Documentos recém-descobertos no arquivo da ESG (Escola Superior de Guerra) sugerem que empresários ligados à Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) se engajaram de forma intensa nos preparativos do golpe de 1964, ação que derrubou o presidente João Goulart e resultou em 21 anos de ditadura no Brasil.
São transcrições de palestras, conferências e uma monografia do início da década de 70, todas elas apresentadas na sede da ESG, no Rio, pelos próprios industriais ligados à entidade patronal paulista.
Dirigindo-se aos militares numa dessas ocasiões, um dos empresários afirmou que a Fiesp havia colaborado com a logística "com vistas ao preparo da Revolução de 64".
O então presidente da Fiesp, Theobaldo De Nigris, em palestra para os militares, em 1972 |
Em outra visita à ESG, ele falou em empresários que se uniram "num movimento de defesa grupal dos princípios democráticos" desde 1962.
Eleito vice-presidente em 1960 e empossado de acordo com a Constituição em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros, Jango foi deposto em março de 1964 por um movimento militar que teve apoio de políticos e empresários.
Outro representante da Fiesp relacionou os tipos de contribuições feitas por seus colegas às Forças Armadas nos meses que antecederam o golpe: "Veículos, pneumáticos, baterias, remédios, caminhões e uma infinidade de materiais e equipamentos, cujo montante ultrapassou a NCr$ 1.000.000 (hum milhão de cruzeiros novos)". Corrigido pelo IGP-DI da Fundação Getúlio Vargas, o valor corresponde a R$ 5 milhões.
A Folha obteve na biblioteca da ESG cópias das exposições feitas pelos empresários paulistas na instituição.
As intervenções mais ricas são as feitas pelo engenheiro Quirino Grassi, cuja família tinha uma fábrica de carrocerias de bondes e ônibus.
Num texto de 1972, Grassi falou de "empresários paulistas que espontaneamente colaboraram para a consecução do movimento revolucionário que eclodiria em março de 1964". Sem dar nomes, disse que o grupo começou a atuar de forma mais organizada em "princípios de 1963" para "prestar um trabalho visando a defesa de nossos ideais democráticos e cristãos".
Esse núcleo, disse, "articulou-se junto à presidência da Fiesp, [...] o governador do Estado [Adhemar de Barros], oficiais superiores do 2º Exército e o comandante da Força Pública" e "iniciou a preparação do que seria o movimento vitorioso de 1964".
VIGILANTES
Empresários trabalharam para desestabilizar Jango desde sua posse, financiando as campanhas de seus adversários no Congresso e organizando entidades como o Ipes (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), que fazia propaganda contra o governo.
Após o golpe de 1964 e com a ditadura instalada, alguns ajudaram a financiar a Oban (Operação Bandeirante), organização criada pelos militares para coordenar a repressão aos opositores do regime. Mas até hoje há pouca informação sobre o apoio direto dos industriais aos golpistas.
Outro empresário que falou na ESG sobre a colaboração dos industriais paulistas foi Theobaldo De Nigris, revendedor de veículos Mercedes-Benz, morto em 1990.
Presidente da Fiesp de 1967 a 1980, De Nigris fez uma palestra em 21 de julho de 1972: "Acontecimentos que precederam a Revolução vitoriosa de 1964 e o uso das guerras psicológicas e revolucionárias são exemplos vivos de que precisamos estar vigilantes e organizados", afirmou.
O terceiro empresário de São Paulo que deu detalhes do apoio ao golpe é Vitório Ferraz. Trechos de uma palestra sua de 1970 aparecem anexados à monografia de Grassi [na página 24], mas o documento original não foi localizado. Foi ele que calculou o apoio em 1963 em mais de NCr$ 1 milhão.
Ferraz é citado como um dos acionistas da Cia. Fuller Equipamentos Industriais no livro "1964: A Conquista do Estado", a mais completa investigação sobre o envolvimento de empresários com o golpe, finalizado em 1980 pelo pesquisador René Dreifuss. Farta em detalhes sobre a atuação do Ipes no Rio, a obra de Dreifuss não cita as exposições feitas pelos empresários paulistas aos militares.
Procurada, a Fiesp não quis comentar. Informou que nenhum de seus atuais diretores atuava naquela época.
Documentos enfraquecem a tese de reação ante um risco comunista
Há pelo menos duas possibilidades de interpretação para as palestras dos anos 70 em que empresários da Fiesp diziam ter conspirado desde 1962 e doado materiais para militares golpistas de 1964.
Uma hipótese é que as doações tenham sido mais um meio de aproximação institucional do que parte de uma conspiração política. Mas nos anos 70, no auge da ditadura, seria conveniente propagar que tinham propósito "revolucionário" desde o início.
No fim de 1963, o 2o Exército (com jurisdição em São Paulo) passou a ser liderado pelo general Amaury Kruel, ex-chefe do Gabinete Militar de Jango. Kruel só se juntou aos golpistas em 1964, horas antes de Jango cair. Difícil imaginar que empresários paulistas soubessem, com meses de antecedência , que o 2o Exército trairia o presidente.
Outra possibilidade é que as doações fossem parte do esforço dos adversários de Jango para fomentar um ambiente hostil ao presidente.
Na época, os governadores ainda tinham forte influência sobre as unidades militares em seus Estados. Dessa forma, as doações podem ter servido para fortalecer nos meios militares o então governador Adhemar de Barros, que dizia um combatente da "comunização do país" e apoiou os golpistas em 1964.
Para o cientista político Marcelo Ridenti, da Unicamp, as duas interpretações são factíveis. "Os empresários podem ter exagerado ao falar da própria colaboração. Mas eles não inventaram essas histórias do nada. Onde há fumaça, há fogo", disse Ridenti.
O historiador Marcos Napolitano, outro especialista no período, diz que os documentos da ESG enfraquecem a tese de que o golpe foi reativo, a ideia de que a motivação para derrubar Jango teria sido a necessidade de deter um golpe de esquerda.
FONTE: Folha de São Paulo, 1 de junho de 2014.
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