sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Dualidades da América Latina 1. Economia e Classes

Por Cláudio Katz (*)


Na última década a América Latina ganhou economia ou reforçou a sua dependência? Ampliou ou reduziu a sua margem de soberania? Enfrenta a crise econômica global mais protegida ou mais desamparada?

A evolução da América do Sul dá muitos argumentos para as teses da autonomia e o curso da América Central para o diagnóstico da dependência. A mesma contraposição verifica-se se generalizarmos o caminho que segue a Venezuela ou o México. As novas margens da independência da região cobram relevância, quando se acentua a dimensão geopolítica e a reinserção periférica salta à vista, quando se dá prioridade à avaliação econômica.

«Pós-liberalismo» e »consenso de commodities» são dois conceitos que sintetizam as duas vertentes. A primeira noção marca a vigência de uma nova etapa de uma política externa independente, a multiplicação de governos progressistas e o retrocesso da direita (2): O segundo termo ressalta o reforço uniforme de modelos centrados na exportação de bens primários (3)».

Qual é a característica certa? A resposta exige avaliar as grandes transformações econômicas, sociais e políticas registadas na região, durante as últimas duas décadas.


Agro-exportação e minérios

Commodities implicou uma profunda transformação na agricultura, baseada na promoção de culturas de exportação em detrimento do abastecimento local. Em todos os países reforçou-se um empresariado que maneja os negócios rurais com critérios capitalistas de acumulação intensiva. A velha oligarquia encabeçou esta reconversão, numa estreita associação com as grandes companhias do «agrobusiness».

Os pequenos produtores suportam o enriquecimento dos insumos, maior pressão competitiva e crescente transferência de riscos, através de contratos amoldados às regras da exportação. Devem adaptar a sua atividade a novas exigências de refrigeração, transporte e insumos agro-químicos, para gerar produtos amoldados ao marketing global.

Frequentemente endividam-se, vendem a terra e acabam engrossando a massa de excluídos que emigra para as cidades.

Esta pressão para elevar os rendimentos destrói as reminiscências da agricultura não capitalista e dilui as velhas discussões sobre a articulação de modos diversos da produção nesse sector. Sob a disciplina que impõe a exigência externa reduzem-se as fronteiras entre o sector primário e secundário e aumenta a gravitação do trabalho assalariado com modalidades tayloristas.

A soja é exemplo típico deste novo esquema agrícola. Difundiu-se na Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, destruindo outras culturas, mediante um modelo transgênico de semeadura direta e dependência da Monsanto como provedora de sementes. Como requer pouca força laboral para produzir óleo ou alimentos de animais, gera um único emprego a cada 100-500 hectares (4)»

Mas a mesma mutação se verifica noutras regiões e produtos. As frutas e vinhos do Chile obedecem a novos parâmetros de venda externa, que aumentam a concentração rural e multiplicam a subcontratação de trabalhadores temporários. As flores no Equador e na Colômbia cultivam-se com técnicas intensivas de irrigação e exploração elevada da mão-de-obra feminina, desprezando a produção alimentar tradicional. Os novos vegetais de Inverno nas plantações da América Central exportam-se em detrimento da produção tradicional e vão gerando um incremento dramático da importação de alimentos básicos (5).

Esta mesma especialização em exportações primárias verifica-se nos minérios com a nova modalidade de explorações a céu aberto. Para extrair minério dinamitam-se montanhas e as rochas são dissolvidas por meio de compostos químicos (fracking) Como estas técnicas substituem a velha escavação e precisam de maior investimento foi necessária a presença de companhias estrangeiras, que obtêm lucros imensos contra baixas despesas. As empresas do Canadá misturadas com australianas, belgas, suecas e norte-americanas — controlam a maior parte desses empreendimentos.

O Chile é um paraíso dessa atividade, O cobre já não é extraído apenas pela CODELCO estatal. Participam igualmente outras companhias que pagam impostos baixos (7,8%) e obtêm lucros elevadíssimos (50%). O mesmo acontece no Peru, que desenvolveu um projecto de alcance extractivo gigantesco na região de Conga (6).

