Por Gilberto Calil
Em 16 set. 2015, o Ministério da Educação tornou pública sua proposta de Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para as diversas disciplinas da educação básica, redigida por assessores indicados no dia 17 de junho do mesmo ano.[1]Os componentes curriculares de História não constavam naquela versão do documento, tendo sido divulgados apenas no final de outubro.[2] O documento geral, com 302 páginas, inclui objetivos gerais e componentes curriculares de quatro grandes áreas, abarcando 14 disciplinas. A despeito do atraso (para o qual desconhecemos explicações oficiais) e da consequente redução do tempo para discussão, os conteúdos de História foram certamente os que produziram maior polêmica, com a publicação de grande número de textos críticos e/ou propositivos.
A proposta deste texto é discutir o sentido político e ideológico da proposta apresentada para a área de História.[3] Antes, no entanto, é necessário referir rapidamente o contexto da proposição das bases nacionais e a forma como o debate vem sendo gerido pelo MEC.
Bases Nacionais para quê?
O que explica a proposição de Bases Nacionais no atual contexto da política educacional brasileira e quais foram as motivações do MEC para o encaminhamento da proposta em questão, com prazos de discussão claramente achatados?
Embora a definição de Bases Nacionais possa atender a objetivos e motivações diversas, a análise do professor Paulo Eduardo Dias de Mello dá indicações úteis para compreender o sentido específico desta proposição, claramente subordinada a metas relacionadas a fluxo escolar, ao controle vertical sobre o trabalho docente e à obtenção de resultados em exames padronizados. De acordo com ele, há clara subordinação a uma “lógica da prescrição diretiva, que não se agrega às atuações efetivas para investimento no professor e em sua autonomia profissional e curricular, nem vincula-se a iniciativas concretas de melhoria das condições de trabalho docente”. Ao contrário, nos marcos de uma perspectiva neoliberal, a proposta pretende sanar os problemas críticos da educação básica através de um currículo prescritivo que ataca frontalmente a autonomia docente: “Aos professores será exigido que assegurem aos seus alunos o ‘direito’ de aprender o que será examinado. Sua autonomia docente estará circunscrita à escolha do método, ou seja, do como irá ensinar o conteúdo a ser examinado, e menos na compreensão dos contextos das escolas e das situações de vida dos alunos”.[4]
Em um debate que se concentra exclusivamente nos componentes curriculares não há espaço para discutir os problemas cotidianos vividos no ambiente escolar e que são razão fundamental dos resultados insatisfatórios: corte de recursos, precarização do trabalho docente, baixos salários, fechamento de turmas e aumento do número de estudantes por turma, ausência efetivas de políticas de permanência dos estudantes, carência de estrutura e equipamentos, etc., etc., etc.
Autoritarismo e simulacro de discussão
O processo de construção das Bases Nacionais vem sendo marcado pelo autoritarismo em todas suas fases, desde a indicação dos especialistas que redigiram a proposta sem qualquer explicitação dos critérios adotados para sua escolha até a forma de gestão da chamada “consulta pública”. O pressuposto geral é que a prerrogativa de definir os conteúdos cabe ao MEC, e não às distintas áreas de conhecimento. O corpo de “especialistas” indicado pelo MEC muitas vezes está longe de expressar a heterogeneidade da área, como é claramente o caso de História.
A consulta pública é feita através de questionário fechado, nos moldes de pesquisa de “satisfação do cliente”, onde para cada conteúdo cabe apenas responder “concordo fortemente”, “concordo”, “sem opinião”, “discordo” e “discordo fortemente”. Tal formato impede a discussão, problematização ou crítica dos pressupostos gerais da área e seus eixos constitutivos (a única possibilidade aberta é a proposição de “novos objetivos”).
A consulta pode apenas produzir “sugestões”, cuja sistematização é prerrogativa do MEC e seus assessores e especialistas. Nela certamente as contribuições qualificadas de profissionais da área se perderão em meio a torrentes de sugestões produzidas com finalidades as mais diversas, incluindo-se desde “sugestões” de grupos religiosos fundamentalistas em defesa do ensino do criacionismo até críticas de saudosistas da ditadura militar. A tabulação de dados colhidos desta forma dificilmente produzirá um instrumento de análise qualificado.
