Por Marco Pestana
Em 1993, quando do falecimento de Edward
P. Thompson, seu colega de longa data, Eric Hobsbawm, afirmou, em
artigo para o The Independent, que “E.P. Thompson, historiador,
socialista, poeta, ativista, orador, escritor – em seu tempo – da mais
fina e polêmica prosa do século XX, provavelmente gostaria de ser
lembrado pelo primeiro termo dessa lista”. Decorridos quase 20 anos da
publicação daquele texto, chegada a vez do próprio Hobsbawm nos deixar
nesse 1o de outubro de 2012, uma lista igualmente longa de adjetivos
pode ser evocada para descrever os múltiplos elementos de sua
personalidade: historiador, socialista, professor, crítico e amante de
jazz, dentre outros. Não o tendo conhecido pessoalmente, não sou capaz
de identificar por qual de suas facetas Hobsbawm gostaria de ser
lembrado. Outros elementos, entretanto, me permitem afirmar com
segurança que doravante ele será lembrado fundamentalmente como
historiador – assim como ocorre ainda hoje com Thompson – por não menos
que algumas décadas.
Quanto a isso, é impossível não destacar
a vastidão de temas abordados em seus livros e artigos publicados ao
longo de mais de seis décadas de intensa produção intelectual, desde
suas pesquisas iniciais acerca do que denominou “rebeldes primitivos” –
no bojo das quais cunhou o polêmico conceito de movimentos sociais
“pré-políticos”. Não menos notável foi sua capacidade de estabelecer
interpretações de conjunto para extensos e atribulados períodos
históricos, como evidencia sua trilogia (Era das Revoluções, Era do
Capital e Era dos Impérios) devotada ao exame do “longo século XIX”,
publicada entre as décadas de 1960 e 1980. Nem mesmo uma de suas
principais paixões pessoais, o jazz, escapou de ser examinada sob uma
perspectiva histórica, cristalizada no livro História social do jazz,
inicialmente publicado sob o pseudônimo de Francis Newton.
Já nos anos 1990, sua erudição e
capacidade de síntese foram novamente mobilizadas para a produção de
outra obra de grande envergadura, Era dos extremos, em que defendia que o
embate entre os sistemas sociais socialista e capitalista seria o fio
condutor das principais transformações históricas características do
“breve século XX” (fim do eurocentrismo, consolidação da escala global
dos processos e dissolução dos antigos padrões de sociabilidade em favor
de um individualismo exacerbado), por ele situado nos anos 1914-1991.
Originalmente publicado em 1994, o livro destacou-se ainda por abordar
um período histórico quase totalmente coincidente com o tempo de vida de
Hobsbawm, bem como eventos que tiveram forte significação ao longo de
sua trajetória pessoal. Não por acaso, grande parte desses eventos foi
tratada sob uma perspectiva mais pessoal em sua autobiografia, Tempos
interessantes, como o imperialismo inglês na África, que levou seu pai à
cidade de Alexandria, no Egito, onde Eric nasceu em 1917; a ascensão do
nazismo em 1933, que fez com que sua família deixasse Berlim para
residir na Inglaterra; a Segunda Guerra Mundial, da qual tomou parte
como membro do exército inglês, dentre muitos outros.
Vivenciado todos esses importantes
processos, Hobsbawm jamais se colocou como um observador ou cronista dos
acontecimentos pretensamente neutro. Muito pelo contrário, uma das
marcas mais significativas de sua produção historiográfica foi seu
permanente engajamento político, sempre ao abrigo das tradições do
marxismo e do socialismo. Ainda antes da eclosão da Segunda Guerra
Mundial, sob o impacto inspirador da Revolução Russa de 1917, Hobsbawm
se tornou membro do Partido Comunista da Grã-Bretanha (PCGB).
