À medida que se aproxima a votação do novo Fundeb, cresce o clamor do “mercado” e seus defensores, pelo acesso de entidades filantrópicas, ONGs e instituições privadas ao dinheiro público.
Caso se queira conhecer o argumento do “mercado”, pode se ver, hoje (9-7-20), na Folha de São Paulo, o artigo de Fernando Schuler: “Novo Fundeb: por que engessar os recursos da educação?”
O argumento mercadológico é ali bem resumido, quando ele critica o que chama de “engessamento”, ou o impedimento de acesso de entidades privadas ao dinheiro público do Fundeb:
“Engessamento que expressa um traço de nossa cultura corporativa, de que o acesso dos cidadãos a serviços suponha que eles sejam prestados diretamente pela máquina pública.
Trata-se da velha confusão brasileira entre o público e o estatal. Serviços públicos podem ser oferecidos de modo concorrencial, via contratos, com medição de resultados e, sempre que possível, dando poder aos cidadãos para que façam as suas escolhas.”
É a velha ideia de que o mercado (a concorrência) é a fonte da qualidade, em oposição ao Estado que seria a fonte da incompetência. Logo, se as escolas forem inseridas na competição mercadológica, então haverá qualidade – desde que o Estado não interfira. É o velho discurso da diferença entre público e estatal, um privatismo de terceira via, que visa tornar a privatização mais adocicada e que até arrastou corações no âmbito da social-democracia e da esquerda.
No fundo, é o mesmo discurso da destruição do Estado que retira dele toda sua função “social”, todo o olhar para o “bem-comum” e, com isso, lança os cidadãos no mercado a mercê das escolhas possíveis. Von Mises estaria orgulhoso de Schuler.
Mas, de fato, este discurso oculta a emergência de um novo corporativismo de Estado sob controle dos grupos econômicos monopolistas que disputam este Estado para criar mercados cativos – nas prefeituras e nos estados -, para onde se quer descentralizar os recursos e deixá-los na dependência dos grupos mercadológicos locais (e suas conexões políticas) que os disputam para si junto às prefeituras – claro, tudo segundo as supostas leis infalíveis do mercado. Com isso, facilita-se o andamento do processo de privatização que não fica mais sujeito à posição do governo central. Este apenas dispõe os recursos, a decisão de privatizar fica na ponta e, portanto, mais diversa e frágil politicamente.
Interessante que os defensores da infalibilidade do mercado queiram que ele, o mercado, se desenvolva às custas do dinheiro do Estado, quando criticam os que dependem do dinheiro do Estado, as escolas públicas, de serem corporativistas. Está em curso a tentativa de criar um novo corporativismo no Estado, agora sob o comando dos privatistas a título de não engessar a máquina pública.
Já se sabe onde isso vai dar: querem delegar para as autoridades locais (prefeitos e estados ou até mesmo secretários de educação) a definição de qual “modelo” devem seguir para organizar a rede de ensino, e com isso, permitir a contratação de filantrópicas, ONGs e entidades privadas usando o dinheiro público. Isso liberaria o lobby das privadas junto às autoridades locais para garantir financiamento – tudo em nome dos pobres e em nome da flexibilidade administrativa, claro.
Ao invés do dinheiro público ir fortalecer a escola pública de gestão pública, ele vai parar no bolso de instituições privadas e gerar lucro. É a voracidade do mercado que a tudo quer para si, desesperado por encontrar algum espaço para maximizar seus lucros num mundo globalizado onde quase tudo foi submetido à lógica mercantil.
Note-se: alega-se, no artigo, que esta experiência de abertura da gestão é pouco usual no Brasil, mas o que se quer é ocultar, com isso, o fracasso destes modelos onde ele é, sim, abundante: veja-se o Chile (veja aqui e aqui) e, embora em menor escala de utilização, nos Estados Unidos (veja aqui, aqui, aqui, aqui). Mas mesmo lá com Estados, há locais onde a educação pública foi privatizada em 90% como em New Orleans (veja aqui e aqui). E ali temos, sim, resultados – catastróficos – que mostram os inconvenientes de se lançar a educação pública no mercado. Sobre isso: silêncio, nada é dito.
Não são poucos os relatórios de pesquisa independentes (veja aqui, aqui, aqui) que mostram ser um equívoco confiar a educação ao mercado – seja na forma de terceirização, seja na forma de “vouchers”. E este também, por exemplo, é o caso da área da Saúde: já pensaram se a saúde no Brasil estivesse privatizada, como nos Estados Unidos está, em meio a esta pandemia?
