domingo, 31 de maio de 2015

A origem da família, da propriedade privada e do Estado; Um texto atual


Por Henrique Carneiro

Friedrich Engels (1820-1895) nasceu em Barmen, Alemanha, filho de um bem sucedido industrial. Enviado pelo pai para aprender a gerenciar sua fábrica de algodão em Manchester, Inglaterra, o jovem Engels dedicou-se a investigar a situação dos operários e publicou, aos vinte e três anos, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, um dos primeiros estudos sobre as condições de exploração do proletariado. Após conhecer Karl Marx (1818-1883), une-se a ele numa fecunda amizade e parceria política e intelectual que perduraria até a morte de Marx. Um ano depois, Engels, a partir de algumas notas esparsas do seu recém falecido amigo sobre um livro do norte-americano Lewis Henry Morgan, desenvolveu a mais ambiciosa aplicação do materialismo histórico para a tentativa de compreensão do desenvolvimento das formas da família, da propriedade e do Estado desde a pré-história e, até mesmo, para esboçar as formas previstas de uma futura sociedade socialista.

Escrito em dois meses e publicado em alemão, em outubro de 1884, em Zurich, na Suiça, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, é uma das mais importantes reflexões teóricas do marxismo. Ela se destaca como um diálogo fecundo do materialismo histórico com a antropologia, especialmente com a investigação de Morgan. Esse campo do conhecimento estava em constituição ainda embrionária no século XIX, tanto no seu aspecto teórico mais geral como no sentido de uma etnografia extensa dos povos da terra. O pouco que se conhecia na época vinha especialmente dos estudos realizados nos Estados Unidos entre as populações indígenas, especialmente os iroqueses, que eram da região nordeste do continente, próximo do que é hoje Nova Iorque. Lewis Morgan, que viveu muitos anos entre essas comunidades e publicou importantes livros[1], foi o principal inspirador de Engels na sua análise das formas históricas da “família” na humanidade.

As fases históricas da humanidade

A periodização dos estágios de evolução das sociedades humanas em três fases: selvageria, barbárie e civilização, conforme a capacidade produtiva das “invenções e descobertas” e a localização histórica das formas correspondentes de agrupamento familiar humano e dos momentos de surgimento da propriedade privada e do Estado é uma das grandes contribuições de Morgan.

Para Engels, a obra de Morgan era tão importante como a de Darwin, pois ambas teriam desenvolvido uma visão análoga à do “materialismo histórico” dele e de Marx. Tal enfoque teórico analisa cada período histórico da humanidade como um processo de produção e reprodução da vida imediata, para a qual o desenvolvimento da capacidade do trabalho humano em interagir e transformar a natureza reflete-se nas técnicas de produção. Assim é o trabalho humano que constitui a humanidade não só do ponto de vista cultural, mas até mesmo anatomicamente, daí a famosa frase de Engels de que a mão humana é não apenas o orgão do trabalho, mas também o produto do trabalho. A mão, com a preensibilidade do polegar que permite a manipulação de instrumentos, o cérebro com áreas estimuladas pela necessidade de desenvolver habilidades como a linguagem e a traquéia capaz de emitir sons variados, são órgãos históricos, produtos do desenvolvimento coletivo da sociabilidade humana.

As fases de Morgan, denominadas, contudo, com uma terminologia questionável e típica da era vitoriana (“selvageria”, “barbárie” e “civilização”), representam os estágios respectivos das formações sociais dos caçadores coletores, seguidos pelos agricultores e domesticadores de animais e, finalmente, pelos povos urbanos e de artesanato desenvolvido, inclusive dos metais. Sua sequência, em geral, corresponde aos estudos posteriores, mas, à luz da ciência contemporânea,  há uma série de equívocos que Engels reproduz: o uso do fogo não é da fase média da selvageria, mas muito anterior, e não tem nenhuma relação direta ou “complementar” com o consumo de peixes. A fundição de ferro não é um marco entre as fases média e superior da barbárie. A domesticação dos animais no Oriente não antecede ao cultivo de plantas, mas é contemporâneo a ele. Considerar a civilização Inca como estando ainda na fase média da barbárie na época da Conquista tampouco é aceitável (John Rees, 1994; Gordon Childe, 1966). O esquema geral, contudo, demonstrou-se capaz de descrever os estágios fundamentais da evolução cultural humana, embora sua linearidade expresse um evolucionismo que não leva em conta os processos regressivos de sociedades que decaíram e desapareceram (p. ex., os Maias, a cultura micênica em Creta ou o povo da Ilha da Páscoa). De forma geral, os grandes períodos compreendidos nas “idades” respectivas da pedra lascada, da pedra polida, do bronze e do ferro, referem-se à “selvageria paleolítica”, à “barbárie inferior neolítica”, à “barbárie superior calcolítica” e ao surgimento das grandes civilizações da época final do bronze e inicial do ferro. V. Gordon Childe, o grande arqueólogo pré-histórico, cunhou os termos “revolução neolítica” para referir-se à passagem da selvageria à barbárie com o advento da agricultura, há cerca de dez mil anos, e “revolução urbana” para situar o surgimento da civilização (palavra que se origina do termo latino civitas que significa justamente cidade), em torno de 3 mil anos antes de Cristo, que foi, segundo ele, a época mais fértil de toda a história humana, antes do século XVI, em invenções e descobertas úteis: fundição de cobre, bronze, arado, tração animal, carros com rodas, canais de irrigação, edifícios, barcos e, para contabilizar toda a nova riqueza, o alfabeto.

As origens da opressão da mulher e da exploração do trabalho

A tese central de Engels é que, na passagem da selvageria para a barbárie, ao final do “comunismo primitivo”, nascem conjuntamente a opressão de classe, com o surgimento da propriedade privada, inclusive de outros homens na forma de escravos, e a opressão feminina com a subordinação da mulher ao direito paterno para garantir a transmissão de sua linhagem e propriedade. Nesse sentido, ele afirma de forma lapidar, que “a derrota histórica do gênero feminino” ocorreu com o advento da propriedade privada. O surgimento de um excedente nas sociedades primitivas não só teria levado à sua apropriação desigual, como à uma desigualdade na relação entre os gêneros na partilha das tarefas da produção e reprodução da espécie, que passam a ficar separadas, cabendo à mulher quase exclusivamente as funções da criação dos filhos e da casa, cada vez mais afastadas da “indústria social”. Enquanto entre os caçadores e coletores e mesmo no início da horticultura com estaca ou enxada, as mulheres viviam em condições igualitárias e eram as mais importantes fornecedoras de comida e criadoras dos artesanatos, com a expansão da agricultura extensiva e o surgimento de excedentes, sua condição social decaiu para um tipo de servidão. Essa tese, afirmando que a origem da opressão é cultural e pode vir a desaparecer no futuro, refuta as interpretações que buscam um fundamento biológico “natural” para a opressão feminina, como ocorria, por exemplo, no liberalismo preocupado com a questão da emancipação da mulher de Stuart Mill, que identificava a origem da opressão feminina na maior força física dos homens.

O livro de Engels representa um posicionamento político diante de todas as formas de opressão, que, para ele, possuem raízes comuns, chegando a dizer que “na família, o homem é o burguês e a mulher o proletário”. Nesse sentido, dando continuidade a uma tradição que tem antecedentes no utopista francês Charles Fourier, ele participou da fundação das bases teóricas do feminismo político contemporâneo. A defesa não só da igualdade política, mas da conversão da economia doméstica num assunto público, com a reincorporação plena das mulheres na “indústria social” definiu um programa necessário para a emancipação feminina.

