por Caio N. de Toledo, especial para o Viomundo
A Folha de S. Paulo, na sua edição de 21 de fevereiro, noticiou que o Banco Itaú decidiu recolher as agendas de 2014 que estava distribuindo aos seus correntistas.
Na explicação do jornal, a agenda teria provocado “polêmica nas redes sociais ao classificar o golpe de Estado que depôs o presidente João Goulart como revolução”.
A rigor, as redes sociais repercutiram a informação do blog do jornalista Mário Magalhães que denunciou a falsificação histórica perpetrada pelos marqueteiros de uma das mais lucrativas instituições financeiras do país, de FCH ao governo Dilma Rousseff.
Segundo a agenda do Itaú, há 50 anos, o país teria assistido ao “movimento revolucionário de 31 de março de 1964”. Tal como outras datas santificadas do calendário, seria um dia a ser lembrado e comemorado!
Embora a administração da instituição financeira não tenha reconhecido que em 31 de março de 1964 houve, de fato, um “golpe de Estado”, é de se registrar o gesto público do banco na medida em que mandou recolher a agenda golpista. Muito provavelmente, o 31 de março de 2015 não mais será dignificado pelo banco numa futura agenda a ser oferecida aos seus clientes.
Na mesma direção, em recente editorial (31/8/2013), O Globo admitiu publicamente que seu apoio “ao golpe de 1964 foi um erro”.
Embora o jornal – tal como o conjunto das Organizações Globo – jamais tenha feito uma autocrítica consistente sobre seu apoio ao golpe de 1964 e à ditadura militar, não se deve, contudo, desprezar o valor simbólico da confissão pública do “erro”.
Sim, as Organizações Globo continuam sendo eficientes aparelhos ideológicos da direita brasileira, mas, desde agosto de 2013, não mais escreverão em seus editoriais e artigos que em 31 de março de 1964 ocorreu uma “Revolução redentora” ou que os brasileiros e brasileiras devem ter saudades dos tempos da ditadura.
Em matéria de re-significações sobre 1964, os casos do banco e do jornal são reveladores e significativos.
A rigor, hoje, apenas reduzidas publicações militares (livros e revistas), alguns sites ou blogs (de associações de militares da reserva e da direita civil) e obras didáticas (adotadas em escolas de formação dos subalternos das Forças Armadas) continuam afirmando que, em 1964, um “movimento revolucionário” teria salvado o país da “ameaça comunista”, livrado as instituições democráticas da “subversão e da corrupção” e criado as condições econômicas para o pleno desenvolvimento do capitalismo no Brasil. A reduzida audiência e a indigência intelectual destas manifestações são notórias.
Para a profunda decepção dos ideólogos civis e militares do regime ditatorial – fato reconhecido em seus ressentidos e amargurados escritos –, hoje é dominante na cultura política brasileira a compreensão de que, há 50 anos, um golpe contra a democracia vigente no país foi um infausto episódio na história do país Este reconhecimento pode ser comprovado por meio de obras qualificadas da historiografia e da ciência política, da produção cultural (literatura, cinema, teatro, música etc.), de matérias jornalísticas, filmes, novelas e minisséries de TV e de um extenso número de sites/blogs jornalísticos e culturais.
Assim, ao contrário do que ocorria durante os governos militares, atualmente, o conjunto da grande mídia brasileira – que teve papel ativo no desencadeamento do golpe e apoio à ditadura militar – não mais comemora o dia 31 de março de 1964.
Por sua vez, quando aludem à data, os noticiários dos grandes meios de comunicação passaram a empregar a noção crítica de “golpe militar de 1964” ou “golpe de Estado” em substituição à apologética designação de “Revolução de 1964”. Atualmente, até mesmo o mais atuante aparelho ideológico da ditadura militar – as Organizações Globo (poderoso conglomerado de empresas reunindo jornais, revistas, rádios e TV aberta e paga) – veicula noticias, documentários, entrevistas e, inclusive, telenovelas com conteúdo crítico ao golpe de 1964 e ao regime militar.
É um fato significativo também que, decorridos 50 anos, não foi produzida uma única obra cultural relevante (na historiografia, na literatura, no cinema, no teatro, na música popular etc.) justificando a ação golpista ou legitimando o regime militar de 1964. Em contraposição, existem dezenas de obras de elevada consistência artística e intelectual, em todos os campos da produção cultural brasileira, que denunciam o golpe contra a democracia e condenam a ditadura militar.
No entanto, se estes fatos são auspiciosos, não devemos nos iludir sobre a extensão desta “vitória” ideológica e cultural; afinal, temos de convir que ainda é altamente insuficiente em nossos país o conhecimento e o debate públicos sobre o golpe de 1964 e a ditadura militar. Embora existam livros, teses acadêmicas, filmes de ficção, documentários, peças de teatro etc. que revelam o clima de terror e a sistemática violência do regime militar (censura, prisões arbitrárias, tortura, desaparecimentos e mortes), apenas os reduzidos setores letrados da sociedade brasileira têm um conhecimento razoável destes sombrios tempos de nossa história política.
Não é, pois, descabido afirmar que a democracia política vigente no país ainda não logrou ser plenamente vitoriosa posto que ela não enterrou, definitivamente, a ditadura militar de 1964. Além de instituições e dispositivos herdados do período militar, cujos efeitos ainda se fazem sentir sobre a atual vida social brasileira, a memória e o conhecimento crítico sobre a ditadura – para significativas parcelas da sociedade brasileira – são frágeis, obscuros e lacunares.
Entendo que as entidades do campo democrático e progressista têm elevada responsabilidade pela fragilidade e inconsistência da memória social sobre a ditadura militar; desde o fim do regime militar, são raras e extemporâneas as iniciativas dos partidos políticos, das organizações de movimentos sociais e entidades culturais no sentido de promoverem um amplo e permanente debate público sobre o golpe de Estado e os efeitos perversos do regime pós-1964. Além das vítimas do regime (que sofreram prisões e torturas) e dos familiares dos mortos e desaparecidos, que setores da sociedade civil brasileira têm se mobilizado para denunciar os crimes e os arbítrios da ditadura militar?
Assim, na falta de mobilizações populares, da ausência de amplos debates públicos e da inexistência de centros de memória e museus públicos sobre os fatos históricos relativos à ditadura militar, têm predominado, entre nós, o silêncio e a cultura do esquecimento. (Sob este aspecto, bem distinta do Brasil têm sido os casos da Argentina e do Chile, pois, ali, a experiência da ditadura militar ainda não cessou e continua influindo sobre os rumos da democratização desses países.)
É de se convir e lamentar que as vitórias simbólicas alcançadas contra os golpistas e sicofantas da ditadura militar, entre nós, estão limitadas ao círculo restrito da cultura política de esquerda.
Caio N. Toldedo é professor aposentado da Unicamp e editor do blog marxismo21.
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