Não há espaço para a discussão sobre a especificidade de cada campo do conhecimento e os objetivos e possibilidade a serem perseguidos na estruturação de seus componentes na educação básica. Pode-se discutir, por exemplo, se um conteúdo de História é ou não pertinente, mas não há espaço para discutir o que se pretende com o ensino de História na educação escolar.
Mesmo o debate público feito à margem dos espaços institucionais é prejudicado pelo prazo exíguo, que basicamente corresponde – novembro a março – ao período de final de ano letivo, férias docentes e início do novo ano letivo, quando a sobrecarga de trabalho e a dispersão produzida pelas férias coletivas tendem a inviabilizar um debate sistemático em torno da proposta por parte dos professores dos diferentes níveis e áreas.
A proposta de BNCC em História
As Bases Propostas para História são parte do capítulo sobre ciências humanas, juntamente com Geografia, Filosofia, Sociologia e Religião(!). A proposta é constituída por 200 componentes distribuídos entre as nove séries do Ensino Fundamental e Médio, sendo 61 relacionados ao 1º ciclo (do 1º ao 5º ano), 83 ao 2º ciclo (do 6º ao 9º ano) e 56 prescritos para o Ensino Médio.
Toda a estruturação e distribuição dos conteúdos é determinada pela opção “pela ênfase em História do Brasil”, supostamente justificada por quatro fundamentos:
Em primeiro lugar, por oferecer um saber significativo para crianças, jovens e adultos, pois conhecer a história brasileira é conhecer a própria trajetória
Em segundo lugar, o reconhecimento de que o saber histórico deve fomentar a curiosidade científica e a familiarização com outras formas de raciocínio, a partir do acesso a processos e problemas relacionados à constituição e conformação do Brasil, como país e como nação.
Em terceiro lugar, o reconhecimento de que tal opção faculta acesso às fontes, aos documentos, aos monumentos e ao conhecimento historiográfico
Por fim, a consideração de que a História do Brasil deve ser compreendida a partir de perspectivas locais, regionais, nacional e global e para a construção e para manutenção de uma sociedade democrática. (p. 244)
A argumentação é pouco convincente (outros saberes são também significativos; permitem fomentar a curiosidade científica; tem fontes facilmente localizáveis, etc.) e a opção produz inconsistências e insuficiências graves.
A seguir, a proposta indica títulos que pretendem traduzir o “enfoque predominante, mas não exclusivo” (p. 244) para cada série, redigidos em termos que pretendem expressar uma perspectiva de busca da diversidade e pluralidade: “Sujeitos e Grupos Sociais” (1º ano); “Grupos Sociais e Comunidades (2º ano); “Comunidades e outros lugares de Vivência” (3º ano); “Lugares de vivência e relações sociais (4º ano); “Mundos brasileiros” (5º ano); “Representações, sentidos e significados do tempo histórico” (6º ano); “Processos e sujeitos” (7º ano); “Análise de processos históricos (8º e 9º ano); “Mundos ameríndios, africanos e afro-brasileiros” (1º ano do ensino médio); “Mundos americanos (2º ano); e “Mundos Europeus e Asiáticos” (3º ano). A distribuição, no entanto, é enganosa: dos 19 conteúdos propostos para o 3º ano do Ensino Médio, supostamente dedicados aos “Mundos Europeus e Asiáticos”, a grande maioria remete à história brasileira, buscando nexos, vínculos e consequências de processos europeus ou asiáticos na História brasileira. Esta perspectiva é empobrecedora, pois processos como deslocamentos humanos ou a emergência do liberalismo são estudados sob uma lente redutora que procura basicamente fazer comparações ou identificar suas consequências para a história brasileira. Dentre as poucas proposições restantes, há formulações vagas como “Usar criativa e criticamente fontes históricas diversas para o estudo das culturas europeias e asiáticas” (CHHI3MOA040).