É preciso lembrar que, na época em que o livro foi escrito, não só as mulheres não tinham direito de voto, de divórcio, de autonomia de sua vontade diante do esposo, de uso de contraceptivos, como nem sequer tinham direito de participação política, mesmo no movimento operário, que majoritariamente se opunha ao trabalho femino e à participação de mulheres em sindicatos e partidos, defendendo que o lugar da mulher era no lar. Assim escrevia Proudhon e dessa forma se manifestou o Congresso Sindical na Inglaterra em 1877, as mulheres não deviam trabalhar não só porque isso aumentava o desemprego e baixava os salários, mas porque era imoral: o lugar da mulher era na vida doméstica. A proposta do socialista Auguste Bebel de direitos iguais entre homens e mulheres no Congresso de Gotha, de unificação dos socialistas alemães num só partido, em 1875, foi rejeitada, sob o argumento de que as mulheres não estariam preparadas! Somente em 1891, o partido socialista alemão admitiu esse princípio, mas mesmo assim ainda demoraram anos e dependeu de intenso debate a filiação de mulheres no partido em igualdade de direitos com os homens (inicialmente elas não tinham direito à palavra e deviam se reunir separadas) (Andrea Nye, 1995). Mesmo o direito de voto feminino nunca foi muito popular entre o movimento operário, pois se acreditava que as mulheres tenderiam a ser mais conservadoras e votar nos candidatos apoiados pela Igreja. Nesse sentido, a defesa por Engels, da plena emancipação feminina, da igualdade dos gêneros e do direito (e necessidade para a sua libertação) de trabalhar e decidir por conta própria era uma posição revolucionária audaciosa mesmo entre os socialistas.

Outro posicionamento claro e desafiador de Engels era diante do conceito burguês de “civilização”. Na época da expansão do colonialismo europeu sob o manto da “civilização” que iria levar a “modernização” para os “povos primitivos”, cujo pacto de divisão da África acabava de ser selado no Congresso de Berlim, em 1881, Engels faz um elogio das liberdades da “comunidade primitiva” dos povos do estado selvagem e até mesmo do “caráter democrático original das organizações gentílicas” dos povos do estado da barbárie, que é “uma arma na mão dos oprimidos”, perante o caráter “dúbio, ambíguo, equívoco, contraditório” de tudo que a civilização produz.

Sua verdadeira admiração pelos povos do comunismo primitivo revela-se, sobretudo, na sua afirmação de uma primitiva preponderância feminina na organização social. Tal época, é chamada alternativamente de “matriarcado” ou de “direito materno”, quando a matrilinearidade, ou seja, o reconhecimento da filiação apenas da mãe, daria às mulheres um papel não apenas igualado mas superior ao dos homens. Embora o termo “matriarcado” possa ser incorretamente interpretado como o de uma época em que teriam existido sociedades estatais com supremacia feminina, o seu significado, em Engels, é de um tipo de sociedade que a pesquisa posterior comprovou existir onde ocorrem matrilinearidade (descendência materna) e matrilocalidade (residência do marido na casa da linhagem da esposa).

Nesse ponto, manifesta-se mais um aspecto da audácia teórica de Engels, inspirado nas obras de Morgan e Bachofen, ao negar a perpetuidade da “sagrada família” e do patriarcado. As relações sexuais são vistas no período mais remoto como expressão de um intercâmbio generalizado, que Bachofen tinha chamado de “heterismo”. Um exemplo desse regime é registrado por um cronista jesuíta entre os índios do Canadá, no século XVIII, que ao tentar convencer um indígena a abdicar dessa “promiscuidade” em que sua esposa frequentava diversos outros homens, argumentou-lhe que ele assim não poderia nem sequer ter a certeza da paternidade sobre seus filhos, ao que o indígena respondeu que isso não lhe importava, pois se entre os brancos um homem ama apenas seus filhos, na sua tribo os homens amavam igualmente todas as crianças (Sharon Smith, 1997). Tais características da sexualidade indígena, que já haviam sido notadas pelos viajantes nos mares do sul e que, mais tarde, Malinovski e Margaret Mead vão estudar entre os trobriandeses, haviam seduzido a imaginação européia, mas, até as obras de Bachofen, Morgan e Engels, ninguém havia sugerido que elas seriam a praxe entre a humanidade pré-histórica. Essa idéia sofre, contudo, de um excessivo caráter especulativo, dado que abrange milhões de anos que não podem ser generalizados em uma única fórmula. Sabe-se por estudos zoológicos, que mesmo entre os primatas superiores existem uma ampla variedade de comportamentos e nenhuma regra estritamente definida.

Nessa época pré-histórica em que a vida sexual teria se caracterizado por uma “promiscuidade” generalizada, com famílias consanguíneas de grandes grupos, ocorreria, segundo Engels, apenas uma divisão por gerações no intercâmbio sexual. O tema fascinante da origem do tabu do incesto paterno ou materno praticamente não é abordado por Engels, exceto para afirmar que seria instintiva (p.46), opinião que depois será fortemente refutada por Freud, entre outros. O próprio Engels é contraditório com essa opinião, pois em outra passagem anterior, afirmou que o incesto é uma “invenção” (p.39). A tendência histórica de uma restrição cada vez maior no círculo de intercurso sexual até seu estreitamento na forma bipolar da monogamia é vista por Engels de uma forma cronologicamente quase linear. A explicação para esse fenômeno é esboçada numa passagem como sendo uma consequência da seleção natural (p.54), mas também parece contraditória com a noção do aprendizado cultural característico de cada época histórica, no interior das quais Engels encaixa um pouco esquematicamente as formas de família: “matrimônio por grupos” na “selvageria”; “família sindiásmica” (de casais) na “barbárie”; e “monogamia” na “civilização”. Tal visão, constitui-se com dados empíricos extremamente limitados, o que leva à uma comparação problemática entre sociedades indígenas contemporâneas e sociedades pré-históricas desaparecidas, baseada apenas na semelhança de saberes e equipamentos culturais.

Da mesma forma, outras limitações levam Engels a idealizar a sexualidade humana tanto entre o proletariado contemporâneo de sua época (onde a prostituição e o adultério teriam um papel “quase nulo”, em comparação com a burguesia), como entre a humanidade do futuro e a de todas as épocas, ao considerar a homossexualidade como “um vício antinatural”. Sobre este tema, há três passagens do livro de Engels, na primeira ele considera que, entre os gregos, as “repugnantes práticas da pederastia” levaram-nos a se desonrarem a si próprios e aos seus deuses pelo mito de Ganimedes (que foi o único amor homoerótico de Zeus com um jovem mortal). Curiosamente, Engels não menciona Platão e seus diálogos sobre o amor homoerótico e o mito do andrógino original. Na segunda passagem, ele atribui o homossexualismo entre os germanos à sua “decadência moral” devido ao contato com os nômades do Mar Negro que, além da arte da equitação, ensinaram-lhes “feios vícios antinaturais”. E, finalmente, na terceira menção, registra sem comentários, como se fosse algo natural, que a assembléia do povo entre os germanos só decretava pena de morte para “covardia, traição e vícios antinaturais”. O movimento socialista e progressista teria ainda de esperar o século XX e figuras como o alemão Magnus Hirschfeld para que os direitos dos homossexuais se tornassem uma reivindicação política.

A monogamia e a família burguesa, ideais morais solenes, hipócritas e praticamente consensuais em sua época são criticadas veementemente por Engels, como uma “escravização de um sexo pelo outro”. Seus complementos necessários seriam o adultério e a prostituição. Diante da vigência de um puritanismo de fachada extremamente severo na sociedade vitoriana do final do século XIX, foi uma grande coragem de Engels expor de forma tão explícita o significado dos chamados “valores familiares burgueses” [2].

A visão histórica de Engels da prostituição, entretanto, é muito questionável, pois ele a relaciona com uma fase de transição entre o casamento por grupos e a restrição da disponibilidade feminina, que conquistaria o “direito à castidade”, mas para isso, teria passado por um ritual de expiação, de sacrifício, na forma da “prostituição sagrada” nos templos da Babilônia ou de jus prima noctis (direito à primeira noite) em inúmeras sociedades, ou seja, mistura fenômenos muito diversos atribuindo-lhes um significado comum. Historiadores contemporâneos mostraram como o termo “prostituta”, na época moderna, foi usado pela medicina e pela Igreja para estigmatizar as mulheres que buscassem prazer sexual, mesmo que no interior do casamento ( Magali Engel, 1989; Jean-Louis Flandrin, 1988).