Esta mineração utiliza volumes enormes de água que afetam os empreendimentos agrícolas e aumentam a contaminação. Reforçam-se assim as calamidades ambientais que a região sofre, ante o desaparecimento dos glaciares andinos, a savanização da bacia amazônica e as inundações costeiras. A extração exportadora acentua todos os efeitos da mudança climática (7).


Retrocesso industrial

O declive industrial é o outro rosto do auge agro-mineiro. O peso do sector secundário no PIB latino-americano desceu de 12,7% (1970-74) para 6,4% (2002-06) e a brecha com a indústria asiática dilatou-se em produção, produtividade, tecnologia, registo de patentes e gastos em Investimento e Desenvolvimento (8).

Este retrocesso é frequentemente identificado com «reprimarização» da economia latino-americana. Mas a indústria não desaparece e é mais acertado apontar a sua readaptação a um novo ciclo reprodutivo dependente. Isso é muito evidente no Brasil e na Argentina, as duas economias mais representativas da industrialização do pós-guerra.

No primeiro país a produtividade decresce, os custos aumentam e o défice industrial externo aumenta, num marco de investimentos parados e infra-estruturas de energia e transporte muito deterioradas. Alguns analistas calculam que o aparelho industrial brasileiro ficou reduzido a metade da dimensão que alcançou nos anos 80 (9).

A mesma regressão verifica-se na indústria argentina, apesar da recuperação registada na última década. Este setor ocupa um lugar menor que nos anos 80 (de 23% a 17% do PIB) e encontra-se altamente concentrado em cinco sectores, com predomínio estrangeiro, importações crescentes e baixa integração de componentes nacionais.

No México, a indústria tradicional, erigida durante a substituição de importações para abastecer o mercado local, foi substituída pelo auge das máquinas nas zonas francas. Esse tipo de fábricas hierarquiza a exportação e opera através de redes adaptadas às normas de acumulação flexível. Começaram com a indumentária e a eletrônica, expandiram-se para o ramo automotriz e já representam 20% do PIB mexicano. Na fronteira dos Estados Unidos situa-se a localização emblemática deste modelo. As 50 fábricas iniciais (1965) multiplicaram-se para 3000 gémeas (2004), instaladas nos dois lados da zona limítrofe.


Ao desenvolverem-se como ensambladoras com reduzida qualificação laboral, estas fábricas contêm muitos riscos da especialização básica que afeta toda a economia latino-americana. O seu principal insumo é a barateza da força de trabalho.

As empresas lucram com o recrutamento de trabalhadores provenientes das zonas rurais e criminalizam a sindicalização. Enquanto a produtividade se assemelha aos níveis vigentes nas casas matrizes, os salários são várias vezes inferiores à média norte-americana e situam-se abaixo do setor agremiado mexicano.

Este alicerce do modelo na exploração laboral é mais visível na nova geração de empresas localizadas na República Dominicana, Guatemala e Honduras. Aí contratam jovens submetidos a uma disciplina agoniante. A pressão para aumentar a produtividade é permanentemente incentivada pela competitividade asiática.


Remessas e turismo

O modelo de especialização em exportações básicas cria pouco emprego, acentua a emigração e gerou nos pequenos países da região um novo tipo de dependência em torno das remessas.

A América Latina é a maior receptora desses fundos, que constituem a principal receita da República Dominicana, El Salvador, Guatemala, Guiana, Haiti, Honduras, Jamaica e Nicarágua. Estas transferências são a segunda fonte de divisas para Belize, Bolívia, Colômbia, Equador, Paraguai e Suriname. Substituíram a primazia do café em El Salvador e a das bananas nas Honduras (10).

Com as remessas estabiliza-se uma situação inédita dual de receitas produzidas num país e consumidas noutro. A força de trabalho remunerada num ponto paga a reprodução de similares noutra zona. A comunicação global e o embaratecimento do transporte criaram um espaço multinacional estável de pessoas que vivem simultaneamente em dois mundos, embora a conexão do imigrante com a sua localidade de origem se mantenha, forjando um duplo padrão de vida em certas comunidades (11).