A cada série, os conteúdos estão distribuídos, ainda, em quatro eixos: “procedimentos de pesquisa”; “representações do tempo”; “categorias, noções e conceitos”; “dimensões político-cidadãs”. De acordo com os autores, “trata-se de uma tipologia para explicitar a operação predominante, mas não a única, em cada objetivo de aprendizagem” (p. 245). Não há justificativa para a definição destes eixos e é realmente difícil compreender o que os autores imaginaram ao propor um eixo como “representações do tempo” para uma área que tem o tempo (e não suas “representações”) como elemento constitutivo. A distribuição dos conteúdos entre os eixos parece muitas vezes aleatória, sem elementos que permitam compreender a conexão entre conteúdo e eixo.
Uma história patriótica
Não é apenas a história europeia e asiática trabalhada na 3ª série do Ensino Médio que é subordinada aos “nexos” e “vínculos” com a história brasileira: este é o procedimento constante que perpassa o conjunto dos componentes propostos. E os problemas não se restringem à “ênfase em História do Brasil” explicitamente defendida no documento, com a consequente redução do tempo destinado à abordagem dos processos históricos extranacionais, mas abarcam também a perspectiva com que a história nacional é abordada e a subordinação da história extranacional a seus nexos e vínculos com o Brasil.
Uma das maiores contradições para uma proposta que se pretende atenta às diversidades é o viés patriótico, nacionalista e brasilcentrista com que são enunciados os mais diversos conteúdos de História do Brasil, das séries iniciais ao Ensino Médio. O HHI5FOA054 (5ª série) propõe expressar “o que é ser brasileiro”, deixando evidente o pressuposto unificador e reducionista da existência de um “tipo brasileiro”; o HHI5FOA059 (5ª série) propõe problematizar os significados e os sentidos dos símbolos nacionais – hino, bandeira, brasão, selo. É difícil imaginar que crianças de 9 a 10 anos, no contexto de um currículo centrado na história nacional, tenham condições para uma “problematização” destes símbolos muito diversa daquela (in)existente nas famigeradas aulas de Moral e Cívica.
Muitos conceitos e designações já superados pela historiografia são reproduzidos sem qualquer problematização. É o caso dos “ciclos” da cana de açúcar, do ouro e da mineração e do café (CHHI7FOA085) e, pior, da naturalização do termo “conquista” para designar a submissão dos povos ameríndios pelos europeus, presente em inúmeros componentes (081, 086, 099, 100, 101, 106) reproduzindo uma perspectiva eurocêntrica.
Em diversos casos, há indicação arbitrária e injustificada dos aspectos a serem considerados no estudo de determinado processo. A julgar pela prescrição do documento, o Golpe de 1964 deve ser conhecido e compreendido “como resultado das tensões sociais gestadas desde o processo de Redemocratização,por meio do estudo das condições sociais no campo, das propostas de reformulação da educação e dos movimentos culturais urbanos” (CHHI9FOA137). A injustificada prioridade a estes três aspectos em detrimento de inúmeros outros fundamentais (agravamento da crise econômica, politização crescente do movimento operário, participação de empresários e militares na conspiração golpista; interferência do Estados Unidos, etc) determina a impossibilidade de uma compreensão de conjunto que leve em conta a articulação dos fatores políticos, econômicos e sociais que desencadearam o golpe – algo inteiramente factível para a faixa etária do 9º ano (13/14 anos).
Os conflitos sociais são apagados e há uma definição idealizada de sociedade civil que fundamenta a concepção liberal de cidadania que atravessa o documento. Ao propor o estudo da “Abertura política” “como resultado de demandas da sociedade civil organizada” (CHHI9FOA137), o documento ignora e omite a existência de um projeto de “distensão política” gestado no interior da ditadura e colocado em prática desde meados dos anos 1970, que condicionou fortemente os rumos do processo. O componente CHHI9FOA139 apresenta uma conceituação de sociedade civil restrita aos movimentos populares, mencionando explicitamente os movimentos negro, indígena, de mulheres e pela ampliação dos direitos das crianças e adolescentes. Deixa-se de considerar como parte da sociedade civil, portanto, todas as organizações constituídas pela classe dominantes, entidades empresariais e lobyes constituídos pelas grandes empresas, o que apenas reforça o sentido apassivador e idealizado da compreensão proposta.
