"Como em 1964, comunismo, hoje, é inimigo inventado", diz filha de Prestes
Camila Brandalise
De Universa
13/11/2019
As histórias que povoaram a infância de Anita Leocadia Prestes, hoje com 82 anos, envolviam política internacional, nazismo, clandestinidade e planos para implementar a revolução comunista no Brasil. Filha dos líderes comunistas Luiz Carlos Prestes (1898-1990) e Olga Benário (1908-1942) e nascida em um campo de concentração, na Alemanha, aos dois anos Anita já era uma exilada política no México, criada pela avó Leocadia e pela tia Lygia.
Os detalhes da sua trajetória —que se mistura com a dos movimentos radicais brasileiros—, da relação com os pais à militância no PCB (Partido Comunista Brasileiro), estão compilados no livro de memórias "Viver É Tomar Partido" (editora Boitempo), que chega às livrarias nesta quarta-feira (13). Na obra, a historiadora e professora aposentada da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) também documenta a vida das mulheres que a criaram, elas mesmas figuras importantes para a política do país, ainda que não tão conhecidas quanto Prestes e Olga.
Profunda estudiosa do comunismo, Anita não vê qualquer possibilidade de implantação do sistema no país, uma vez que considera que a esquerda brasileira, mesmo a moderada, anda mal das pernas: "Está desorganizada, pulverizada, sem rumo. A curto prazo, não vejo saída. Vai depender de mobilização, de organização. Um dia isso vai surgir, mas não estou vendo no momento."
Leia trechos de entrevista de Anita a Universa.
Filha de Luiz Carlos Prestes
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Primeiro encontro de Anita com o pai. Rio de Janeiro, 28/10/1945. |
"Sabia quem meus pais eram desde bem pequenininha", conta Anita, nascida em 1936, ano em que Prestes foi preso por Getúlio Vargas e em que sua mulher, Olga Benário, judia, foi enviada, a mando do então presidente brasileiro, a um campo de concentração na Alemanha, onde era fichada por "atividades subversivas". Aos 14 meses, foi entregue a avó Leocádia e viveu exilada com ela e a tia Lygia no México.
Quando Prestes saiu da prisão, em abril de 1945, na redemocratização após o período conhecido como Estado Novo, Anita se lembra de ir com a tia à redação de um jornal mexicano, onde trabalhava uma amiga da família, para ler um telegrama divulgado por agências de notícias com o decreto de anistia de Vargas. Tinha oito anos. O encontro entre pai e filha aconteceu em outubro do mesmo ano, quando ela voltou para o Brasil.
"Ele foi um pai muito carinhoso, até pelas cartas que me mandavam e minha avó e tias liam. Mesmo quando o conheci, lembro bem, estava deslumbrado com a filha. Depois, no pouco tempo livre que tinha, quando estava em casa, me dava atenção, me levava para passear. Aprendi com ele a não cultivar a tristeza. Ele me dizia: 'Tem que analisar a situação'. Aconteceu algo ruim, vamos analisar e ver o que se pode fazer. Era uma pessoa extremamente serena", diz.
Nascida em berço comunista, Anita diz ter ouvido, em casa e desde pequena, a frase que dá título ao novo livro: viver é tomar partido, usada pelo filósofo Antonio Gramsci em um texto sobre o mal da indiferença. "Fui educada para me posicionar politicamente. O capitalismo leva ao individualismo, então, se não existe uma educação contra isso, que ensine que homens e mulheres devem ser solidários entre si, é meio difícil exigir das pessoas que tomem partido", afirma. Partido, no caso, era ser contra o capitalismo.
Em 1950, aos 14 anos, em plena Guerra Fria, passou a viver na clandestinidade após receber cartas anônimas com ameaças de sequestro. Vivia escondida na casa de um médico, também comunista. Na época, se mudou para Moscou, regressando ao Brasil em 1957. Dois anos depois, se filiou ao PCB (Partido Comunista Brasileiro), com o qual rompeu em 1979, junto com o pai, por não acreditar que o partido seguia o ideário da revolução. Atualmente, não tem partido, mas continua agarrada à crença no comunismo.
As mulheres da minha vida
"Minha avó, com mais de 60 anos, com pressão alta, sem nunca ter participado ativamente da vida política, encabeçou a Campanha Prestes na Europa, mobilização que teve comícios e atos públicos pela libertação de presos políticos", conta Anita. Leocadia também pedia que a neta fosse libertada do campo de concentração em que nascera, o que aconteceu quando tinha 14 meses de vida. "Lygia, minha tia, com 22 anos, largou os estudos e acompanhou a mãe. Eram muito combativas e determinadas. Elas não tinham preocupação com o papel da mulher na sociedade, naquela época isso não existia. Enfrentaram uma situação difícil com coragem e determinação como acharam que deveria ser."
Das outras três tias, ouvia histórias sobre a participação delas na 2ª Guerra Mundial. "Elas ficaram em Moscou e monitoravam bombardeios, avisavam se caiu granada, faziam inspeção para que não houvesse luz acesa, o que seria um ponto fácil de ver e de bombardear", diz.
"Depois, foram retiradas para os Montes Urais, na fronteira entre a Rússia europeia e a Rússia asiática. Trabalharam em hospitais de guerra tratando soldados feridos que chegavam estraçalhados. Quando vieram para o Brasil, me contavam muitas dessas histórias. Sempre gostei de ouvir."
