Por Gustavo Rolim (*)
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Taiguara participa de caminhada ao lado de Beth Carvalho e Luiz Carlos Prestes, na praça Quinze de Novembro. Rio de Janeiro, 13 de novembro de 1989. |
Em 1985, em comício das Diretas Já, Beth Carvalho chama Taiguara Chalar da Silva ao palco. Curvado sobre o microfone, braços projetados para frente, fala de uma vez só, em alto tom:
“Depois de proibido pela Ditadura durante dez anos, que eu digo pra vocês:
Eu resisto
Já existe essa manhã, que eu perseguia
Um lugar que me deu trégua e me sorria
E uma gente que não vive só pra si
Já te encontro
Gente armada, mergulhando no futuro
Procurando repartir…
…o futuro, em que o povo unido, jamais será vencido.”
Terminada as palavras, Taiguara ergue o punho cerrado. Sua música, “Universo no teu Corpo”, da onde realizou autoparódia na fala do ato da Diretas Já, seria adaptada inteiramente e cantada, nos anos seguintes, como “Universo do meu povo”. Nestes consertos, após o retorno ao Brasil, outras músicas como “Voz do Leste” e “Cavaleiro da Esperança”, costurados por elogios a Cuba, à guerrilha salvadorenha da FMLN e a África revolucionária tomavam conta do espetáculo. Conhecido por músicas “existencialistas”, “idílicas” ou até mesmo “idealistas”, os fãs e a mídia se perguntavam: quem era esse Taiguara?
Como dizem os antigos: “vamos rebobinar”. Com o AI-5, após os efervescentes festivais de música dos anos 1960, os artistas brasileiros dedicavam-se, entre trancos e barrancos com o estrangulamento da censura, estabelecer seus trabalhos autorais. Dentre estes, Taiguara, já conhecido por uma série de canções que pelo menos desde 1965 fazia-o frequentar aqueles festivais. Interpretava Chico Buarque, Vinícius de Morais, Alberto Land… seguia-se uma carreira promissora associado àquela geração, com a qual ia crescendo artisticamente.
A partir de 1970, Taiguara começa a desenvolver sonoridades diferentes da MPB, Bossa Nova e Samba que caracterizou seu som nos anos 1960. No álbum Viagem (1970), a participação do conjunto Som Imaginário dá novos contornos a três faixas, “Universo”, “Geração” e “Viagem”. O álbum Carne e osso, de 1971, segue no mesmo sentido – entretanto, aqui já temos uma amostra de outros elementos e ideias que devagar começavam a tomar corpo. Não apenas um elogio à Cuba, na faixa “A Ilha”, como, na música que dá nome ao álbum, um recado, em pleno Brasil sufocado: “Saiba quem agride a minha lira/ quanto mais ferida, mais diz o que sente”. Referente certamente aos crescentes assédios da censura, que já procuravam cortar referências à sensualidade feminina e ao amor carnal, uma presença marcante em suas letras.
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O cantor e compositor Taiguara. Foto: Arquivo Pessoal / Divulgação / Kuarup. |
Ainda conseguiu gravar dois discos Piano e Viola (1972) e Fotografias (1973), entrementes o assédio da censura. Nos dois, Taiguara seguiria diversificando seu som, ao mesmo tempo que dialogava, criticava, vivenciava e procurava participar do mundo ao redor. “Teu sonho não acabou” era um diálogo com John Lennon. No álbum de 1973, além de algumas aventuras sonoras lembrando jazz, falava sobre a guerra do Vietnã e, mais ambiciosamente, tentava traduzir o momento que o Brasil vivia, em plena repressão sangrenta e ideológica do “Milagre Econômico”:
O tempo passa e atravessa as avenidas
E o fruto cresce, pesa, enverga o velho pé
E o vento forte quebra as telhas e vidraças
E o livro sábio deixa em branco o que não é
Pode não ser essa mulher o que te falta
Pode não ser esse calor o que faz mal
Pode não ser essa gravata o que sufoca
Ou essa falta de dinheiro que é fatal
Vê como o fogo brando funde um ferro duro
Vê como o asfalto é teu jardim se você crer
Que há um sol nascente avermelhando o céu escuro
Chamando os homens pro seu tempo de viver
E que as crianças cantem livres sobre os muros
E ensinem em sonho ao que não pode amar sem dor
E que o passado abra os presentes pro futuro
Que não dormiu e preparou
O amanhã é seu, o amanhã é seu, o amanhã é seu
A partir de então, não teria mais paz dos censores. As contas, na ausência de um estudo histórico mais apurado, variam, de quarenta ou até quase setenta músicas censuradas. De uma forma ou de outra, a partir de 1973, Taiguara encontra-se incapacitado de gravar e produzir. Chega a viajar para Londres, onde grava álbum em 1974. Entretanto, todas as letras de todas as faixas do álbum são censuradas, mesmo artista e obra encontrando-se no exterior. Taiguara procura Michel Legrand em Paris, fugindo com as fitas originais do álbum, com medo de perseguição e destruição do material – o encontro não ocorre, e as fitas acabam sendo perdidas. Até hoje.
