Correspondência foi roubada após ação policial na sede do PCB, em 1945, e estava desaparecida
Por Paula Sperb
Folha de São Paulo
29.dez.2019
Graças a uma campanha ao redor do mundo, com envio de correspondências ao próprio Adolf Hitler, Anita Leocádia Prestes, 82, escapou do nazismo aos 14 meses de idade.
Sem a mobilização da avó paterna, Leocádia, o melhor destino para a criança, naquele contexto, seria parar em um orfanato nazista.
O pior seria o mesmo reservado para sua mãe, a militante comunista alemã Olga Benário.
Depois que Anita foi entregue à avó e à tia, Lygia, Olga foi enviada a um campo de concentração, onde morreu na câmara de gás.
A militante foi entregue a Hitler pelo presidente Getúlio Vargas, em 1936, que manteve preso no Brasil seu companheiro, o também militante Luiz Carlos Prestes.
Historiadora, Anita publica um novo livro, “Viver É Tomar Partido: Memórias” (Boitempo, 2019), onde compartilha suas lembranças, mas também o resultado da pesquisa que desenvolve há cerca de 40 anos.
A obra traz duas cartas até então inéditas de Olga para Prestes, escritas em 4 de abril e 6 de julho de 1936, enquanto Olga estava presa na Casa de Detenção, no Rio de Janeiro, antes de ser mandada à Alemanha. As cartas foram escritas em francês, idioma que Prestes também dominava.
As correspondências foram roubadas da sede do PCB (Partido Comunista Brasileiro), em 1945, após uma ação policial.
Os documentos surgiram apenas em 2018, após irem a leilão –que foi cancelado pelo Tribunal de Justiça do Rio.
Anita entrou na Justiça para recuperar as 320 missivas. A herdeira ganhou a causa, mas o caso foi parar no STF (Supremo Tribunal Federal), e Anita ainda não recebeu todas as cartas da família. Ela conseguiu acesso a apenas duas, que constam do livro.
“Gostaria muito de te dizer uma coisa que diz respeito somente a nós dois. Mas diante das circunstâncias não me resta nada além desta possibilidade. Querido, nós teremos um filho. (Eu sinto todos os sinais que existem nesse caso, vômitos etc.)”, escreveu Olga a Prestes. Ela assina como “Maria”, nome que adotou à época.
Na segunda inédita, Olga diz que queria saber se o companheiro está vivo e diz que terá forças para resistir.
Acompanhando seus relatos, que não perdem o tom formal e rigor científico —por se tratar de reminiscências, a narrativa permitiria estilo mais solto—, 101 fotografias ilustram momentos históricos ali narrados.
Anita conta detalhes como o grande mapa do cenário da guerra na parede de casa, onde Leocádia e Lygia marcavam com alfinetes coloridos os movimentos das tropas, torcendo pela derrota dos nazistas diante dos soviéticos.
á no Brasil, aos 12 anos, quase foi impedida por uma professora de ingressar no curso de música para avançar seus cursos de piano. Após a formatura em química industrial, em 1964, ingressou no mestrado em química orgânica.
Pesquisadora com bolsa da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), deparou-se com sua ficha do SNI (Serviço Nacional de Informações), órgão da ditadura, classificando-a como “subversiva”.
VIVER É TOMAR PARTIDO: MEMÓRIAS(376 págs.)Autor Anita Leocadia PrestesEditora Boitempo
Leia a íntegra da carta de Olga Benário a Luiz Carlos Prestes
Ao Sr. Rio, 4.IV.36.
Luiz Carlos Prestes,
Meu querido,
Espero que estas linhas cheguem às tuas mãos.
Eu gostaria muito de te dizer uma coisa que diz respeito somente a nós dois. Mas diante das circunstâncias, não me resta nada além desta possibilidade.
Querido, nós teremos um filho. (Eu sinto todos os sinais que existem nesse caso. Vômitos etc.) Esse acontecimento me faz muito feliz, ainda que eu me dê conta das dificuldades que terei de atravessar. Enfim, nós teremos uma expressão viva de tudo de bom e doce que existe entre nós.
Eu imagino que tu estejas inquieto sobre minha situação. Eu me encontro sozinha numa cela, sem livros, e eu não saio nunca da minha cela. Para me impedir de ver o céu, colocaram um grande pedaço de pano na frente. Assim, eu passo os dias olhando as paredes e esse pedaço de pano. Tudo isso não é agradável, mas eu te asseguro que terei forças suficientes para resistir.
Querido, como eu queria saber de ti, se estás vivo, com saúde; eu não sei de nada. Eu estou muito, muito inquieta, e te peço para me dar uma resposta a esta carta. Na verdade, tu sabes que estou sempre, com todos os meus pensamentos e todo o meu coração, junto de ti.
Muitos beijos,
Sempre tua.P.S.: Esta carta é um pouco... [ininteligível], mas tu entendes...! Responde-me!
Maria Prestes, Casa de Detenção
FONTE: Folha de São Paulo
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