A história contada pela perspectiva feminina
"Não acho, como comunista, que teria uma visão muito diferente se fosse homem", diz Anita, ao ser questionada sobre a diferença de perspectivas entre autores homens e mulheres. "Nunca fui especialmente preocupada com isso. Como sou comunista desde muitos anos, sigo a ideia de que é na sociedade capitalista que a mulher é duplamente explorada. É explorada como trabalhadora e tem toda a carga do preconceito de gênero, a dupla jornada de trabalho."
Líder, mulher, radical e de esquerda
Apesar da noção de que não deveria haver distinção de gênero dentro do ideário comunista, poucas mulheres ocuparam, de fato, posições de liderança no movimento. Anita se lembra de uma: Dolores Ibárruri (1895-1989), da Espanha. "Foi dirigente do partido [Comunista da Espanha] e teve papel fundamental na Guerra Civil [1936-1939]", diz. Dolores, conhecida como Passionária, convocou manifestações contra o general Francisco Franco aos gritos de "não passarão".
Entre os nomes atuais, crava um: a filósofa americana Angela Davis. "Ela luta pela causa das mulheres, em especial a das mulheres negras, e faz questão de dizer que continua comunista", diz. E entre as mulheres brasileiras? "Não me ocorre [nenhum nome]. A Manuela d´Ávila (PCdoB) não vejo como uma grande liderança por enquanto. Pode ser que venha a ser um dia."
Há um projeto para implementar o comunismo no Brasil?
Anita ri, desesperançosa, ao ser questionada sobre se é possível que um regime comunista se instale no Brasil, possibilidade já apontada como ameaça pelo presidente Jair Bolsonaro e por seus correligionários. A resposta dela é não. "Tem pessoas que se esforçam para isso, mas o desmonte do movimento foi muito grande. O PCB é débil, sem condições. Por enquanto, estamos longe disso", diz ela, historiadora que se debruçou sobre o comunismo durante a carreira acadêmica.
"Você veja, hoje em dia, o comunismo não está representando nenhum perigo. Nem em 1964 representava esse perigo todo que se dizia na época, que os comunistas iriam tomar o poder. Não tinha força para isso. Mas é usado como bandeira, é um inimigo inventado para articular adeptos. É o bode expiatório. No golpe de 1964, quais eram as bandeiras? Contra o comunismo e contra a corrupção, exatamente o que está sendo dito agora."
Mas por que, então, se fala tanto sobre uma possível tomada de poder pelos comunistas? Anita elenca alguns motivos: "O avanço da direita no mundo, as derrotas da esquerda, a crise do capitalismo muito séria, a insatisfação popular. Isso tudo leva a burguesia mundial a se articular para defender seus interesses. E aí o bode expiatório é sempre o comunismo".
"Quem lê com seriedade 'O Capital', obra de Karl Marx, entende que o que ele faz é provar cientificamente, não é achismo, que o capitalismo se move por contradições cada vez mais graves, que vemos aumentando, como a concentração de renda. Há um pequeno número de milionários enquanto aumentam as milhões de pessoas em situação mais desfavorável. A insatisfação popular cresce, o desemprego está alto como nunca foi", diz.
"Vai levar tempo para forças sociais e políticas organizadas conseguirem levar adiante um projeto para derrubar o capitalismo. E não tem jeito, a única saída é o socialismo. Quando vai ser não dá para adivinhar. Mas vai surgir, não tenho dúvida, é uma necessidade histórica."
Fascismo à brasileira
Para Anita, não se pode falar que o Brasil vive no fascismo porque o "Estado de Direito ainda está funcionando". Ou seja, os direitos fundamentais dos cidadãos, garantidos pela Constituição, ainda vigoram, diferentemente do que aconteceria em um sistema fascista, em que as decisões de um governo autocentrado e autoritário imperariam sobre as liberdades individuais.
Mas, segundo ela, esse risco existe. "O presidente Jair Bolsonaro tem posições de caráter fascista, como elogiar um torturador da ditadura. Ele e seus filhos caminham para isso", diz. "Tudo vai depender da organização da resistência para contê-lo."
Esquerda sem rumo
Sobre a esquerda brasileira, Anita é incisiva: "Está desorganizada, pulverizada, sem rumo. A curto prazo não vejo saída. Precisa de mobilização, organização, conscientização. Um dia isso vai surgir, mas não estou vendo no momento", diz.
A comunista histórica tem dúvidas se a saída do ex-presidente Lula da prisão poderá contribuir efetivamente para essa organização. Também não vê no petista um líder que rompa com o status quo capitalista: considera Lula seguidor de uma política tão neoliberal quanto a de Fernando Henrique Cardoso, presidente entre 1995 e 2002.
Em sua opinião, o PT não foi capaz de organizar o povo quando esteve no poder, e dificilmente fará isso agora. "O partido não fez praticamente nada no sentido de organizar, conscientizar e mobilizar trabalhadores para se defenderem e lutarem. Lula distribuiu o Bolsa Família, fez uma série de medidas que melhoraram a situação dos mais pobres, mas não tomou medidas para organizar setores populares", diz.
"Não adianta o líder chegar, falar para grandes massas e ir embora. Precisa organizar núcleos e ensinar o povo a defender seus objetivos. O PT tem uma grande responsabilidade por tudo o que aconteceu, como o golpe contra Dilma Rousseff [em 2016]. Não houve resistência."