No texto a seguir, repetimos a palavra ‘racista’ 17 vezes, a palavra ‘racismo’ 15, a palavra ‘negro’ 8 e a palavra ‘preconceito’ 5 só para você entender que ainda vivemos em um país racista
por Pedro Henrique Araújo
“Escuta aqui. O primo do cunhado do meu genro é mestiço, racismo não existe, comigo não tem disso.” O verso com o discurso de um policial se explicando em uma abordagem da música Qual mentira vou acreditar, do grupo de rap paulistano Racionais MC’s, talvez seja a melhor definição sobre preconceito racial no Brasil: um país miscigenado, até o último cromossomo é racista na essência. A letra da canção continua com quem tomou o baculejo fingindo que acredita no papo do gambé. “Falou, falou. Deixa pra lá. Vou escolher em qual mentira vou acreditar.” Falar que o cabelo é ruim por ser crespo é racismo. Chamar de macaco, de café-com-leite, moreninho, mesmo que o cara seja muito seu brother, é racismo. Usar a expressão “a coisa tá preta” é racista. Utilizar a palavra “denegrir” é etimologicamente racista. Fazer uma telenovela em que o cenário principal é a favela de Paraisópolis, no extremo sul da capital paulista, e não ter negros no núcleo principal de atores é, além de fora da realidade, um bocado racista. Pintar de preto o rosto de um ator branco para representar uma pessoa negra, apesar de fomentar uma discussão, é racismo. Um homem branco escrever essas linhas lhe dá o saboroso e inexpugnável poder de acusação. Sim, talvez isso também seja racismo. E você, cidadão branco, já foi racista hoje?
Uma anedota triste de uma vida real. Dessas que facilmente ilustrariam um caderninho de piadas dos anos 1970. Um garoto branco olha para o colega de sala, negro, e o chama de neguinho, em uma demonstração evidente de racismo. Um amigo do menino de pele escura, também branco, em um mix de sentimentos heroicos distorcidos, avança sobre o pequeno racista e o agride. Como justificativa, o algoz usa o brilhante argumento. “Mano, o que é isso? Ele não é preto, ele é moreninho.” Protagonista da cena, artista gráfico, produtor de conteúdo e MC, Oga Mendonça conta um pouco sobre o que é ter a pele escura em um país como o nosso: “Por mais que as pessoas confundam os conflitos raciais com sociais, o tratamento da polícia, por exemplo, com um branco pobre ou um negro pobre é muito diferente. O branco sempre vai ter mais privilégios do que um negro na sociedade brasileira. O branco sempre vai ter o privilégio de não se importar com essa questão, o negro, não. A partir do momento em que você sai de casa, já tem que se importar com isso, porque algumas pessoas vão ter medo de você, outras vão achar que você é menor, vão te subjugar.”
Um desses julgamentos recentes foi o casamento da cantora Preta Gil, filha de Gilberto Gil. Ela se casou com o personal trainer, branco, Rodrigo Godoy, no dia 12 de maio último e o dia seguinte foi marcado por brincadeiras e memes. Oga comenta: “É muito difícil para a nossa sociedade entender que uma mulher negra e gorda pode casar e ser feliz com um cara bonito – entenda branco e sarado – para o padrão de beleza racista vigente”.
Dono de um prolífico discurso contra o racismo, o também rapper Leandro Roque de Oliveira, o Emicida, completa o papo sobre o primo do cunhado do meu genro é mestiço, do policial lá do primeiro parágrafo. “Os números da Anistia Internacional no Brasil [de acordo com estudo divulgado em 2014 referente ao número de pessoas assassinadas no país em 2012] revelam que 77% das vítimas da polícia são pretas. Tá ligado? Você tem todos esses números de pessoas que vão fazer Boletim de Ocorrência e não são ouvidas, porque a polícia ridiculariza a denúncia de racismo. E, quando a leva a sério, ainda induz a vítima a caracterizar o crime como injúria racial, que é uma tipificação que acaba passando um pano para o racista. Isso é a realidade do século 21.” E deita o falatório sobre outro policiamento, o digital: “Todo mundo quer ser o polícia do outro nas redes sociais.
