A primeira arca
Livro conta a história de tabuleta de argila contendo a primeira descrição do Dilúvio, escrita séculos antes da versão bíblica no Gênesis
Séculos antes que escribas israelitas anônimos se sentassem para escrever os relatos sobre o Dilúvio que constam do Gênesis, o primeiro livro da Bíblia, múltiplas versões da história, em mais de uma língua, já circulavam pelo Oriente Médio.
O arqueólogo Irving Finkel, do Museu Britânico, foi responsável por decifrar uma das variantes mais antigas da narrativa, composta por volta do ano 1700 a.C. e contendo um detalhe surpreendente: uma "Arca de Noé" redonda.
As aspas são necessárias porque essa arca redonda não foi construída por Noé, como na história bíblica, mas, sim, por um sujeito chamado Atrahasis, que também é o personagem principal de outras versões antigas da história do Dilúvio.
Finkel é especialista na antiga escrita cuneiforme, inventada na Mesopotâmia (grosso modo, o atual Iraque), e conta os detalhes de sua descoberta no livro "The Ark Before Noah" ("A Arca Antes de Noé"), lançado recentemente no Reino Unido.
Na obra, Finkel explica que a tabuleta de argila com caracteres cuneiformes contendo a versão redescoberta da história chegou às suas mãos por meio de Douglas Simmonds, britânico cujo pai, um colecionador particular de antiguidades, havia adquirido a relíquia no fim dos anos 1940. Nenhum dos Simmonds fazia ideia da importância do texto, escrito em acadiano (língua semita, como o hebraico), provavelmente na Babilônia.
DETALHES
A tabuleta contém apenas um fragmento de 60 linhas da história, mas é excepcional por trazer instruções detalhadas da construção da arca, como matéria-prima, formato, dimensões e até a ideia de que os animais deveriam entrar na Arca em pares (veja infográfico).
O modelo da megaembarcação parece ter sido um tipo de "barco-cesto" tradicional da Mesopotâmia, que aparece em gravuras antigas e ainda era usado na região no fim do século 19.
Em entrevista à Folha, Finkel afirmou que a versão que ele decifrou provavelmente é a mais primitiva da região. "Na minha visão, a história do Dilúvio é extremamente antiga e deriva de uma inundação real que aconteceu muito antes da invenção da escrita, talvez milênios antes", diz. "Provavelmente a versão em acadiano é mais antiga que a versão em sumério [outra língua extinta da região], a qual tem um sabor de tradução."
A trama básica do Dilúvio mesopotâmico é quase idêntica à da história bíblica, mas uma das diferenças mais óbvias é que, na narrativa de Atrahasis, existem vários deuses (em vez do Deus único israelita), e são eles, em conjunto, que decidem exterminar a humanidade com as águas. Entretanto, uma das divindades, Enki, resolve "vazar" o plano de seus companheiros divinos para o humano Atrahasis, instando-o a construir o superbarco de maneira a salvar sua família e os casais de animais.
Outra diferença crucial é que, nas histórias mesopotâmicas, os deuses tomam sua decisão drástica porque não conseguem dormir com o barulho feito pela população humana, ou então porque a Terra ficou superpovoada. Na Bíblia, por outro lado, a maldade humana é que teria motivado o dilúvio.
"Isso provavelmente reflete a ideia de que, naquela época, a humanidade ainda não era afligida pela morte, o que levou à superpopulação", conta Finkel. "Nesse caso, a reação dos deuses é uma reação racional a esse problema, e não um castigo moral."
Tudo indica, portanto, que os autores israelitas da Bíblia transformaram a história para enfatizar o que viam como a preocupação de Deus em punir o mal. Isso não significa, porém, que a religião mesopotâmica fosse alheia à importância da moralidade, diz Finkel. "Eles só não faziam tanto barulho em relação a esse tema quanto as religiões posteriores", afirma.
- FONTE: Folha de São Paulo, 29 de junho de 2014.
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