Esta é uma batalha de vida ou morte para o sistema educacional público de gestão pública. Esta é a razão pela qual não podemos mais apenas defender a “escola pública” e precisamos adicionar, agora, que estamos falando de “educação pública de gestão pública”.
A justificativa da abertura dos recursos públicos é antiga: tratar-se-ía, como nos informa Fernando Schuler em seu artigo, de uma defesa das crianças mais pobres:
“O erro é tomar o modelo estatal como o único possível, sem qualquer análise comparativa e contra todos os sinais que nos chegam da realidade da educação brasileira.
É este o erro que o Congresso corre o risco de cometer na votação do novo Fundeb. Todos sabemos que a pressão corporativa é forte e o lobby das famílias mais pobres é inexistente. Elas certamente optariam por dispor dos mesmos direitos à escolha educacional hoje disponíveis à classe média e aos mais ricos no Brasil.”
Como sempre, usa-se o argumento comovedor da defesa das criancinhas mais pobres e que estão condenadas a estudar em escolas públicas ineficientes, quando poderiam escolher estudar nas excelentes escolas filantrópicas ou privadas, se não houvesse o monopólio do Estado.
Esta é a proclamação. Mas a realidade, porém, é outra. E ela vem da própria natureza do mercado. Educação de qualidade custa, e o mercado não é filantropia. Ele cobra mensalidade de acordo com a qualidade que oferece.
Há muitas qualidades, portanto, que estão, simultaneamente, sendo oferecidas no mercado concorrencial. E isso não implica que haja uma tendência “irresistível” para a melhoria da qualidade, pois, ao contrário, o mercado abre diferentes qualidades segundo diferentes possibilidades de compra ou pagamento. No mercado nada se perde. É o caso dos celulares: há para todos os bolsos, mas isso não torna todos os celulares em peças de igual abrangência de qualidade.
A privatização retira do Estado a coordenação para elevar a qualidade de todas e cada um das escolas. Lança a educação no mercado sujeita às suas próprias leis de concorrência. A desigualdade se amplia.
Enquanto se pode lutar e pressionar por um padrão de qualidade elevado para as escolas públicas de gestão pública, e responsabilizar o Estado por investir nisso, não se pode fazer o mesmo com o mercado (lembrem-se de que, para os neoliberais, o Estado não pode intervir no mercado), não se pode disciplinar a qualidade do mercado – a educação passa a ser iniciativa privada sujeita a escolha e é da natureza do mercado que não haja um único padrão de qualidade, se existem diferentes clientes disponíveis para pagar. É o cliente que se ajusta à qualidade ofertada segundo suas posses.
No mercado, há “qualidades” e cada uma delas com um custo e uma mensalidade diferente – qualidades que estão sujeitas à escolha do cliente. Qual será a mensalidade que os pais poderão “pagar” para seu filho (no caso de se adotarem os vouchers) ou qual será aquela que o município poderá contratar à iniciativa privada (terceirizadas ou plataformas de ensino on line), com o dinheiro do Fundeb, para seus estudantes? A resposta é simples: aquela que couber no orçamento. No caso de se distribuir o dinheiro público na forma de “voucher”, caberá aos pais complementar ou não o dinheiro do “voucher” com seus próprios recursos – caso ele queira “escolher” uma escola de maior qualidade para seu filho, do que aquela que o valor do “voucher” possa pagar.
No Chile, como bem sabemos, foi isso que levou ao co-pagamento: o pai complementa com dinheiro de seu próprio bolso para poder ir atrás de uma escola privada que realmente tenha uma qualidade um pouquinho melhor. E se não pode nem complementar, então é obrigado a ficar na escola pública de gestão pública que ainda restou, agora destruída pela transferência de recursos públicos para o setor privado. Não tem mais a escola pública de qualidade e muito menos a escola privada de qualidade, pois não cabe em seu bolso. É esse o destino da pobreza, se acreditar nos contos de carochinha do mercado e seus representantes.
Deveria ser levado a sério o mea-culpa feito por Renato Feder, o candidato descartado a ministro da Educação no governo Bolsonaro, e a autocrítica que faz de suas ideias de privatização da educação em sua juventude. Diz ele que, agora, após estudar o tema com maior profundidade, percebeu que:
“… não houve vantagens na adoção do modelo [de privatização] para o aprendizado, como em experiências adotadas no Chile e nos Estados Unidos. “Eu acredito tranquilamente, firmemente, que ensino público tem condições de entregar ensino de excelência. Não vou privatizar, não vou terceirizar e não vou fazer voucher”, declarou ao jornal na ocasião.”