Outras passagens de Engels, como a idéia que haveria uma tendência “instintiva” de se limitar o incesto (p.46), de que a poliandria não existe entre os animais (p.49), de que a poligamia e a poliandria são exceções, “artigos de luxo” como ele escreve, entre as sociedades humanas (p.60), também são totalmente questionáveis à luz da pesquisa histórica e antropológica posteriores.

Na idealização do futuro, Engels também se mostra pouco imaginativo, pois curiosamente não vislumbra nada além de uma “realização plena da monogamia”, pois considera que “o amor sexual é, por sua própria natureza, exclusivista” e a igualdade influirá mais em tornar os homens monógamos do que as mulheres poliândricas. Essa passagem, como apontam teóricas feministas socialistas (Sharon Smith, 1997), partilha da ideologia de que os homens são “naturalmente” inclinados para desejar muitas parceiras enquanto a biologia das mulheres tenderia a incliná-las para desejar apena um. Em outra passagem, entretanto, o próprio Engels adverte de que não é possível imaginar como será a vida sexual das gerações futuras quando não houver mais a alienação social e as relações intermediadas pela mercadoria. A incorporação das mulheres às fileiras do proletariado no século XX foi mais intensa do que Engels podia prever. As alterações na sexualidade contemporânea com a emergência de formas familiares “alternativas”, de métodos de contracepção e aborto, assim como de fertilização in vitro, “barrigas de aluguel” e até mesmo alteração de sexo por meio de hormônios e cirurgia apontam uma complexidade muito maior no futuro das transformações das relações amorosas e da reprodução humana.

O tema do “amor livre”, que Charles Fourier havia chegado a propor, não se encontra em Engels, surgindo apenas mais tarde em autoras socialistas e anarquistas como Alexandra Kollontai e Emma Goldman. Lênin em polêmica com Clara Zetkin vai condenar essas idéias e práticas como desviantes da energia revolucionária, especialmente da juventude, dando margem para que um autor como Eric Hobsbawm (2003) chegue a formular a tese de que as revoluções sempre são intrinsecamente  puritanas, confundindo as determinações dos seus ideólogos ou dirigentes com as energias reais de mudanças na vida cotidiana despertadas no comportamento das massas.

Na história posterior do movimento socialista internacional, a obra de Engels foi inspiração para diversos outros trabalhos[3] e, mais recentemente, voltou a ser objeto de controvérsia, na época do surgimento do movimento feminista de massas dos anos 60, quando três temas em particular, foram foco de um debate ainda inconcluso: a natureza econômica do trabalho doméstico, a existência de um modo de “reprodução” ao lado do modo de produção e a existência de outros fundamentos históricos ideológicos, não necessariamente econômicos, para a dominação masculina[4].

As sociedades arcaicas e os diversos modos de produção

Afirmar que a família, as classes e o Estado não eram eternos e que deveriam sofrer mudanças revolucionárias foi o significado mais abrangente da obra de Engels, questionando a perpetuidade das entidades abstratas do patriotismo burguês e da família patriarcal como mera ideologia metafísica que a dialética materialista permite situar em seu lugar histórico transitório. As tendências humanas à competição e à desigualdade não existiram sempre nem seriam características instintivas de uma pretensa “natureza humana” abstrata, como afirma o pensamento liberal formulado por Hobbes e outros, mas, pelo contrário, surgiram historicamente com a propriedade privada, as classes e o Estado, e foram antecedidadas por milhões de anos de desenvolvimento de sociedades de caçadores coletores marcadas pelo igualitarismo, a partilha, a reciprocidade e a comunidade que, apesar de sua carência relativa (o antropólogo Marshal Sahlins chamou-as de “sociedades afluentes”), nos mostram um passado humano construído na vida coletiva da colaboração mútua através do trabalho de todos em prol da comunidade. Como escreve Hobsbawm (1975, p.51), “que o comunismo seria uma recriação, em mais alto nível, das virtudes sociais do comunalismo primitivo, é uma idéia que pertence à mais precoce herança do socialismo”. Comentando que nenhuma sociedade antiga tinha na riqueza em si o objetivo da produção, Marx afirmou (Formações econômicas pré-capitalistas, p. 80) que: “a antiga concepção segundo a qual o homem sempre aparece como o objetivo da produção parece muito mais elevada do que a do mundo moderno, na qual a produção é o objetivo do homem, e a riqueza o objetivo da produção” e, numa carta a Engels de 25 de março de 1868, comenta que, ao olhar para a era primitiva de cada nação, encontram-se correspondências com a tendência socialista, o que levaria, mesmo os mais eruditos, a se surpreenderem ao “descobrir o que é o mais novo no que é o mais velho” (idem, p.130).

A opressão feminina foi identificada por Engels como concomitante ao surgimento das classes sociais e da propriedade, encerrando uma longa e arcaica fase de propriedade comunal e iniciando uma série de modos de produção baseados na divisão social e apropriação desigual do produto social.

Sobre este tema, desenvolveu-se uma imensa discussão a respeito dos diversos modos de produção. A própria definição teórica do que é um modo de produção e como ele se articula com as formações econômico-sociais concretas e todas as suas formas políticas, ideológicas, religiosas, etc., é um tema controverso que não possui uma formulação simples nem acabada na obra de Marx e Engels.

Modos de produção são um modelo teórico, cuja concretude depende das especificidades particulares de cada região e povo em questão. A visão mais comum, interpretada da obra de Marx e Engels, identifica a existência depois do comunalismo primitivo de outros quatro modos de produção posteriores: o asiático, o antigo, o feudal e o capitalista, conforme são relacionados no Prefácio da Crítica da Economia Política. Em outras passagens, Marx menciona o germânico e o eslavônico como alternativas também possíveis da evolução da propriedade comunal.

Nenhum desses modos de produção é nem absoluto nem homogêneo, é apenas o modo dominante em mistura com diversos híbridos e resquícios vários. O asiático, com uma definição pouco aprofundada[5], foi definido por Marx como sendo aquele característico de sociedades em que existia um Estado centralizado, encarregado de grandes obras públicas, mas não existe propriedade privada da terra (como seria o caso da Índia e, especialmente, da China antigas). O feudal seria uma derivação da mistura do modo de produção antigo, caracterizado pelo uso extenso de escravos, portanto também chamado de escravista, com o modo germânico. Isso significa que não há, em Marx, qualquer unilinearidade sucessiva entre um modo de produção e outro, eles não constituem etapas necessárias de todas as sociedades mas formas concretas e singulares que ocorreram especialmente na formação euroasiática.

Algo muito diferente ocorreu com a interpretação unilinear, etapista e dogmática que prevaleceu após a degeneração stalinista da URSS. A aplicação concreta dos modos de produção à diversas sociedades históricas foi objeto de uma intensa manipulação política da teoria. O modo de produção asiático passou a ser combatido em meados dos anos de 1920, pois Trotsky e outros, discordavam da caracterização da China como feudalismo, adotada pela III Internacional para justificar sua proposta de aliança com a burguesia nacional para a realização de uma revolução democrático-burguesa, etapa vista como necessária naquele país, assim como em outros países atrasados como, por exemplo, o Brasil.

Essa categoria teórica buscava explicar sociedades agrárias sem propriedade  privada do solo, mas com um estado despótico e burocrático. Tais sociedades não teriam sido apenas da região asiática (por isso o conceito não é geograficamente determinado), mas incluiriam, por exemplo, e dependendo do autor, sociedades como o Egito, o México e Peru pré-colombianos ou até mesmo a própria Rússia czarista.

Foi exatamente essa última aplicação do conceito que levou Stálin a condená-lo pois descrevia um tipo de sociedade burocrática, sem propriedade privada mas com um Estado forte que poderia ser identificada na sociedade soviética. O Origem da Família..., de Engels, assim como o Manifesto Comunista, por não incluirem referência explícita ao modo de produção asiático foram usados como argumento para negar a sua validade. Mais tarde, nos anos 60, quando da ruptura soviética com a China, passou a se reestudar essa categoria na academia soviética, para utilizá-la exatamente para a descrição da China antiga (e para os que quisessem ler nas entrelinhas também a China maoísta). Os próprios chineses nunca aceitaram essa definição para o seu país adotando a caracterização oficial de “feudalismo” para o que existia na China antes da chegada do capitalismo ocidental (vide G. Sofri, 1969). Esse uso excessivamente abrangente de feudalismo, um conceito impróprio desde a origem, pois remete a uma forma política de vassalagem e não a uma relação econômica, tornou-o uma espécie de generalização fácil para toda sociedade “atrasada” em que existia uma propriedade senhorial da terra.