Este processo potencia a fractura entre países que exportam a população que sobra e economias que absorvem seletivamente esse fluxo. Os movimentos são multidireccionais, mas as regiões abandonadas e os destinos ambicionados são sempre os mesmos, como o provam os 30 milhões de latinos atualmente a viver nos Estados Unidos.

Também o turismo se tornou essencial para a sobrevivência dos pequenos países da região. Este serviço já deslocou as bananas como principal exportação da Costa Rica e é a segunda atividade das Honduras, Guatemala e Caribe. A partir da estandardização das prestações, a América Latina tornou-se atrativa pela sua disponibilidade de força de trabalho barata, os seus ambientes naturais propícios e o seu valioso patrimônio cultural.

O capitalismo neo liberal substituiu as velhas regras do turismo social por critérios individualistas, que naturalizam a divisão entre ricos (com direito a descansar) e pobres (com obrigação de servir). Os meios de comunicação realçam a atração pelo exótico, homogenizam a cultura e transformaram o Terceiro Mundo numa «periferia do prazer».

A classe média acede a estas novas experiências interiorizando os mitos do livre-comércio, sem registar a desigualdade crescente que rodeia este negócio. Ao reavivar o racismo e o elitismo, o turismo global tem um impacto ideológico muito significativo.


Persistência do modelo

A mundialização neoliberal transformou a América latina numa economia com alta centralidade da agro-exportação, minérios e serviços, à custa do desenvolvimento industrial. Mas o mais importante é a continuidade de tendências no período recente da crise global.

Esta persistência obedece ao efeito intermédio do tremor financeiro mundial sobre a região. Tanto no período antes da crise (2003-2008) como na fase posterior (2008-2013), a taxa de crescimento latino-americana colocou-se acima da média internacional. Essa média declinou nos últimos anos sem se tornar irrisória. Rondaria 3,2% em 2013 perante os 3% do ano anterior (12).

Em comparação com os colapsos devastadores sofridos entre 1980 e 2003, a crise teve até agora um efeito limitado sobre a América Latina. Não houve quebras de bancos, nem explosões da divida externa. Essa neutralização foi mais significativa no sul do que centro da região, mas distingue na região a forte recessão registada nos países centrais.

O contraste com a depressão dos anos 30 é ilustrativo. Durante esse colapso as exportações da América Latina declinaram 65% e as importações uns 37%, enquanto o grosso dos países sofreu um desmoronamento financeiro, que os obrigou a suspender o pagamento da dívida externa. Essa queda reverteu com o encarecimento das exportações e a acumulação de reservas que acompanhou a II Guerra Mundial (13).

A continuidade do padrão de especialização exportadora foi também facilitada pelo alto nível de preços que as commodities mantiveram. Essas quotizações caíram em 2008, mas recuperaram rapidamente. A melhoria dos termos de intercâmbio subsistiu, com a triplicação dos preços das matérias-primas registada na última década. O petróleo duplicou a sua quota, o cobre quintuplicou, e a soja subiu duas vezes e meia. Esta apreciação incentivou por sua vez um aumento de 55% do volume exportado (14).

Existem interpretações divergentes sobre as causas desta maré das matérias-primas. Algumas explicações apresentam a incidência dos movimentos especulativo-financeiros, outras caracterizações destacam a expansão dos agro-combustíveis e um terceira opinião considera que a procura chinesa estabeleceu um novo piso de quotizações. Mas qualquer que seja a duração deste processo incentivou o aprofundamento das transformações neoliberais precedentes.

Finalmente, a afluência de investimentos estrangeiros funcionou como determinante da continuidade de tendências. Esses ingressos totalizaram 173.000 milhões de dólares em 2012, superando em 6% os percentuais do ano anterior e duplicando os montantes do princípio da década. Os capitais ingressados e a valorização das exportações facilitarão o aumento das reservas e uma redução do ratio do endividamento (15).

O retrato das últimas décadas e da crise recente corrobora o diagnóstico que sublinha a centralidade das commodities nas economias latino-americanas. Por esta gravitação a região parece menos vulnerável na conjuntura (balança de pagamentos, reservas, dívida), mas aumentou a sua fragilidade estrutural.


