Entrevista de Domenico Losurdo à revista Carta Capital (junho de 2015)
por Claudio Bernabucci
O historiador italiano Domenico Losurdo analisa a atualidade do conceito
marxista em um momento em que a renda está sendo redistribuída a favor
das classes privilegiadas
Historiador da filosofia e professor emérito da
Universidade de Urbino, na Itália, Domenico Losurdo está em São Paulo em
junho para um seminário intitulado Cidades Rebeldes e para o lançamento, pela Editora Boitempo, de seu Luta de Classes.
Na entrevista a seguir, o acadêmico, um dos estudiosos italianos mais
traduzidos no mundo, fala do novo livro, da ascensão dos emergentes e do
marxismo, e contesta o historiador britânico Niall Ferguson, expoente
liberal.
CartaCapital: Vivemos
em uma época em que o neoliberalismo é hegemônico e age sem fronteiras. A
política, ao contrário, continua presa às estreitas visões nacionais. A
escassez de concepções globais da história que aflige o pensamento
contemporâneo depende desse limite?
Domenico Losurdo: Temos de
considerar que, no fim do século passado, com a derrota das experiências
socialistas na União Soviética e na Europa Oriental, assistimos a uma
colossal mudança histórica. Ao mesmo tempo, a afirmação dos países
emergentes e em particular da China como potência mundial representa um
choque que é normal não ser imediatamente sistematizado no pensamento.
Meu trabalho consiste na tentativa de superar esses limites.
CC: Como o senhor definiria, de um ponto de vista histórico-político, a atual situação internacional?
DL: Nos
principais países de capitalismo avançado ocorre um enorme processo de
redistribuição de renda a favor das classes privilegiadas. Ao mesmo
tempo, de um ponto de vista global, podemos observar uma redistribuição a
favor das nações emergentes, aquelas que completam a revolução
anticolonialista. Nesse duplo processo, quem coerentemente apoia um
projeto de emancipação da humanidade deveria agir para contrastar, em
nível nacional, a concentração de riqueza em mãos privilegiadas e, em
nível global, favorecer a redistribuição a favor dos países menos
favorecidos.
CC: O senhor lê tais processos como umas das várias configurações da luta de classes. É correto?
DL: Exatamente. Para
entender minha leitura, temos de lembrar que Marx fala de lutas de
classe, sempre no plural. A forma de luta de classes na qual se prestou
mais atenção é aquela entre burguesia e proletariado, mas é preciso
evidenciar que, sobretudo Engels, mas também Marx, indicou na opressão
da mulher a primeira forma de luta de classes. Uma terceira forma é a
continuidade da batalha anticolonialista. Na segunda metade do século
passado, ela tomou a forma de disputa pela libertação nacional e agora
persiste como um embate econômico entre países que querem realizar
plenamente sua própria autonomia.
CC: A luta de classes,
sobretudo após a derrota do socialismo real, foi recusada como possível
interpretação da história contemporânea. Qual é sua resposta a esse tipo
de argumentação?
DL: Nesse aspecto, eu
polemizo abertamente com Niall Ferguson, considerado hoje o historiador
de referência do Ocidente liberal. Ele afirma que no século XX a luta
racial teve importância central, enquanto a luta de classes não teve
relevância alguma. Vejamos os acontecimentos principais do século
passado na Europa e na Ásia. Como demonstram os seus chamados discursos
secretos, Heinrich Himmler, um dos principais chefes do nazismo,
manifestou com total clareza a vontade do Terceiro Reich de realizar um
novo regime escravista. A derrota da União Soviética era a premissa para
recrutar escravos, no sentido literal do termo, que, afirmou Himmler,
poderiam “encontrar ali e dos quais precisamos para trabalhar e servir a
nossa raça”. É correto então afirmar que a luta contra a tentativa de
escravizar as chamadas raças inferiores foi uma luta de classes. Um
processo análogo aconteceu na Ásia, com a tentativa do império japonês
de submeter e escravizar os chineses, imitando assim os alemães no
escravismo, maneira mais brutal de colonialismo. Mao Tsé-tung, em torno
de 1938, com muita lucidez, afirmou que naquelas condições a luta de
classes coincidia com a luta nacional. Tal coincidência se verificou
obviamente também na Europa contra Hitler. Muitos historiadores, não só
eu, afirmam hoje que a resistência da União Soviética contra a Alemanha
nazista na Europa e a resistência chinesa na Ásia contra o imperialismo
japonês foram as maiores guerras coloniais da história. Como tais, elas
foram os maiores exemplos de luta de classes no século XX, uma batalha
que sempre assume características novas e peculiares. A história do
século passado é a confirmação da leitura marxista da história como luta
de classes.