O livro de Engels não aprofunda a relação dos modos de produção com a história das formas de propriedade, tratando da organização gentílica antiga, especialmente da grega, romana e germânica, mas não abordando as sociedades asiáticas. Este debate prosseguiu tanto entre os próprio Marx e Engels como em toda discussão teórica posterior[6].

A natureza e as formas do Estado

A influência maior do livro de Engels sobre a história do movimento operário internacional e sobre a teoria revolucionária talvez não tenha sido, entretanto, as partes que tratam da origem da família e da propriedade, mas a que trata do Estado, não tanto em sua origem, mas em suas características na época contemporânea. Este último nasceria como expressão do surgimento do antagonismo social com a acumulação de riqueza e propriedade privada, especialmente de escravos. Como diz Engels, a propensão para a troca leva o próprio homem a ser trocado como uma das principais mercadorias (a importância dos escravos nas primeiras sociedades divididas em classes foi, no entanto minimizada posteriormente, no que se refere aos estudos sobre a Mesopotâmia).

A relação do Estado com as classes dominantes e a caracterização dos Estados específicos em diferentes épocas e regiões tornou-se um elemento central na análise das formações sociais e econômicas. Os Estados garantem a repressão e a exploração, ou seja, cumprem o papel de produzir e reproduzir as condições sociais existentes para manter o domínio das classes dominantes. Em sua origem, o Estado constitui-se a partir de um território sobre o qual exercerá sua soberania através de uma força militar que se torna independente do conjunto do povo armado, ocupando o lugar de uma força coercitiva externa aos cidadãos (na Grécia antiga, por exemplo, a polícia foi formada de escravos, pois nenhum cidadão se dispunha a cumprir um papel tão odioso como o de ser uma tropa repressiva). E, finalmente, para exercer tais funções o Estado necessita arrecadar tributo e formar uma camada administrativa, a burocracia, que também irá assumir a característica de uma camada externa e superior ao conjunto da população de um território.

As formas do Estado têm relação com as formas de produção e apropriação, ou seja, com os modos de produção, e as classes dominantes e suas facções lutam pelo seu predomínio, reagindo, sobretudo, à ameaça potencial ou presente da ação das classes dominadas e exploradas.

Uma frase de Engels sobre o período de transição do feudalismo ao capitalismo tornou-se, porém, objeto de grande debate ao afirmar que: “há períodos em que as lutas de classes se equilibram de tal modo que o Poder do Estado, como mediador aparente, adquire certa independência momentânea em face das classes. Nesta situação, achava-se a monarquia absoluta dos séculos XVII e XVIII” (p. 162). Naquele que ficou conhecido como “o debate da transição do feudalismo ao capitalismo”, e que contou com diversos protagonistas (desde a obra de Christopher Hill, A revolução inglesa, publicada em 1940, no seu tricentenário, até as contribuições de Maurice Dobb, Paul Sweezy e outros, nos anos de 1950), estas passagens de Engels foram objeto de grande discussão. Perry Anderson (1989) considera que esta, assim como outras passagens de Engels e Marx, revelam uma noção incorreta da natureza do Estado Absolutista moderno que poderia ser visto, nessa situação de “equilíbrio”, como já sendo um Estado Burguês, o que para Anderson é um contrasenso, pois tais estados não seriam mais do que uma “nova carapaça política de uma nobreza atemorizada”, que só foi derrubada efetivamente do poder com as revoluções burguesas na Inglaterra no século XVII e na França no XVIII. Essa análise de Anderson foi parte do que ele próprio chamou de “consenso de uma geração de historiadores marxistas” e foi resumida, entre outros, também por Christopher Hill.

Outra passagem de Engels, na mesma página, refere-se ao fenômeno do bonapartismo ou bismarckismo também como uma forma de composição de frações de classe no seio do Estado: “de igual maneira, o bonapartismo do primeiro império francês, e principalmente do segundo, que jogava com o proletariado contra a burguesia e com esta contra aqueles. O mais recente caso dessa espécie, em que opressores e oprimidos aparecem igualmente ridículos, é o do novo imperio alemão da nação bismarckiana; aqui capitalistas e trabalhadores são postos na balança uns contra os outros e são igualmente ludibriados para proveito exlusivo dos junkers [nobreza latifundiária] prussianos”, o que mostra que os Estados não são simples reflexos mecânicos e automáticos das classes nem são “cascas vazias” a serem preenchidas por diferentes classes e suas frações. O Estado estabelece sua dominação por meios de pura coerção, mas também necessita do consentimento, o que exige a construção do que Antonio Gramsci veio a chamar de “hegemonia”, o que pressupõe que as classes oprimidas são manipuladas e levadas a acreditarem que a fração hegemônica da classe dominante representa um suposto interesse geral da sociedade.

Os regimes políticos na época de Engels não apenas ainda reuniam monarquias autocráticas como, mesmo nas “repúblicas democráticas”, ainda tinham inúmeros mecanismos de restrição às liberdades e aos direitos políticos, concedidos ainda de forma censitária (de acordo com a propriedade), além de, obviamente, restringirem totalmente as mulheres (não havia sequer voto feminino, conquista do século XX). Por outro lado, em muitos países nem sequer havia eleições ou parlamentos (na Rússia, p. ex.), a terra ainda estava sujeita a direitos de propriedade de origem feudal e as nacionalidades oprimidas não tinham direitos de expressão. Por isso, Engels considera que, dentro do capitalismo, a “república democrática” é a “mais elevada das formas de Estado, e que, em nossas atuais condições sociais, vai aparecendo como uma necessidade cada vez mais ineludível, e é a única forma de Estado sob a qual pode ser travada a última e definitiva batalha entre o proletariado e a burguesia” (p.162). É através do sufrágio universal que a burguesia melhor pode dominar, realizando a “aliança do governo com a Bolsa”, mas através dele se demonstra um “índice de amadurecimento da classe operária”. E Engels, acrescenta que “no Estado atual não pode, nem poderá jamais ir além disso; mas é suficiente. No dia em que o termômetro do sufrágio universal registrar para os trabalhadores o ponto de ebulição, eles saberão – tanto quanto os capitalistas – o que lhes cabe fazer”.

Lênin, em 1917, em O Estado e a revolução, desenvolveu as idéias de Engels sobre o Estado, afirmando que: “nós somos pela república democrática enquanto melhor forma de Estado para o proletariado no regime capitalista; mas não temos o direito de esquecer que a escravidão assalariada é o quinhão do povo, mesmo na mais democrática república burguesa. Portanto, todo Estado é um ´poder especial de repressão´ dirigido contra a classe oprimida” (p.38). Mais à frente, escreve que “desenvolver a democracia até o fim; procurar as formas desse desenvolvimento, submetê-lo à prova da prática, etc., nisto consiste uma das tarefas essenciais da luta pela revolução social” (p.101). Esse desenvolvimento da democracia “até o fim” significa que, na perspectiva do socialismo, após a fase transicional, todos os tipos de Estado e todos os regimes de governo (inclusive os das repúblicas democráticas burguesas) deixarão de existir, pois deixará de existir a coerção social e, portanto, a necessidade de um aparelho militar e burocrático externo à própria comunidade. Para se chegar ao comunismo, será indispensável, portanto, a extinção do Estado. Como escreveu Engels: “no dia em que for possível falar de liberdade, o Estado deixa de existir como tal” e propõe, consequentemente, que, nestas circunstâncias, se substitua a palavra Estado pela palavra “comunidade” (Apud Lênin, p.87).

