. Um novo padrão de financiamento e um novo tipo de pesquisa. Blog Junho, 16 out. 2015. Disponível em
http://bit.ly/1SsENvH
[ii] SILVA, S. O novo marco de C&T e o desmantelamento da universidade pública. Blog Junho, 16 fev. 2016. Disponível em
http://bit.ly/2bsBOGd
[iii] FERNANDES, A.F. A Construção da ciência no Brasil e a SBPC. 2ª ed. Editora. Brasília, 2000. p.35).
[iv] BOURDIEU, P. O campo científico. In: Ortiz, Renato (org.), Sociologia. São Paulo, Ática, 1983.