CC: A luta de classes resulta útil para interpretar e transformar a realidade contemporânea?
DL: Na época atual, não
existem mais as colônias no sentido clássico, pois é evidente que a luta
anticolonial chegou ao fim em nível planetário. Esse avanço é, sem
dúvida, o resultado de um processo iniciado com a Revolução de Outubro,
quando Lenin conclamou “os escravos das colônias a quebrarem o jugo da
dominação colonial”. O mundo era propriedade de poucas grandes potências
colonialistas, da Ásia à América Latina. Hoje o quadro é outro, mas ela
continua como luta anticolonialista: não é mais pela independência
nacional, mas assume a forma de disputa econômica. Uma citação de Mao
Tsé-tung torna-se útil outra vez. Na véspera da proclamação da República
Popular da China, em 1949, ele avisou: “Se, depois da conquista do
poder, não tivermos em conta que os Estados Unidos querem que a China
continue dependendo do trigo americano, a China continuará sendo
substancialmente uma colônia no plano econômico. Nesse caso, a
independência política será meramente formal”. Mao entendeu claramente
que o processo de libertação do colonialismo passou da fase
político-militar para a político-econômica. Dessa maneira, podemos
entender o que acontece nos dias de hoje com a China: uma das formas da
luta de classes vigente é a tentativa de quebrar o monopólio ocidental
da alta tecnologia. Isso vale também para a América Latina, que se
liberou definitivamente da Doutrina Monroe, mas continua a batalha pela
independência econômica e pelo desenvolvimento autônomo.
CC:
Ilustres prêmios Nobel de Economia evidenciaram que também nos países
emergentes o processo de bifurcação entre ricos e pobres aumenta. Como o
senhor avalia essa contradição?
DL: Em
nível mundial, o capitalismo continua dominante. Portanto, também nos
países emergentes vê-se uma acumulação de riqueza a favor dos setores
privilegiados, e quase sempre a distância econômica e social entre
riqueza e pobreza se acentua. No Brasil como na China, as três formas de
luta de classes estão contemporaneamente ativas, não existe só a forma
clássica entre burgueses e trabalhadores. É sempre preciso fazer a
análise concreta da situação concreta. Cada momento histórico é
caracterizado pelo entrelaçamento entre as três diferentes lutas de
classes e, a depender dos contextos específicos, determina-se a
prevalência de uma forma sobre as outras.
CC: Como definir a experiência chinesa, que adotou um sistema de partido único e a economia capitalista?
DL: Se por
capitalismo entendemos o sistema em que o poder é exercido pela
burguesia, certamente a China não é um país capitalista, pois o poder
está estritamente nas mãos do Partido Comunista. A expropriação política
da burguesia foi realizada completamente, enquanto a econômica não,
pelo fato de suas capacidades empreendedoras terem sido consideradas
úteis, nessa fase histórica, para perseguir os objetivos de interesse
geral. Portanto, sugiro aceitar a autodefinição que os dirigentes locais
adotaram: a China se encontra no estágio primário do socialismo, que
acabará em 2049, centenário da República Popular. Admito ter
compartilhado as ilusões do passado, quando as certezas alimentadas pela
filosofia da história garantiam a inevitável vitória do socialismo.
Agora não acredito mais nisso, mas afirmar que na China o capitalismo
venceu para sempre é uma colossal besteira. Palavra de historiador.
FONTE: Carta Capital
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