Como promover a realização de um programa democrático radical, que inclua as questões sociais, políticas e nacionais, tais como a reforma agrária, as liberdades públicas, a autonomia das nacionalidades a Assembléia Constituinte, entre outras, sem fazer delas um fim em si, mas buscando  por meio delas o aprofundamento da luta de classes e da consciência organizada do proletariado enquanto classe, foi, talvez, o maior desafio teórico e da tática revolucionária no século XX, em que os marxistas estiveram sempre diante do duplo perigo da capitulação à democracia burguesa, como ocorreu com a maioria da social-democracia, ou do ultra-esquerdismo, que Lênin denominou de “cretinismo anti-parlamentar”, típico de anarquistas ou de correntes sectárias como a do italiano Bordiga, na década de 1920, por exemplo.

Numa época de retrocesso do movimento dos trabalhadores, como a que Engels vivia (após a derrota da Comuna de Paris, em 1871, apenas em 1905 ocorreu uma nova revolução na Europa), os processos eleitorais eram considerados por ele como importantes trincheiras para o proletariado, mas nos momentos de aumento da luta de classes, para a qual as eleições são um termômetro, os trabalhadores precisariam estar preparados para conduzir um processo revolucionário, pois as classes capitalistas saberão perfeitamente que chegou a hora de conduzir a contra-revolução.

Essa passagem foi apropriada pela social-democracia alemã, especialmente por Karl Kautsky, como um argumento para a teoria do reformismo clássico, de que a inevitabilidade histórica do socialismo era governada por uma causalidade objetiva, o que levava ao abandono da noção de que a atividade auto-consciente e voluntarista do proletariado assume o papel decisivo na transformação revolucionária e à aceitação de uma ação insurreicional do proletariado apenas na hipótese da defesa de uma maioria parlamentar socialista ameaçada pela reação burguesa. Engels, ao contrário da visão social-democrata determinista, nunca abandonou a defesa da ação revolucionária como forma indispensável para a superação da ordem capitalista, tendo inclusive participado pessoalmente, de revólver à mão, nas barricadas da revolução de 1848, na Alemanha. O evolucionismo que, posteriormente, marcou a evolução da corrente social-democrata no seio da II Internacional, não pode ser atribuído à obra e à atividade prática de Engels. Em sua concepção teórica do Estado e em sua prática de militante revolucionário ele nunca transigiu com a denúncia integral do caráter burguês das repúblicas democráticas de sua época e sempre vislumbrou nos moldes da democracia comunitária direta em suas manifestações históricas, uma inspiração para uma nova sociedade socialista em que, após a revolução proletária, o Estado tenderia a desaparecer. Sem partilhar das ilusões românticas dos populistas russos com a propriedade comunal da terra viu nela, assim como Marx, um magnífico ponto de partida para a construção do socialismo desde que este estivesse enraizado na classe operária de um país desenvolvido.

A Origem da família, da propriedade privada e do Estado é um livro rico de idéias teóricas e de consequências políticas práticas. Não se trata de uma obra meramente acadêmica, em que a teoria ocupa um lugar confortável de pretensa reflexão científica pura e neutra, ao contrário, faz parte da concepção de que a ciência e a filosofia devem servir à ação humana, pois a humanidade “se faz a si mesma”[7] e, portanto, não há na história nenhum determinismo objetivo independente da ação dos homens e das classes em luta.

* Artigo originalmente publicado na Revista Marxismo Vivo, nº 15, ano 2007, pg. 97-108

Bibliografia:
ANDERSON, Perry, Linhagens do Estado Absolutista, 2ª ed., São Paulo, Brasiliense, 1989.
CHILDE, V. Gordon, A evolução cultural do homem, Rio de Janeiro, Zahar, 1966.
————– O que aconteceu na História, 2ª ed., Rio de Janeiro, Zahar, 1966.
DURAND, Pierre, La vida amorosa de Marx, Buenos Aires, Editorial Liner, 1970.
ENGEL, Magali, Meretrizes e doutores, Saber médico e prostituição no Rio de Janeiro (1840-1890), São Paulo, Brasiliense, 1989.
FLANDRIN, Jean-Louis, O sexo e o Ocidente, São Paulo, Brasiliense, 1988.
HARMAN, Chris, Engels and the origins of human society, International Socialism Journal, 65, Inverno de 1994.
HOBSBAWM, Eric J., Revolução e sexo, Revolucionários, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2003.
LÊNIN, V. I., O Estado e a Revolução, Niterói, Diálogo Livraria e Editora, s/d/e.
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MITCHELL, Juliet, La condición de la mujer, Barcelona, Editorial Anagrama, 1977.
NYE, Andrea, Teorias Feministas e as Filosofias do Homem, Rio de Janeiro, Record/Rosa dos Tempos, 1995.
PATEMAN, Carole, O contrato sexual, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1993.
REES, Jonh, Engel´s marxism, International Socialism 2:65, Inverno 1994.
SAHLINS, Marshall, As sociedades tribais, Rio de Janeiro, Zahar, 1970.
SMITH, Sharon, Engels and the origin of women´s oppression, International Socialist Review, 2, 1997.
SOFRI, Gianni, Il modo di produzione asiatico. Storia di una controversia marxista, Turim, Einaudi, 1969.
WOLF, Eric R., Os moinhos da desigualdade: uma abordagem marxiana (1981), in Antropologia e Poder, org. Bela Feldman-Bianco e Gustavo Lins Ribeiro, Brasília/Campinas/São Paulo, Ed. UnB/Imprensa Oficial SP/Ed. Unicamp, 2003.

[1] Lewis Henry Morgan (1818-1881) defendeu as terras indígenas e foi adotado numa gens iroquesa em 1847. Em 1851 publicou A Liga dos Iroqueses, o primeiro relatório científico da vida tribal a partir de uma vivência direta, em 1869, publicou Sistema de consanguinidade e afinidade na família humana e, em 1877, o mais importante de todos e fonte teórica de Engels: A Sociedade Primitiva  (Ancient Society, or Researches in the Lives of Human Progress from Savagery through Barbarism, to Civilization). Também escreveu sobre arquitetura indígena e sobre a vida dos castores.
[2] Ele próprio, na verdade, encarnou na sua vida privada suas idéias, pois nunca se casou nem teve filhos e manteve relações amorosas “livres” (fora do casamento). Sua amizade foi tão grande que Engels assumiu a paternidade do filho ilegítimo que Marx teve com a empregada da família e que foi entregue para adoção à uma família inglesa, La vida amorosa de Marx, Pierre Durand, p.60.
[3] Antes mesmo de Engels, Auguste Bebel foi o autor do clássico A mulher e o socialismo (1879); K. Kautsky publicou A reprodução e o desenvolvimento na natureza e na sociedade (1910) e Origem do matrimônio e da família (…), em que afirmava que o matriarcado e o patriarcado não eram consecutivos, mas de desenvolvimento paralelo; e Paul Lafargue, em 1895, publicou Origem e desenvolvimento da propriedade, dedicado à Engels.
[4] Juliet Mitchell (1977), por exemplo, vai investigar na obra de Freud fundamentos psicológicos para a formação da personalidade masculina.
[5] A obra de Marx que mais trata dele são as Formações Econômicas Pré-Capitalistas, parte dos Gundrisse, publicados a primeira apenas entre 1939-1941, na Rússia e, em 1953 na Alemanha. A primeira tradução ao inglês, de 1964 foi acompanhada de um importante prefácio de Eric Hobsbawm.
[6] O debate sobre essa questão é muito amplo e não seria possível mencionar aqui nem um resumo de sua abrangência e de suas tendências principais, mas não podemos deixar de mencionar o livro de Kurt Wittfogel, O Despotismo Oriental (1957), em que esse ex-comunista alemão radicado nos EUA usou um erudito estudo do conceito de modo de produção asiático para identificá-lo também com uma natureza burocrática e totalitária da URSS e China. Sua obsessão anti-comunista não impediu que sua tese tivesse uma grande influência devido à erudição de sua investigação. Mais recentemente, o antropólogo Eric Wolf resumiu os diversos modos de produção em três tipos básicos: o de organização pelo parentesco (que seria o comunalismo primitivo); o “tributário” (com diversas variantes que incluiriam o asiático, o feudal e o africano) e o capitalista.
[7] Título de um dos mais conhecidos livros de Gordon Childe, Man makes himself, traduzido em português como A Evolução Cultural do Homem (1966).