O “resto do mundo” só existe para que o Brasil exista…
A abordagem dos diversos processos desenvolvidos nos continentes europeu, africano, asiático e mesmo no restante da América Latina é desorganizada pelo princípio geral que compreende “a História do Brasil como o alicerce a partir do qual tais conhecimentos serão construídos ao longo da educação básica” (p. 242). Os processos fundamentais constituidores do mundo moderno e contemporâneo são estudados não para que se compreenda sua historicidade própria, mas apenas sob o viés dos “nexos” e “vínculos” com a história brasileira. Já os processos relacionados à pré-história, ao mundo antigo e ao medievo, são quase inteiramente esquecidos, pois não oferecem tantas possibilidades de estabelecimento de “nexos” e “vínculos”.
Partir da história nacional para compreender processos relativos a realidades mais distantes é procedimento didático compreensível para as séries do primeiro ciclo (1ª a 5ª série), permitindo a progressiva familiarização das crianças com processos desconhecidos. Torna-se, no entanto contraproducente e redutor a partir da 6ª série e mais ainda no Ensino Médio, implicando na renúncia em compreender outras culturas e processos pelo que foram e são, subordinando sua compreensão à ênfase naquilo que mais se aproximar com a história brasileira.
São inúmeros os exemplos das distorções produzidas. A única referência à história humana anterior à escrita nos 200 componentes (CHHI6FOA069), que poderia ser desbodrada em diversas temáticas e para além da 6ª série, é articulada ao debate claramente menos abrangente “sobre as prováveis rotas do ser humano para a América, tais como via Estreito de Bering, via do Atlântico ou via do Pacífico” (CHHI6FOA070). A História Africana só é estudada a partir do século XVI, como se sua relevância fosse decorrência do tráfico de escravos (CHHI8FOA070). A Revolução Francesa – processo cuja importância para a conformação do mundo contemporâneo é indiscutível – é estudada apenas com o objetivo de identificar “os nexos entre os processos de Independência [na América] e as transformações ocorridas na Europa” (CHHI8FOA111) e para reconhecer “as incorporações do pensamento liberal no Brasil” (CHHI8FOA114). A busca por “nexos” ocorre também quando se propõe “reconhecer nexos entre o processo de reordenamento da mão de obra no Império e as transformações ocorridas na economia internacional, por meio do estudo do fim do comércio atlântico de escravos” (CHHI8FOA116).
Ao invés de indagar o passado com base nas questões do presente – o que seria um procedimento historiográfico mais adequado -, o que se propõe é pensar o estrangeiro com base na experiência nacional (naturalizada e tomada acriticamente), produzindo-se nexos forçados e empobrecedores e uma leitura anacrônica de processos passados interpretados em função de uma experiência particular e de um presente naturalizado.
A abolição do capitalismo
A mais surpreendente proeza da proposta é que em seus 200 componentes não há uma única referência ao sistema social e econômico vigente nos últimos três séculos, como também à classe social que nele é dominante. Os termos capitalismo, capital e burguesia estão inteiramente ausente da proposta, abolindo do estudo de História conceitos imprescindíveis para a compreensão do mundo contemporâneo.[5] A Revolução Industrial, processo decisivo para a conformação da realidade social tal como existe atualmente, é também inteiramente excluída dos componentes de História, sendo mencionada apenas nos conteúdos de Física! (p. 205, 210, 213 e 215). Sem capitalismo, sem burguesia e sem revolução industrial, é difícil imaginar o mundo em que vivem os elaboradores da proposta.