Procurando de qualquer forma, afinal, trabalhar, busca autorização para gravar novo trabalho. Ganha-a, juntamente com a promessa de uma grande produção, para abafar o escândalo do ano anterior. Viaja ao Brasil em 1975. As letras são constantemente ajustadas para que as mensagens escondam-se nos versos; mais: utiliza-se do nome da então esposa, Gheisa, para procurar despistar os censores. Mesmo assim, letra após letra sofre escrutínio. No estúdio, situação diametralmente oposta: efervescência musical que leva a gravação de Imyra, Tayra, Ipy – Taiguara. Um álbum grandioso, ambicioso, com contornos épicos – pretende ver a constituição indígena, negra e latino-americana (de nosso país, mas também pessoalmente), inspirado pela leitura de Quarup, de Antônio Calado. Taiguara pensa a obra de forma completa: sua primeira apresentação seria nas ruínas de São Miguel das Missões, em um Primeiro de Maio. Desenrola-se então, um dos casos mais curiosos da censura ditatorial. O álbum é gravado, prensado, lançado e enviado para as lojas de discos. Apenas 72h depois, entretanto, decreta-se o recolhimento do álbum e proibição de sua reprodução nas rádios. As apresentações são canceladas. Taiguara não conseguira romper o silêncio imposto.
Um novo capítulo nasce quando, exilando-se (inclusive pelo assédio constante da polícia), decide ir à África. A ajuda vem de Paulo Freire, que, por carta, lhe dá acesso à Tanzânia de Julius Nyerere, teórico do “socialismo africano”. Lá, estuda. Acaba lendo revolucionários africanos (como Amílcar Cabral), os clássicos de Marx e Engels, e mesmo Lênin. Com a Anistia, em 1979, retorna ao Brasil, procurando agora trabalhar mais próximo daqueles ideais que teve acesso no exílio. Torna-se repórter no jornal Hora do Povo, do MR-8. Ali, inteirando-se das dinâmicas da esquerda brasileira e das discussões da época, aproxima-se cada vez mais de Luiz Carlos Prestes. Na época, o velho dirigente comunista havia rompido com o Partido Comunista Brasileiro, procurando desvincular o movimento comunista da proposta de distensão controlada da ditadura.
Taiguara, a partir dos anos 1980, teria o apodo de “Pertencente do PCB-ala Prestes” nos documentos do Serviço Nacional de Inteligência (SNI). E, de fato, Taiguara a partir de então, torna-se um comunista. Chega a declarar que o “marxismo-leninismo” era uma dessas “coisas de cabeça” que acabam virando “coisa de coração”! Estava formado o Taiguara que surpreenderia o público nas Diretas Já e na gravação de seus dois últimos álbuns, Canções de Amor e Liberdade (de 1983, onde, rezando a lenda, teria sido Prestes a “batizá-lo” com este nome) e Brasil-Afri (de 1994). No primeiro, exaltação da América Latina sublevada, reprodução de um clássico do comunista paraguaio José Asunción Flores, homenagem ao periódico dos “comunistas alinhados a Prestes”, o “Voz Operária” e elogios à Tanzânia e à revolução africana. No segundo, em plena ascensão triunfalista do capitalismo, com o fim do “socialismo real”, Taiguara vai para Cuba, grava com o Grupo Manguaré, sonoridades cubanas tomam corpo, as letras elogiam Cuba livre, ainda a África e, finalmente, é lançada a canção “O Cavaleiro da Esperança”, homenagem a quem havia se tornado seu guia político. Em Brasil-Afri também temos uma homenagem a Porto Alegre, cidade que residiu em seus últimos anos, na música “Uvardente (Pétite Syrah)”.
Taiguara morre, em 1996, vitimado por um câncer. Por mais que tenha voltado, de uma forma ou de outra, a cena musical, o estrago feito pela ditadura ao afastá-lo de seu público por praticamente dez anos, não é capaz de ser medido. Suas opções políticas na “Abertura” acabaram cerrando portas, censurado veladamente, por gravadoras, críticos de música que o acusam de proselitismo político… a sociedade criada pela ditadura manifestava-se. Hoje, acessar sua discografia não é tarefa tão fácil. Nas lojas de discos, há poucos, por preços altos; nos serviços de streaming, sua obra segue incompleta, fruto de gravadoras diferentes possuindo diferentes partes de sua obra. Há que se escavar a salvaguarda “arquivística” da música atual, o youtube. Imyra, Tayra, Ipy, o álbum recolhido e proibido, foi relançado apenas em 2013 no Brasil! Taiguara parece, mesmo prestes a completar 75 anos de seu nascimento, não ter sua obra sedimentada na mentalidade musical brasileira. E isso revela muito sobre nosso país.
Taiguara, um uruguaio brasileiro, um negro indígena, que visitou e se encantou pela África Revolucionária, que volta ao Brasil, que acolhe o comunismo. Entretanto, talvez diferente de muitos outros casos ou do que o senso comum prega, não saltou do comunismo à censura, saltou da censura ao comunismo. Transformou a violência que sofria em motivo para tentar ler o mundo a sua volta; compreender as suas raízes e, essencialmente, superá-la. Esta não é qualquer trajetória. Poderia ser, mesmo, a trajetória de nosso país, sua tentativa desesperada de gerações e gerações em compreender-nos a nós mesmos. Taiguara postula-se, à nossa frente, como esfinge de nossas próprias agonias. Enquanto o país arde, enferma-se e ameaça mesmo desfalecer em uma grande hecatombe planejada, teremos que utilizar esta dor para compreender o momento e buscar saídas. Condensando este emblema, de nosso país, que infelizmente ainda é o mesmo de Taiguara, cabe a cena:
O santo, a seca, o sertão
O filho morto nas mãos
Família, fome, facão
A gana, o gado, o ladrão
O pó, o podre, o país
A madre, o medo, a matriz
Só não sofreu quem não viu
Não entendeu quem não quis…
(*) Doutorando na UFRGS
FONTE:
Sul 21