quarta-feira, 27 de maio de 2015

Greve na Universidade Pública – Objeções Frequentes, Respostas Incômodas

Por Marcelo Badaró Mattos
Professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense
Para um professor que como eu, já está trabalhando em instituições federais de ensino há quase trinta anos, as greves por certo não são novidades. Da mesma forma, tenho dificuldades em encontrar argumentos novos entre aqueles que se manifestam contrariamente ao uso desse instrumento. Percebo que novas gerações de estudantes (e também de docentes e servidores) muitas vezes reproduzem, legitimamente, dúvidas e ponderações que apareceram em momentos passados. São argumentos válidos, que merecem um debate que se enriquece quando experiências passadas são resgatadas. Há, entretanto, também, muitos que conhecem essas experiências e recorrem aos mesmos argumentos contrários às greves que utilizaram em outras ocasiões, mesmo tendo sido refutados, por outros argumentos e pela própria realidade histórica, mas fingem desconhecer essas refutações para continuar tentando deslegitimar as organizações coletivas e formas de luta dos profissionais de educação e estudantes.
Por isso, mesmo correndo o risco de também ser repetitivo em relação a argumentos que já usei em outros momentos de greve, acredito ser importante comentar e contra-argumentar a respeito de algumas dessas questões recorrentes. Afinal, entre outros resultados possíveis de uma greve, especialmente na área de educação, está a dimensão pedagógica do compartilhamento de conhecimentos e experiências, o que só pode fortalecer a capacidade de entendimento e intervenção no mundo, que aspiramos seja objetivo fundamental de toda instituição educativa. Vamos então às questões.
A greve não é o único/melhor instrumento de luta. A greve no serviço público/na educação não é eficaz. Devemos recorrer a outras formas de luta? Devemos ir para as ruas. A greve esvazia a universidade…
Sem dúvida, a greve não é o único instrumento de luta de trabalhadores. Ela é sempre utilizada quando outras tentativas de defesa dos seus interesses fracassam em conquistar resultados em torno de demandas coletivas. No entanto, a greve é um direito fundamental dos trabalhadores, que serão sempre a parte mais fraca numa relação com seus patrões, no setor privado ou no público, e tem nesse instrumento uma forma de tentar equilibrar, mesmo que momentaneamente, o jogo desigual que caracteriza a exploração do trabalho assalariado.
No serviço público, e especialmente na área da educação, a greve não tem o mesmo objetivo de causar prejuízo econômico, e com isso pressionar os patrões, que possui no setor privado. Ela existe como estratégia de ampliação do poder de pressão, através da mobilização coletiva, para que demandas fundamentais, salariais, de condições de trabalho e de defesa da educação pública, ganhem maior audiência e criem constrangimentos que obriguem os governos a negociarem.
Por isso mesmo, não há oposição entre greves e outras formas de luta. Pelo contrário, aqueles que defendem de forma consequente a necessidade de ocupar as ruas sabem que só com grande quantidade de pessoas é possível obter êxito em uma manifestação desse tipo. Mas, como colocar milhares de educadores e estudantes nas ruas se eles estão nas salas de aula? Para muitos o fundamental é garantir maior repercussão nos meios de comunicação de massa. Sabemos que a mídia é fundamentalmente composta por grandes oligopólios empresariais, cujos interesses estão distantes de convergir para a defesa da educação pública e dos trabalhadores. Por mais insistência que tenhamos em buscar esses canais em tempos de funcionamento normal das instituições o resultado é quase nulo. Com as greves, a coisa muda de figura. Em nossa última paralisação de 24h, por exemplo, todas as grandes redes de televisão fizeram matérias sobre a situação das universidades e a paralisação, da mesma forma que os principais jornais impressos e sites de notícias. Em greves anteriores, a cobertura da mídia – mesmo que muitas vezes deturpando nossas reivindicações – foi sempre muito mais ampla que em momentos de atividades normais.
Uma greve pode sim esvaziar a universidade. Mas, não precisa ser assim. E muitas vezes não é assim. Os três segmentos da comunidade universitária (docentes, servidores técnico-administrativos e estudantes) programam muitas atividades de mobilização nos espaços universitários – debates, rodas de conversa, exibição de filmes, atos, acampamentos, etc. – e aproveitam o momento da greve para discutir das questões mais específicas das universidades às mais gerais do país e do mundo, com um olhar pedagogicamente crítico, que deveria nortear todo o nosso cotidiano nas instituições, mas que sabemos nem sempre é a tônica no dia a dia da atividade universitária.
Quanto à eficácia do instrumento, para quem conhece a história das greves universitárias e de seus resultados desde o fim dos anos 1970, o argumento de que para nada servem é insustentável. Todas as conquistas salariais e referentes à carreira docente foram decorrentes de greves nas instituições de ensino. Além disso, tais greves conquistaram muitas vezes avanços significativos para a vida universitária em geral e, em outros momentos, foram barreiras interpostas às propostas governamentais danosas à universidade pública, que não foram aplicadas ou o foram limitadamente graças à força das greves. Um quadro muito sintético das greves nas instituições federais de ensino pode ser encontrado nesse link.
No entanto, vale lembrar, que muitos dos que argumentam que as instituições se esvaziam nas greves e que era preciso ir para as ruas, em certos casos são docentes há mais tempo que eu e nunca os vi em atividades de mobilização no interior das universidades, antes ou durante as greves, e nunca os encontrei em nenhuma manifestação de rua em defesa da educação/das universidades públicas. Outros, não só participaram como até organizaram atividades desse tipo há muitos anos, quando eram estudantes e docentes mais jovens, mas hoje as condenam: eles não mudaram de opinião, mudaram de lado.
As greves na universidade só param a graduação e prejudicam os estudantes de graduação…
Não é verdade que as greves só param as aulas de graduação. Atividades de pesquisa e extensão também são paralisadas pelos que participam das greves. Quando ingressei na universidade essa questão sequer era levantada, porque não se fazia diferença, quando uma greve começava, entre aulas na graduação e na pós-graduação. Nas últimas duas décadas e meia, cresceu muito a pressão sobre as pós-graduações para apresentarem indicadores quantitativos de produtividade que são a base central de avaliações feitas pela CAPES e que podem representar mais ou menos recursos financeiros, bolsas de estudo e prestígio acadêmico. De lá para cá, cresceu também o número de argumentos contrários à suspensão das atividades de pós-graduação em função dessa pressão da CAPES.
No entanto, muitos docentes e programas inteiros continuam a paralisar suas aulas na pós-graduação, buscando contornar sempre que possível a pressão das agências de fomento/avaliação, pois percebem que tal pressão não tem como contrapartida a garantia dos recursos e condições de trabalho adequados ao funcionamento dos programas com qualidade. Os comandos locais de greve também são cientes de que algumas bancas e atividades são agendadas com muita antecedência, significam despesas com passagens e diárias já realizadas e autorizam excepcionalmente tais atividades. Os que continuam trabalhando regularmente na pós-graduação durante as greves, portanto, o fazem por decisão própria de furar uma greve, utilizando os argumentos da especificidade das pós como biombos para suas atitudes, e depois, ironicamente, acusam as greves de só paralisar a graduação. Muitas vezes, os que dizem isso, são os mesmos professores que no dia a dia dos cursos, menosprezam as aulas na graduação e justificam que sua “excelência” os deveria liberar de tal “fardo” para dedicação integral à pesquisa e pós-graduação.
Por outro lado, cabe sempre a pergunta: o que realmente prejudica o estudante – de graduação ou pós – uma greve que pode se estender por algumas semanas, defendendo a universidade pública, ou a falta de condições adequadas de estudo e permanência na Universidade?
Numa greve como a que se iniciará em 28 de maio de 2015, cujo motivo maior, além da defasagem salarial dos docentes (motivo justo e digno, diga-se de passagem, pois todo trabalhador assalariado tem direito à proteção mínima de seus vencimentos face à inflação) é o conjunto de medidas destrutivas à universidade pública, não há dúvidas da justeza do movimento para grande parte dos estudantes. Afinal, faltam professores em muitos cursos, há outros em que obras estruturais necessárias à construção de salas de aulas, bibliotecas e laboratórios não foram executadas ou pararam pelo meio, há falta de bandejões e alojamentos estudantis, as bolsas são insuficientes e estão atrasando, entre muitas outras situações. Todas motivadas por uma expansão de vagas discentes que não foi acompanhada do necessário crescimento do número de docentes e do aporte de recursos para infra-estrutura, manutenção e assistência estudantil. O que tem sido muito agravado nos últimos meses pelas políticas de “ajuste fiscal” do governo federal, que repassará R$15 bilhões de reais ao setor privado através do FIES (financiamento estudantil), mas corta R$ 9,43 bilhões do orçamento do Ministério da Educação.
Por isso os estudantes da UFF e de outras universidades fizeram suas assembleias e deliberaram pela greve. Porque sabem que essa luta também é sua.
Curioso que os que argumentam que a greve prejudica os estudantes, desconsideram completamente a posição coletiva dos próprios estudantes. O que é bem ilustrativo de como enxergam sua atividade docente e seus estudantes: são os portadores do conhecimento e da verdade, que buscam iluminar os pobres e ignorantes estudantes, que sequer percebem que estão sendo prejudicados com a greve.
Há motivos para a mobilização ou até mesmo a greve, mas esse não é o melhor momento…