Também são excluídos inteiramente as movimentos de ideias e os processos que implicam em resistência ao capitalismo. Não há nas 302 páginas das BNCC uma única referência aos termos socialismo/socialista, comunismo/comunista, anarquismo/anarquista e marxismo/marxista, ainda que os componentes de História encontrem espaço para mencionar o stalinismo, em referência generalizante a “processos históricos tais como o fascismo, o nazismo e o stalinismo” (CHHI3MOA052). Logicamente também são apagados da História as Revoluções de 1848, a Comuna de Paris e a Revolução Russa. O século XIX está inteiramente ausente, e com ele o processo de afirmação e desenvolvimento do capitalismo, da mesma forma que as contestações e resistências que a ele se impuseram. Mesmo com a suposta ênfase na história latino-americana, também não há qualquer referência ao governo de Salvador Allende, a despeito de ter constituído experiência histórica original de proposição de transição pacífica ao socialismo.
A exclusão é evidente retrocesso, pois com todas as contradições e problemas, são processos que estão contemplados na maior parte dos currículos atualmente vigentes e que ficam excluídos, interditando radicalmente a compreensão do mundo contemporâneo e suas contradições e conflitos, ou levando a uma leitura superficial e harmoniosa de processos que em realidade são tensos e conflitivos. Por exemplo, é proposto para o 9º ano “Compreender o século XX como um momento de reordenação e reformulação das relações de trabalho, em função das transformações na economia mundial” (CHHI9FOA130). Na ausência de qualquer referência ao sistema capitalista e à burguesia, provavelmente as “transformações na economia mundial” apareçam como sujeitos de si mesmas, sem articulação com uma totalidade mais ampla que estabeleça seu significado e permita sua efetiva compreensão.
Uma história em migalhas
Para sermos justos, devemos reconhecer que “capitalismo” não é o único conceito explicativo abrangente que desaparece com a proposta das bases curriculares em História. Desaparecem também feudalismo, mercantilismo e escravismo (ainda que existam referências à escravidão, jamais compreendida como sistema). Com isto, fica realmente difícil compreender o que entendem os especialistas do MEC com o primeiro dos objetivos gerais enunciados para o Ensino Médio –“Entender a sociedade como fruto da ação humana que se faz e refaz continuamente”. Como é possível esperar que este objetivo seja atingido se, além de interpretarmos as experiências diversas tendo como referência a história brasileira, ainda abdicamos de conceitos e categorias de alcance explicativo mais amplo? Com estas opções, é difícil ir além de uma história em migalhas, constituída por fragmentos desarticulados, histórias particulares com pouca relação entre si e destituídas de qualquer determinação mais ampla.
O documento não enuncia a questão primordial “história para quê?”, ou “história no ensino fundamental e médio para quê?”. Começaríamos o esboço de resposta a esta questão pensando possibilidades de desnaturalizar o que nos aparece naturalizado, fetichizado e deshistoricizado nas relações sociais políticas, econômicas e culturais atualmente existentes. Propor a compreensão da história como fruto da ação humana que se faz e refaz continuamente poderia auxiliar neste caminho. Mas não é o que se concretiza com os componentes propostos, infelizmente.
A fragmentação é agravada pela exclusão quase total de todos os processos anteriores ao século XVI, reafirmando-se o pressuposto de que o sentido de tudo é determinado pelo início da constituição da Luso-América. Que possibilidade temos de compreender a historicidade das relações sociais com este pressuposto? Que diversidade e pluralidade é possível se o outro só nos interessa em sua relação e seus “nexos” conosco? Mais estranho ainda é observar que a omissão de diversos conteúdos coexiste com inúmeras repetições de outros, para a qual os autores da proposta apresentam uma justificativa pouco convincente: “as repetições que se observam em alguns títulos (…) objetivam apontar para a recursividade que caracteriza a progressão no processo de construção do conhecimento e de desenvolvimento do estudante” (p. 244).