As Mudanças para cima

A consolidação da região como exportadora de produtos básicos teve também impacto sobre o perfil das classes dominantes, reforçando a conversão da velha burguesia nacional em burguesia local. O primeiro molde correspondia aos industriais que fabricavam para o mercado interno, com proteção aduaneira e subsídios que privilegiavam a expansão da procura. O segundo perfil é próprio de um sector que já não restringe a sua atividade à manufactura, nem apregoa desenvolvimentos autocentrados. Promove mais a exportação que o mercado interno e prefere a redução de custos à amplitude de consumo.

Esta transformação acentuou o enriquecimento de uma elite de milionários. Alguns apelidos emblemáticos desta ascensão são Slim (México), Cisneros (Venezuela), Noboa (Equador), Santo Domingo (Colômbia), Andrónico Lucski (Chile), Bulgheroni, Rocca, (Argentina), Lemann, Safra, Moraer (Brasil). As suas fortunas remontam ao passado, mas registaram um grande aumento com os negócios de exportação das últimas décadas.

No seu conjunto os capitalistas latino-americanos constituem um sector minoritário da população. Existe um enorme divórcio entre o seu poder e o número dos seus integrantes. Os proprietários e receptores de utilidades das empresas não superam o 1-2% da população econômica ativa. Esta percentagem aumenta 10%, se incluirmos aos executivos e profissionais que administram e controlam a força de trabalho ou exercem um papel estratégico nas companhias. Através dessas funções participam no confisco do trabalho externo (16).

A reconversão das últimas décadas aumentou a concentração e internacionalização dos principais grupos capitalistas que se mantêm como conglomerados regionalizados. Surgiram as novas empresas Multilatinas, a partir de famílias endinheiradas que expandiram as suas companhias, com gerenciamento global e prioridades regionais. Os conglomerados do Brasil e do México encabeçam essa tendência, secundados pela Argentina e Chile.

A diversidade tradicional entre fracções agro-mineiras, industriais e bancárias não desapareceu, mas o entrelaçamento aumentou como consequência da grande pressão competitiva que a mundialização neoliberal introduziu. Essa rivalidade modificou a composição das principais 500 empresas latino-americanas. Entre 1991 e 2001 decaiu a participação de empresas estatais (de 20% a 9%) e aumentou o peso das estrangeiras (27% a 39%) (17).

Os grupos locais reorganizaram a sua atividade com maior financiamento externo e capitalização na bolsa. Esta receita nos mercados de valores coincidiu com o aumento de ações circulantes nos denominados «países em desenvolvimento» (de 80 000 milhões de dólares em 1981 a 5 biliões em 2005). Por essa via aumentou a penetração do capital internacional na estrutura proprietária das empresas latino-americanas.

As companhias atuais são mais poderosas, mas a classe capitalista da região não aumentou o seu papel secundário e perdeu posições perante os novos competidores do Oriente. Esse resultado foi congruente com a sua especialização em ramos básicos e o seu distanciamento das atividades mais elaboradas. Por essa razão a brecha industrial com o Sudeste asiático transformou-se numa fratura irredutível.

A burguesia local estreitou vínculos com o capital estrangeiro, mas não desaparece como um segmento diferenciado. Mantém pretensões de acumulação própria que ultrapassam o marco nacional e se projetam para o cenário regional. Forjaram-se burguesias mais associadas com empresas estrangeiras garantindo um processo que começou nos anos 60 no Brasil, continuou nos anos 80 na Argentina e se consolidou nos anos 90 no México. Este sector deixou para trás o seu início industrial e estendeu-se à agro-mineração e aos serviços (18).

A incorporação recente do México, Brasil e Argentina no G 20 marca outro salto na relação das burguesias atuais com o capital estrangeiro. Mas entre os dois sectores existe uma relação de cooperação antagônica, que combina o estreitamento das conexões com a permanência das diferenças entre o sócio maior do Norte e o empresariado menor do Sul (19).

Embora os negócios com o capital estrangeiro se tenham multiplicado, o país de origem persiste como base de operações, fonte privilegiada dos lucros e centro das decisões das burguesias locais. A internacionalização dos créditos, os mercados, e a propriedade accionaria, não anula o carácter localmente territorializado dos principais grupos capitalistas.