Calendários diferenciados, momentos distintos dos semestres letivos, incertezas sobre os processos de negociação, são argumentos utilizados para questionar a oportunidade da greve, mesmo que utilizados por vozes que não questionam a legitimidade do instrumento de luta. Nesse caso, cabe lembrar que desde o final do ano de 2014 o governo está implementando as políticas de cortes de verbas e as propostas de retirada de direitos dos trabalhadores (vide as Medidas Provisórias que dificultam o acesso ao seguro desemprego e abono salarial, assim como restringem pensões, bem como o projeto de lei que libera as terceirizações, entre outras medidas). Nos últimos dias, com o anúncio de novos cortes e o avanço das medidas no congresso nacional, a situação só tem piorado.
No que diz respeito aos servidores públicos federais e aos docentes das instituições federais de ensino, paralisações e movimentos, em Brasília e nos estados, pressionaram o governo a receber as entidades em reuniões, mas nenhuma resposta concreta às pautas foi apresentada. Sabemos que tanto as demandas por carreira/salário, quanto aquelas referentes a mais verbas para as instituições (de forma a garantir as condições de trabalho/estudo) dependem de rubricas orçamentárias. A Lei de Diretrizes Orçamentárias do ano de 2016 tem que ser apreciada pelo congresso até agosto. Caso não tenhamos nossas reivindicações atendidas até lá, teremos que nos resignar a reajuste zero no próximo ano e ao aprofundamento do caos na vida universitária. Por isso o momento da greve é este. Ela acontece quando as condições para sua construção caminham mais rapidamente e a necessidade de uma intervenção coletiva que garanta a negociação com o governo já se faz mais que urgente.
O ANDES-Sindicato Nacional e as suas Seções Sindicais não são representativos. As Assembleias Gerais que decidem as greves não são representativas/legítimas. Seu funcionamento e suas decisões não são democráticas…
O ANDES-SN é o resultado de mais de três décadas de organização e lutas docentes. Como toda entidade sindical possui limites e problemas. Mas, está organizado pela base, através de suas seções sindicais em praticamente todas as instituições públicas de ensino superior. Sua direção nacional é eleita diretamente pelos associados, através das seções sindicais, e possui secretarias regionais espalhadas por todo o território nacional, de forma a dar conta da diversidade de situações no país. As taxas de sindicalização nas seções sindicais são elevadas, muito superiores à média do país. Na ADUFF-SSind, por exemplo, tínhamos 2.561 docentes associados em 2014, sendo 1381 ativos (cerca de 46% do total de docentes da instituição) e os demais aposentados.
No sindicato exercita-se a democracia em suas diferentes possibilidades. A diretoria nacional e as diretorias das seções sindicais são escolhidas diretamente pelo voto dos associados. As instâncias nacionais de deliberação da categoria (as diretorias são apenas executivas) – Conselhos de Seções Sindicais e Congresso, ordinariamente anuais – são constituídas por delegados eleitos em suas bases, através das assembleias gerais. E nas Assembleias Gerais, prevalece a democracia direta, com base nas discussões e votações dos participantes.
Na UFF, as assembleias gerais são abertas a todo o corpo docente, independentemente de filiação ou não ao sindicato, porque entendemos que a luta coletiva se faz por e em nome de todos, portanto todos tem direito a voz e voto nesses espaços. O acúmulo de experiências históricas nos leva a conceber que esse é o espaço deliberativo mais democrático para decisões como a construção de uma greve. Porque ali os participantes trocam informações, análises e avaliações e – convergindo ou divergindo – votam esclarecidos por esse debate e constroem coletivamente suas deliberações. Esse sentido coletivo da democracia direta em uma entidade de trabalhadores é fundamental e não pode ser substituído por consultas plebiscitarias, em que indivíduos votam isoladamente, a partir de convicções construídas por diversos caminhos, mas sem participarem ativamente de uma discussão coletiva.
Da mesma forma, incentivamos e participamos de todo tipo de reunião de docentes em âmbito departamental, de cursos ou unidades. Todo fórum convocado para discutir os problemas docentes e da universidade é importante para o avanço do conhecimento coletivo da situação e mobilização dos docentes. No entanto, esses fóruns não são espaços deliberativos da vida sindical, porque não se organizam para tanto e, especialmente, porque no caso das instâncias institucionais – departamentos, colegiados, etc. – estão sujeitos a lógicas de funcionamento e hierarquia funcional de ordem distinta da lógica sindical, que deve ser autônoma em relação a todos os níveis da gestão institucional, garantindo que as deliberações docentes possam estar livres de qualquer pressão de chefias imediatas ou gestões superiores das instituições.
As direções dos sindicatos são “vanguardas iluminadas”, “radicais”, “pseudo-revolucionários” que decretam greves de cima para baixo…
Seriam argumentos cômicos, não fosse trágico escuta-los de professores universitários. Trágico porque cada vez que um docente toma emprestado esse tipo de argumento da pena dos articulistas da extrema-direita reacionária dos panfletos mais abjetos da imprensa empresarial (como os colunistas da revista Veja), assume conscientemente o papel de arauto dessa ideologia reacionária, que procura associar todo tipo de movimento social/sindical e suas lideranças a uma nova “ameaça comunista”, no estilo típico da Guerra Fria. Em tempos de manifestações reacionárias como as ocorridas em março e abril, de debates no Congresso Nacional sobre um projeto de lei que visa estabelecer “crime de doutrinação ideológica” para punir professores que estimulem o pensamento crítico e o debate de ideias entre seus alunos, tais argumentos são lamentáveis ecos internos de um reacionarismo crescentemente, incentivado pelas forças políticas  e sociais mais conservadoras no país e seus diligentes prepostos na “grande” imprensa.
Os dirigentes sindicais do movimento docente exercem seus cargos sem qualquer vantagem pessoal, na maioria das vezes sem dispensa da atividade acadêmica regular e por períodos de tempo limitados (em nosso estatuto nacional e no regimento local, ninguém pode permanecer por mais de dois mandatos seguidos nas diretorias). Expressam diferentes posições políticas e ideológicas, e participam dessas atividades movidos principalmente pela convicção de que o instrumento sindicato é fundamental para qualquer trabalhador, aí incluído o docente.
De qualquer forma, podem acertar ou errar, podem manifestar posições políticas as mais distintas, mas nunca o fazem sozinhos, porque procuram agir como representantes de coletivos maiores e discutem suas posições pessoais e/ou coletivas em espaços democráticos de deliberação. Assim, na UFF, por exemplo, a última assembleia geral dos docentes, que aprovou a deflagração da greve, contou com a participação de 281 professores, que assinaram a lista de presença. No momento da votação, 155 votaram favoravelmente à proposta, 46 contrários e uma abstenção. Outras assembleias, com mais de uma centena de presentes, aconteceram nas semanas anteriores, levantando os problemas e discutindo os encaminhamentos que antecederam a deliberação sobre a greve. Muitas acontecerão durante a greve. Como eu disse, todas são abertas à participação, voz e voto de todo e qualquer docente. Quando alguém se recusa a participar de um espaço tão aberto quanto esse e depois questiona a legitimidade do espaço ou procura detratar as organizações, militantes e dirigentes, devemos desconfiar um pouco mais da crítica.
Em síntese
Nenhuma forma de luta é perfeita e nenhum processo democrático pode ser considerado acabado numa sociedade regida por uma lógica que é estranha e contrária aos interesses da maioria trabalhadora da população. Por isso, todo o esforço coletivo para debater e aperfeiçoar nossas formas de organização e nossos métodos de luta deve ser saudado como sinal de vitalidade do movimento.
No entanto, muitas das críticas à greve e ao sindicato têm raiz em outro tipo de preocupação e concepção. Há ainda quem na universidade resista a compreender-se como trabalhador e por isso rejeite toda e qualquer forma de organização e luta coletiva associada aos trabalhadores. São aqueles que consideram que seu trabalho intelectual os eleva acima dos terreno comum dos mortais e, consciente ou inconscientemente, acabam por aderir aos argumentos e instrumentos dos que buscam deslegitimar ou mesmo desmontar as organizações e lutas dos trabalhadores. Há também os que, por adesão a um determinado projeto político levantam argumentos falaciosos contra os movimentos dos docentes, porque colocam a defesa de seu projeto/governo acima da defesa da universidade pública. Não podemos deixar de reconhecer que esse projeto tem tentado, ao longo da última década, fragmentar e enfraquecer as organizações representativas do movimento docente. Basta lembrar o apoio governamental à criação da entidade Proifes, que antes mesmo de ser formalizada já era chamada a sentar-se às mesas dos gabinetes ministeriais. As greves são uma ameaça a entidades fantoche desse tipo, porque como elas não possuem representatividade de base real, em momentos como esse sua fachada de legitimidade desmorona. Basta lembrar de 2012, quando os docentes foram à greve em praticamente todas as instituições (houve uma exceção) em que o movimento docente supostamente seria dirigido por essa entidade, que se contrapunha ao movimento, e reconheceram o ANDES-SN como seu efetivo representante naquele momento.
Cada greve é um processo único de aprendizado. Podemos conseguir mais ou menos conquistas com elas, mas em um momento como este que hoje vivemos na universidade é fundamental construirmos uma resposta coletiva às políticas destrutivas que estão em curso. A greve se apresenta como oportuna e necessária, justamente porque a situação é muito adversa. Os resultados da mobilização dependerão, em grande medida, de nossa força coletiva. De qualquer forma, teremos com certeza muito a aprender com ela.