Todo mundo quer ser o cara que desmascarou o racista. ‘Como você foi racista, como você foi machista, como você foi homofóbico’. Só que você também tem que combater esses demônios internamente. As pessoas apontam aquilo, transferem para um segundo ou terceiro, mas mantêm o preconceito delas bem guardadinho no armário”.
As rimas, o discurso, o punho erguido e fechado estão na retórica do rapper, que explica suas escolhas. “Tenho um receio muito grande de que as coisas sejam entendidas de uma maneira errada, de uma maneira equivocada. Tá ligado, mano? Na minha música, eu falo muito disso; na minha postura, eu também mostro muito disso”, conta Emicida, apontando um norte para uma possível luz no fim do túnel sobre o preconceito racial brasileiro. “A gente precisa construir uma ideia de beleza negra, de produção cultural, de manifestação artística. É uma coisa que tem que estar fundida com a beleza.” E revela nas passarelas e comerciais de TV a mudança no olhar. “Eu ajudo as minhas amigas a aparecer nesses negócios de moda, eu me envolvo mais com isso, porque sei o quanto é importante a gente ter representação nos espaços onde a beleza é o tema principal. É isso aí que vai mudar a realidade da minha filha. Junto com as letras das minhas músicas e o meu posicionamento.”
ESCOLHA UMA DAS ALTERNATIVAS
Diariamente, quem tem a pele escura é obrigado a lidar com o preconceito com as opções:
a) deixar pra lá
b) acreditar na mentira
c) partir para o enfrentamento
Sem dúvida, uma das grandes trincheiras nessa batalha – sim, essa é uma
luta diária e sofrida – sem dúvida é o rap, e uma de suas maiores
representações tem nome e sobrenome, Kleber Geraldo Lelis Simões, vulgo
KL Jay, DJ do Racionais MC’s e um dos caras mais generosos e ativos do
hip hop nacional. Para inibir o preconceito, ele usa, além do seu
sorriso estampado e quase sempre presente, a sua cabeça erguida. E não
há nada mais ofensivo para um racista do que um preto orgulhoso. “Eu
lido com o racismo mostrando a minha autoestima. Ela é indestrutível”,
explica e revela que acha a intolerância nos olhares.
Empresária, produtora e esposa do rapper Mano Brown, Eliane Dias integra uma fatia sofrida da sociedade brasileira, a mulher negra. Não é preciso citar o sociólogo nascido em Serra Leoa Francis Musa Boakari ou qualquer outro teórico para afirmar categoricamente isso. Ela sabe que a intolerância está por toda parte, mas usa de ferramentas próximas às de KL Jay para se defender. Ela conta. “Vejo o racismo no Brasil no ar que respiro, racismo que vem da parte de todas as raças, racismo que vem da ignorância, vem da incapacidade, racismo que vem da maldade. Racismo que só entra em ação para impedir a ascensão. Toda as vezes que sou aviltada de forma racista, luto mais ainda pelo que estava desejando, pois sei que só estão sendo racistas para me fazerem desistir, para me tirarem do meu foco. Olho bem nos olhos do racista e digo: ‘Seu racismo me fortalece, vai segurando’.”
O rapper Rico Dalasam descreve uma cena que você pode achar inofensiva, mas veja bem, não é tão inocente assim. “Eu estava ali no Copan usando o wi-fi e o pessoal do comércio chamou a segurança e o cara foi falar comigo: ‘Pô, cê tá esperando alguém?.’” O cantor questiona o porquê de estar parado gerar suspeita e explica como reagiu. “Eu dei uma orelhada braba nele, explicando que o fato de eu parecer ser o que as pessoas têm como marginal, como suspeito, não condiz com o que é na maioria das vezes e isso acontece em vários lugares, em diversas situações.”