Na redação de grande parte dos componentes, a perspectiva fragmentadora se evidencia com “sugestões” ou “exemplos” que propõem abordar conteúdos históricos a partir de aspectos particulares, muitas vezes bastante específicos e insuficientes para uma compreensão mais ampla. A utilização de termos e conceitos não problematizados – como por exemplo “poder”, “política” e “cultura” produz anacronismos flagrantes. Um exemplo são os componentes 100 e 101, que propõem estudar o “contexto político”, respectivamente, “da África subsaariana às vésperas da conquista” e “dos povos indígenas habitantes do território brasileiro ao tempo da Conquista”, sem cogitar que a noção contemporânea de “contexto político” é anacrônica e imprópria para a compreensão da organização social – simultaneamente política, econômica e cultural – dos reinos africanos e comunidades indígenas.
Os exemplos de escolha arbitrária e injustificada são inúmeros. A nota CHHI2MOA027 propõe a análise dos processos de independência das Américas “tais como a Independência dos Estados Unidos, Haiti e do Paraguai”. Por que esta escolha, em detrimento da Argentina e México, por exemplo, que são processos de impacto continental? O que é referido como “exemplo” não será tomado como percurso único pela editoras e produtores de materiais didáticos?
Algumas escolhas parecem totalmente arbitrárias e injustificadas, como a opção por discutir o impacto do 13 de maio para a população negra e o movimento negro (CHHI7FOA089), omitindo qualquer referência ao 20 de novembro, data que igualmente tem grande impacto e ressalta os aspectos de conflito e resistência; ou a escolha/indicação das colônias de São Vicente, Salvador, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Pernambuco e Maranhão, como aquelas nas quais devem ser estudadas as relações mantidas pelos colonos com os povos africanos e indígenas (CHHI8FOA102). Aqui não há como não pensar nos testes padronizados e deixar de ver os “exemplos” como indicação de conteúdos que deles constarão.
O componente CHHI9FOA136 propõe compreender a “conformação de uma noção de Brasil e de brasileiros, emergida da atuação política de setores médios urbanos e das políticas culturais do Estado Novo, por meio do estudo do Modernismo (Semana da Arte Moderna), Teatro Experimental do Negro e da política de estado para a cultura”. Por que a eleição destes processos em detrimento de outros tão relevantes como a emergência e atuação do movimento operário e a fundação do PCB? Para afirmar que a noção de Brasil e de brasileiros é produto da atuação de setores médios e do Estado?
A desestruturação da linha temporal na distribuição dos conteúdos acentua a fragmentação, pois dificulta o encadeamento histórico dos processos, muitas vezes prevendo o estudo de processos cujos antecedentes serão estudados apenas em anos posteriores. Já para o início do 2º ciclo (6ª série) propõe o estudo dos “processos de colonização ocorridos nas Américas, com ênfase na colonização portuguesa” (CHHI6FOA065). Isto será feito sem qualquer noção anterior relativa ao mundo moderno, ao mercantilismo e às condições gerais que tornaram possível o processo de colonização! Apenas no 8º ano será proposta a compreensão do contexto econômico de Portugal, e ainda assim sem qualquer referência mais ampla.
A democracia do capitalismo e a cidadania do consumidor
A perspectiva política e ideológica conformista e conservadora fica bastante explícita nas concepções que fundamentam o eixo “Dimensão Político-Cidadã”, que naturaliza a concepção liberal de democracia, com a opção por conceitos frágeis e apassivadores como “exclusão social” (CHHI7FOA094), em detrimento de outros de maior alcance explicativo como “exploração”. Difunde-se assim uma concepção prescritiva, moralizante e a-histórica de cidadania. O componente 134 menciona expressamente os “direitos e deveres trabalhistas e dos movimentos sociais de trabalhadores rurais e urbanos”, enquanto o 142 menciona a “luta pela ampliação dos direitos e deveres ao longo do século XX. (grifos meus).