Classificações errôneas

As burguesias locais e associadas que encabeçam a especialização exportadora compartilhando benefícios com as empresas estrangeiras, não formam uma «nova oligarquia». Os riscos pré-capitalistas que caracterizavam esse sector extinguem-se, juntamente com o avanço dos processos de capitalização. As velhas elites latino-americanas que recorriam a modalidades arcaicas de exploração e dominação para usufruir as suas propriedades agro-minerais perdem peso.

Alguns pontos essenciais sublinham o carácter transnacionalizado dos grupos dominantes que optaram por globalizar os seus negócios (20) Mas aqui confunde-se a associação com a fusão, esquecendo que a internacionalização em curso se desenvolve a partir de classe e estados existentes. A mundialização neoliberal não anula essas estruturas, nem sequer elimina o entrelaçamento prioritário entre os capitalistas da mesma origem nacional.

A transnacionalização plena encontra-se por agora limitada a setores cosmopolitas gerenciais ou fracções da alta burocracia dos organismos mundializados.

A propriedade das empresas mantém-se, ao contrário, enraizada em zonas geográficas diferenciadas e os estados nacionais persistem como único instrumento com certa legitimidade para disciplinar os trabalhadores.

As burguesias locais latino-americanas não são satélites manipulados pelas metrópoles. Atuam como classes capitalistas que combinam o usufruto da renda agro-mineira com a mais-valia extraída aos trabalhadores. Comportam-se como classes dominantes e não como capas parasitárias, compradoras ou tributárias do capital estrangeiro. A sua incapacidade para desenvolver a região não implica desinteresse por esse objetivo.

A economia latino-americana está regida por padrões de competição, inversão e exploração. Como essas normas diferem significativamente da pilhagem é uma simplificação utilizar o mote de «lumpen-burguesia» para retratar a burguesia (21)»

Essa denominação só corresponde a sectores que acumulam capital nas margens do circuito legal. O narcotráfico, por exemplo, obtém fortunas na criminalidade e branqueia parcialmente essas receitas em atividades financeiras e produtivas. Mas adapta um segmento marginal e não integrado ao clube estável dos dominadores.

Também é errado generalizar situações próprias dos pequenos enclaves. A América Latina Constitui uma unidade analítica, mas as caracterizações referentes às Honduras ou Panamá não valem para o Brasil. Só nos primeiros casos prevalecem «burguesias neocoloniais» teledirigidas por Washington.

O giro para as commodities torna mais válido o perfil dos opressores latino-americanos. São capitalistas que exploram economicamente os assalariados burgueses que submetem politicamente os trabalhadores e dominadores que subordinam ideologicamente os dominados. Desenvolvem as mesmas funções que os seus pares noutros pontos do planeta.
Mas carregam também a débil autoridade de um sector que não liderou muitas lutas nacionais, não cooptou pessoal significativo à sua dominação e não facilitou a mobilidade das classes médias. Também essas fraquezas aumentaram sob o novo padrão de acumulação de especialização exportadora.


As mudanças por baixo

As transformações da estrutura social latino-americana alteraram também a configuração das classes dominadas. Como um eixo desta mudança se situa no agro verifica-se uma perda de coesão do velho campesinato, afetado pelo crescente êxodo para os centros urbanos. Por essa razão as tensões no agro apresentam outro cariz.

O velho latifúndio que recriava a miséria campesina obstruindo a gestação de uma burguesia agrária, decai perante as empresas capitalistas que despojam o agricultor das suas terras, contratam assalariados precários e forçam a ida para as cidades.

Este deslocamento engrossa a massa de excluídos urbanos com pouco trabalho e ínfimas receitas, num marco de poucas saídas laborais para a população excedente da América Latina. Por isso a informalidade afirma-se como norma, tanto na recessão como na prosperidade das economias extractivas.

A emigração — válvula de escape para os desequilíbrios da acumulação europeia em vários momentos do século XIX e XX — só traz pequenos desafogos no momento presente. Os jovens da região não encontram emprego nos seus países, nem no estrangeiro. Têm simultaneamente vedada a fixação e a emigração.