Como militante do PCGB, participou do
que ficou conhecido como Grupo de Historiadores do Partido Comunista, o
qual funcionou entre 1946 e 1956, reunindo alguns dos mais brilhantes
historiadores do século XX, como o já mencionado Edward Thompson,
Christopher Hill, Rodney Hilton, entre outros, sob a inspiração do
decano Maurice Dobb. A conexão entre as discussões coletivas no âmbito
do Grupo e as pesquisas individualmente conduzidas por seus membros
foram decisivas para a articulação de um dos mais influentes e profícuos
veios da moderna historiografia, a chamada História Social Inglesa. A
partir dos esforços de resgate da história e da ação histórica dos
grupos subalternizados como passo incontornável para uma explicação mais
acurada da dinâmica da totalidade social, os pioneiros da História
Social Inglesa desenvolveram profundas inovações teórico-metodológicas –
relativas ao uso de determinados tipos de fontes, ao burilamento de
conceitos centrais para a tradição do materialismo histórico e, até
mesmo, à forma de se conceber o estatuto da própria história-disciplina
–, para as quais Hobsbawm contribuiu diretamente com duas seminais
coletâneas de artigos, intituladas, respectivamente, Trabalhadores e
Mundos do Trabalho.
O Grupo de Historiadores, no entanto, se
desfez em 1956, como consequência da saída da maioria de seus membros
das fileiras do PCGB em protesto contra a invasão da Hungria por tropas
soviéticas no mesmo ano. Embora tenha criticado a intervenção militar –
assim como faria em relação à repressão imposta, em 1968 e também sob o
comando dos soviéticos, à Primavera de Praga –, Hobsbawm divergiu de
seus colegas historiadores e optou por permanecer filiado ao PCGB. Ao
longo dos anos 1970, Hobsbawm deslocou-se progressivamente para o campo
da perspectiva reformista encarnada pelo Eurocomunismo, desenvolvido
sobretudo pelo PC italiano. Sua dívida com o comunismo italiano,
entretanto, era muito anterior, tendo seu ponto alto na obra do sardo
Antonio Gramsci, que figurou, inclusive, como peça-chave em diversos dos
ensaios do último livro publicado por Hobsbawm em vida, intitulado Como
mudar o mundo.
A aproximação em relação ao reformismo
não o impediu de, no decênio seguinte, se contrapor decisiva e
publicamente às políticas conduzidas pelo gabinete conservador de
Margareth Thatcher. Ao publicar o conjunto de textos Estrategias para
uma esquerda racional, apontou claramente para a especificidade
histórica do regime econômico e social inaugurado por aquele governo, se
contrapondo a outros pensadores da esquerda que insistiam em
equipará-lo às administrações conservadoras anteriores. Ainda ao longo
da década de 1980, as imbricações entre suas posições políticas e suas
preocupações intelectuais e profissionais se expressaram também por meio
de seu esforço de organização da mais completa coletânea de História do
Marxismo, que traz, em seus 12 volumes, textos de variados autores
debatendo as mais diversas vertentes de pensamento e atuação marxista
desde sua fundação no século XIX.
Ao contrário do que sugerem muitas
abordagens conservadoras acerca da relação entre política e pesquisa,
sua perspectiva permanentemente engajada jamais serviu de justificativa
para que Hobsbawm deixasse de lado os rigorosos procedimentos
metodológicos característicos desse tipo de investigação. Em diversas
ocasiões, como em numerosos textos reunidos no livro intitulado Sobre
História, o próprio autor tomou para si a tarefa de combater
determinados ataques à disciplina histórica materializados sob a forma
de concepções narrativistas que a equiparam a construções literárias
e/ou instrumentalizações políticas indevidas, que apartam determinados
grupos sociais das totalidades históricas em que se inserem.
Para Hobsbawm, em suma, tanto quanto a
profunda erudição jamais se tornou escusa para um enclausuramento em
arquivos e bibliotecas, deixando de lado a necessidade de intervir nos
acontecimentos de seu próprio tempo, a militância política nunca se
assentou em bases meramente voluntaristas, prescindindo de um profundo
movimento de reflexão para sustentá-la. Em sua trajetória, análise do
passado e transformação do presente apareceram sempre como dimensões
indissociáveis da prática do historiador, orientada para a criação de um
“(…) mundo no qual os trabalhadores possam fazer sua própria vida e sua
própria história, ao invés de recebê-las prontas de terceiros, mesmo
dos acadêmicos”.
(Artigo publicado originalmente no blog Convergência, em 2 de outubro de 2012.)FONTE: blog Junho
Nenhum comentário:
Postar um comentário