Na quarta série do Ensino Fundamental, antes mesmo de serem apresentadas à qualquer noção sobre direitos sociais, as crianças aprenderão que “as relações de consumo são regulamentadas pela legislação, por meio de estudo de documentos como o Código de Defesa do Consumidor, identificando mudanças e permanências nessas relações ao longo do tempo” (CHHI4FOA044). Como em momento algum serão apresentadas à história e ao conceito de capitalismo, certamente entenderão o consumo de mercadorias como natural e inevitável, ainda que com “mudanças ao longo do tempo”.
Várias proposições reforçam a perspectiva patriótica, como “reconhecer-se como cidadão brasileiro” (CHHI6FOA077). A abordagem nacionalista leva inclusive à estranha formulação constante no componente 092, que propõe “reconhecer e discutir princípios dos direitos humanos e civis dos brasileiros”, desconhecendo a universalidade destes direitos que é proclamada em documento cujo estudo é proposto em outros componentes (CHHI4FOA043). Já o componente 140 nomeia o movimento dos trabalhadores como “movimento trabalhista”, uma designação que carrega significado específico vinculado ao varguismo e a uma determinada concepção sindical.
A perspectiva liberal implica também em forte individualização da História, em oposição aos avanços consolidados pela História Social, o que enseja forte ênfase nos sujeitos individuais em detrimento das forças sociais. Assim, o componente 081 propõe “Reconhecer o protagonismo dos sujeitos e dos grupos históricos no processo de formação do povo brasileiro” e o 083 sugere “Inferir, a partir de fontes diversas, o protagonismo de sujeitos em processos históricos no Brasil expressos em movimentos tais como a Confederação dos Tamoios (1556-1567). A Cabanagem (1835-1840) e a Balaiada (1838-1841)”. Pretende-se assim interpretar importantes movimentos sociais da história brasileira como produto de ações individuais. Já o componente 103 estabelece que se deva “Valorizar o protagonismo dos ameríndios, africanos, afro-brasileiros e imigrantes, em diferentes eventos da História do Brasil”. A despeito da redação genérica e imprecisa (o protagonismo de todos em diferente eventos), o provável é que enseje estudos fragmentários sobre ações e liderança individuais.
Começar de novo…
Não é possível corrigir pontualmente, emendar ou sanar deficiências desta proposta fazendo supressões acréscimos específicos. Ainda que se admita a necessidade de definição de uma Base Nacional Comum Curricular – o que está muito longe de ser consensual e deve ser objeto de discussão séria e sistemática -, a elaboração dos componentes de História (assim como de todas as demais disciplinas) precisa ser resultado de um processo amplo, cujo debate abarque os pressupostos, eixos, objetivos e conteúdos (e não apenas fragmentadamente estes últimos). Só assim será possível produzir um conjunto de conteúdos que possibilite que os estudantes compreendam a conformação histórica do mundo em que vivem, que dominem conceitos históricos fundamentais e que possam compreender o caráter histórico (e portanto transitório) das relações sociais atualmente vigentes.
Notas
[1] MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Portaria n. 592, de 17 jun. 2015. Diário Oficial da União, 18 jun. 2015, seção 1, p. 16, Disponível em: http://bit.ly/21qoWj4
[2] MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Base Nacional Comum Curricular. 25 out. 2015. Disponível em: http://bit.ly/21qoWj4
[3] Grande parte dos textos críticos produzidos avalia as inconsistências e prejuízos dentro de campos e sub-áreas específicos, produzindo críticas consistentes mas que muitas vezes não chegam a explicitar a relação entre os problemas identificados com a concepção geral que orienta as BNCC de História.
[4] MELLO, Paulo Eduardo Dias de. Base Nacional Comum, Direitos e Objetivos de Aprendizagem e Desenvolvimento e o IDEB: nexos, contextos, rastros e o lugar do professor, p. 23-24. Disponível em http://bit.ly/1STwUQb , p. 23 e 24.
[5] A omissão não é exclusiva da proposta de História, pois nas 302 páginas do documento o termo burguesia não é grafado nenhuma vez, e o capitalismo uma única vez, nos componentes de sociologia (CHSO3MOA009).
FONTE: Blog Junho