Além de ser negro e ter vindo da periferia, Dalasam é assumidamente gay. Precisa dizer alguma coisa mais sobre intolerância? “Em um primeiro instante, ser negro grita muito mais alto, porque depois que a pessoa vai conhecer a história, vai ter uma conversa, alguma coisa, aí ela vai ter esse pensamento, essa posição racista, preconceituosa. Não é fácil você abertamente colocar as suas ideias no meio em que você vive.” E finaliza: “O conservadorismo das pessoas, o formato de família que elas acreditam que é exato, todo esse pensamento, mano, constrói sim uma segregação, uma coisa de separar, tá ligado? Do mesmo jeito que se separa o negro e ele não tá em um monte de lugar, quando vem a heteronormatividade, ela também separa o gay dos demais. Aí, junta essas duas coisas, mano. A gente é o separado do separado. É a margem da margem em grande parte das vezes”.
Enquanto a Tia Nastácia não sair da cozinha, ainda teremos esse osso na goela. Enquanto mulheres negras, vestidas de branco, carregarem galeguinhos nas praças e shoppings, teremos esse ranço. Enquanto um jogador de futebol for chamado de macaco durante uma partida ou um ginasta for menosprezado pela escuridão de sua pele, seremos, sim, um país racista. E, aí? Você já foi racista hoje?
Empresária, produtora e esposa do rapper Mano Brown, Eliane Dias integra uma fatia sofrida da sociedade brasileira, a mulher negra. Não é preciso citar o sociólogo nascido em Serra Leoa Francis Musa Boakari ou qualquer outro teórico para afirmar categoricamente isso. Ela sabe que a intolerância está por toda parte, mas usa de ferramentas próximas às de KL Jay para se defender. Ela conta. “Vejo o racismo no Brasil no ar que respiro, racismo que vem da parte de todas as raças, racismo que vem da ignorância, vem da incapacidade, racismo que vem da maldade. Racismo que só entra em ação para impedir a ascensão. Toda as vezes que sou aviltada de forma racista, luto mais ainda pelo que estava desejando, pois sei que só estão sendo racistas para me fazerem desistir, para me tirarem do meu foco. Olho bem nos olhos do racista e digo: ‘Seu racismo me fortalece, vai segurando’.”
O rapper Rico Dalasam descreve uma cena que você pode achar inofensiva, mas veja bem, não é tão inocente assim. “Eu estava ali no Copan usando o wi-fi e o pessoal do comércio chamou a segurança e o cara foi falar comigo: ‘Pô, cê tá esperando alguém?.’” O cantor questiona o porquê de estar parado gerar suspeita e explica como reagiu. “Eu dei uma orelhada braba nele, explicando que o fato de eu parecer ser o que as pessoas têm como marginal, como suspeito, não condiz com o que é na maioria das vezes e isso acontece em vários lugares, em diversas situações.”
Além de ser negro e ter vindo da periferia, Dalasam é assumidamente gay. Precisa dizer alguma coisa mais sobre intolerância? “Em um primeiro instante, ser negro grita muito mais alto, porque depois que a pessoa vai conhecer a história, vai ter uma conversa, alguma coisa, aí ela vai ter esse pensamento, essa posição racista, preconceituosa. Não é fácil você abertamente colocar as suas ideias no meio em que você vive.” E finaliza: “O conservadorismo das pessoas, o formato de família que elas acreditam que é exato, todo esse pensamento, mano, constrói sim uma segregação, uma coisa de separar, tá ligado? Do mesmo jeito que se separa o negro e ele não tá em um monte de lugar, quando vem a heteronormatividade, ela também separa o gay dos demais. Aí, junta essas duas coisas, mano. A gente é o separado do separado. É a margem da margem em grande parte das vezes”.
Enquanto a Tia Nastácia não sair da cozinha, ainda teremos esse osso na goela. Enquanto mulheres negras, vestidas de branco, carregarem galeguinhos nas praças e shoppings, teremos esse ranço. Enquanto um jogador de futebol for chamado de macaco durante uma partida ou um ginasta for menosprezado pela escuridão de sua pele, seremos, sim, um país racista. E, aí? Você já foi racista hoje?
Ilustrações Samuel Casal
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