Uma consequência direta desta exclusão é o aumento exponencial da criminalidade. A narco-economia transformou-se num refúgio de sobrevivência para os sectores empurrados para a marginalidade. Na região regista-se a taxa de homicídios mais alta do mundo. A delinquência cresce junto com a fractura social a promoção obscena dos consumos e prazeres que os enriquecidos desfrutam.

Como o modelo extractivo cria empregos da baixa qualidade, a precarização laboral supera na América Latina as médias dos países centrais. Essa informalidade já não se quer nos circuitos agrários pré-capitalistas, nem na reprodução familiar da força de trabalho. Estende-se junto da penetração do capitalismo em todas as esferas da vida social. Algumas investigações calculam que o sector precarizado reúne 46% dos trabalhadores latino-americanos (22).

Outro dado chave é a extensão da pobreza, que na América Latina transborda para o sector informal. Afecta também os trabalhadores estáveis. A diferença do grosso das economias desenvolvidas, o universo dos indivíduos a receber rendimentos insatisfatórios às necessidades básicas não se limita aqui aos excluídos. Estende-se aos trabalhadores explorados das empresas modernas. O percentual de crianças pobres (46% do total) é ilustrativo deste flagelo (23).

A extensão da informalidade é também consequência das maquias e da regressão industrial. No cenário manufactureiro regional a aceleração da mudança tecnológica aumenta a segregação entre trabalhadores especializados e desqualificados. Os cargos estatais com protecção social decresceu em comparação com os trabalhos sem qualquer segurança. A magnitude desta fractura é o risco contrário do mercado laboral. O típico operário masculino e sindicalizado do pós-guerra tende a ser substituído por trabalhadoras femininas mais flexibilizadas. Este declive dos sectores formais é maior nas maquias. A própria ampliação da classe trabalhadora industrial perdeu o ímpeto anterior. O proletariado fabril não se extingue mas a sua incidência diminuiu. No modelo atual de exportações primárias persiste a habitual estreiteza da classe média latino-americana comparada com os países avançados. Este segmento continua com um colchão muito estreito, o abismo que separa os empobrecidos dos ricos. De resto perdura a velha classe média perante os novos segmentos dessa categoria. Subsistem muitas franjas de pequenos comerciantes e pouco aumentam os profissionais ou técnicos altamente qualificados. Este infra desenvolvimento está de acordo com a estreiteza da indústria. Certamente os sectores médios ampliam o seu consumo com a amplificação do crédito, a publicidade e a chegada das grandes cadeias comerciais. Mas em economias tão pequenas como a exportação de produtos básicos, os cimentos produtivos do poder aquisitivo são muito frágeis.

Muitos analistas destacam também a redução da pobreza, o desemprego e a desigualdade durante a última década, sem registar o pouco alcance de uma melhoria derivada da maré cíclica do nível de atividade.

A parte mais movediça tem sido a generalização da assistência social para auxiliar a pobreza. Mas os auxílios oficiais só transitoriamente protegeram os desamparados, sem alterar as causas do problema. Estes planos coexistem com a precarização e confirmam a segmentação laboral.

Por outro lado, a leve diminuição da desigualdade não modifica o lugar que ocupa a região no topo dos indicadores globais de iniquidade. O coeficiente de Gini que mede esta polarização supera na zona (51,6) a média mundial (39,5), duplica as médias das economias avançadas e inclui os quatro países que encabeçam o barômetro mundial (Colômbia, Bolívia, Honduras, Brasil). A receita dos 20% mais ricos da população latino-americana supera quase 20 vezes os 20% mais pobres (24).


Explicações com problemas

O diagnóstico pós-liberal não condiz com o contexto econômico atual da América Latina. Em toda a região prevalece um esquema de especialização produtiva, baseado na agro-exportação, a mineração a céu aberto, o declive da indústria tradicional, as remessas e o turismo. Este molde implica uma generalizada reinserção periférica ou semiperiférica na divisão internacional do trabalho.