5 FORMAS DE COMBATER O RACISMO NA INFÂNCIA


1. Eduque as crianças para o respeito à diferença. Ela está nos tipos de brinquedos, nas línguas faladas, nos vários costumes entre os amigos e as pessoas de diferentes culturas, raças e etnias. As diferenças enriquecem nosso conhecimento.

2. Valorize e incentive o comportamento respeitoso e sem preconceito em relação à diversidade étnico-racial.

3. Ajude a escola de seus filhos a adotar a postura de ensinar sobre a história e a cultura da população negra e sobre como enfrentar o racismo.

4. Proporcione e estimule a convivência de crianças de diferentes raças e etnias nas brincadeiras, nas salas de aula, em casa ou em qualquer outro lugar.

5. Não deixe de denunciar. A discriminação é uma violação de direitos.

domingo, 24 de maio de 2015

Gravações com línguas africanas faladas em terreiros baianos nos anos 1940 vão virar CD, livro e exposição fotográfica

Imagens raras da Bahia vão virar DVD e livro

Por Verena Paranhos | Cachoeira, BA

Registro inédito de Menininha do Gantois (3ª da D p /E) e filhas de santo

Xavier Vatin  não imaginava o que poderia encontrar no acervo de gravações antropológicas da Universidade de Indiana (Estados Unidos), um dos maiores do mundo, quando resolveu fazer pós-doutorado na instituição.

Em sua pesquisa, o professor da Universidade Federal do Recôncavo  da Bahia (UFRB) se deparou com um tesouro desconhecido pelos brasileiros: 52 horas de gravações feitas  pelo linguista norte-americano  Lorenzo Turner entre 1940 e 1941, em  sua passagem pela Bahia, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Sergipe e Mato Grosso.
"Eu não conhecia Lorenzo Turner,  um  neto de escravos da Carolina do Norte,  o primeiro linguista a se formar em Havard e a  mostrar que existiam línguas criolas no país. Ele tem uma história de família incrível: em duas gerações foi da escravidão à excelência acadêmica".
A pesquisa de Vatin recentemente ganhou repercussão nacional por conta da descoberta de uma gravação rara que reproduz a voz do poeta Mário de Andrade (1893 - 1945), inexistente no Brasil. 
Na época, a tecnologia era  cara e literalmente pesada: os equipamentos e discos de alumínio que guardavam as gravações totalizavam cerca de 250 quilos, um obstáculo a mais para quem viajava em navio a vapor.  
Expedição Bahia
No entanto, o que desperta o interesse do etnomusicólogo são as 17 horas gravadas  por Turner em terreiros de candomblé baianos durante sete meses, nos quais registrou filhos e filhas de santo e  sacerdotes  como Martiniano Eliseu do Bonfim, Manoel Falefá, Mãe Menininha do Gantois e  o jovem Joãozinho da Gomeia. 
"Cada minuto é muito precioso. A primeira coisa que eu ouvi foi uma gravação de Mãe Menininha, aos 35 anos, isso me fez chorar. São centenas de cantigas e rezas, além de ritos funerários gravados em diversos terreiros de Salvador, Cachoeira, São Félix, Santo Amaro. O precioso para o povo de santo é que muitas dessas canções e rezas se perderam", explica.
Vatin percorreu 5.000 quilômetros nos Estados Unidos para reunir também as fotografias e anotações de Turner feitas na expedição baiana.

O repatriamento do material vai dar origem a  um CD duplo que será restituído aos terreiros, um livro e uma exposição fotográfica, cuja estreia está marcada para julho, no Museu Afro Brasil, em São Paulo.
"O que acho extraordinário, tanto na fotografia, como nas gravações sonoras, é que Turner traz  literalmente a presença dessas pessoas. Talvez por ser negro, ele deu voz ao povo de santo como ninguém fez", defende o estudioso da musicalidade do candomblé.
Segundo Vatin, Turner foi pioneiro na década em que a Bahia se tornou  referência para os estudos sobre a diáspora africana, antecedendo antropólogos como Pierre Verger, que aportou aqui em 1946.
Entre 1937 e 1946, importantes pesquisadores seguiram os vestígios quase que intactos de elementos africanos no estado. "Neste período, a Bahia foi laboratório de pesquisadores da cultura negra como Ruth Landers,  Verger, Melville Herskovits, Roger Bastide, Edson Carneiro, Arthur Ramos. O trabalho de Turner ficou 72 anos esquecido. Se esse homem não fosse negro, com certeza seria muito mais conhecido", opina o francês radicado na Bahia há 23 anos. 
Turner pesquisava as línguas criolas faladas  no Sul dos EUA por descendentes de escravos africanos e foi atraído pela Bahia depois de saber que nos terreiros daqui as pessoas falavam fluentemente iorubá, kibungo e fon, entre outras línguas.
"Essas gravações são os únicos documentos que a gente tem que comprovam que  na década de 1940 as línguas africanas eram ainda faladas dentro dos terreiros. Além de uma mina de ouro para o povo de santo, esse material mostra que há muito tempo vem pessoas do mundo inteiro aqui para pesquisar essa cultura. Este trabalho é uma forma de reforçar a legitimidade da cultura afrobrasileira através da tradição do candomblé".
FONTE: A Tarde