Em consonância com estas tendências surgidas durante o neoliberalismo reforçou-se a transformação das burguesias nacionais em burguesias locais, mais internacionalizadas e associadas ao capital estrangeiro. A mesma mudança aumentou o êxodo campesino, a precarização laboral, a marginalidade urbana e a debilidade da classe média.

Esse cenário está mais de acordo com a visão contrária de uma «economia de commodities em toda a América Latina. Mas esta segunda caracterização, não é puramente descritiva, visto que postula a existência de «consenso» em torno do extrativismo. Ultrapassa portanto, o retrato da economia e tem implicações políticas, que exigem a avaliação do que ocorreu na esfera geopolítica e governamental. Desenvolvemos exata análise na segunda parte do texto.


Resumo

A validade dos conceitos Pós-liberalismo e Consenso de commodities dilui-se analisando as transformações da região. O capitalismo alargou-se ao agro e a mega-mineração amplia-se, acentuando a preeminência das exportações básicas. A indústria abastecedora do mercado interno retrocede perante as maquias, as remessas são um recurso de sobrevivência e o turismo é uma receita-chave para os países pequenos. Estas tendências econômicas foram reforçadas desde o início da crise global.

A burguesia nacional que privilegia a procura foi substituída pela burguesia local, que hierarquiza o embaratecimento dos salários. O seu carácter minoritário consolida-se com a associação a empresas estrangeiras. Extinguem-se os seus riscos pré-capitalistas e não aceitam novas oligarquias. Mantém as suas bases de acumulação sem se transformar num grupo transnacionalizado. Só fracções marginais aglutinam uma lumpen-burguesia e a dependência neocolonial não se alarga aos países médios.

A expansão da informalidade, o êxodo campesino e o estancamento da nova classe média reconfiguram as classes dominadas, num quadro de pobreza, desemprego e desigualdade. O cenário económico não está de acordo com o diagnóstico pós-liberal, mas a tese contrária deve ser avaliada juntamente com a dimensão política.


______________________-
(*) Economista, investigador, professor, membro do EDI (Economistas de Esquerda). A página web é: www.lahaine.org/katz
(2) É a visão de Sader Emir, «A crise da direita latino-americana», 05-12-2013
(3) É a opinião de Svampa Maristelal, «O consenso de commodities e linguagens de valoração na América Latina», 02-05-2013,www.iade.org.ar/modules/noticias.
(4 ) Katz Cláudio, «O agro-capitalismo da soja», Anuário EDI, n. 4, ano de 2008, Buenos Aires
(5) Uma descrição em: Robinson William J, A América Latina e o capitalismo global: uma perspectiva crítica de globalização, John Hopkins University Press, Baltimore, 2008, pág. 58-101.
(6) Ver: Gudynas Eduardo, «Cinco hipóteses sobre o caso Conga», brecha.com.uy., 17-7-2012
Também Hernandez Navarro Luís, «A reinvenção da América Latina», 26-12-2013, alainet.org/active.
(7) CEPAL, «A economia da mudança climática na América latina e no Caribe», Sintesis 2010, www.eclac.cl.
(8) Rodrigues, José Luís, «As alternativas actuais da industrialização na América Latina», segundo semestre 2012,www.espaciocritico.com.
(9) Palma Gabriel, «Optar pelo desenvolvimento», Página 12, 15-7-12.
(10) As remessas geraram um negócio lucrativo para as agências de intermediação (Western Union, Thomas Cook, MoneyGram). A região acompanha aqui umas tendência mundial, embora as transferências para os países em desenvolvimento passassem de 332.000 milhões de dólares (2010) para 372.000 (2011), em 2013 vão a 399.000 e 467.000 (2014) Wall Street Journal, «As remessas ajudam os países emergentes», 24-9-2012, online.wsj.com.
(11) Ver: Anderson Benedict, «Êxodo», Critical Inquiry n.2 Winter, 1994.
(12) Ver: Ugarteche Óscar, «As três velocidades da crise», 03/05/2013, Pagina 12.
(13) Ver: Guerra Vilaboy Sérgio, Breve História da América Latina, Havana., Ciências Sociais, 2006, pág. 163-165.
(14) Arriazu Ricardo, «Pequenos sinais de alerta», 27-01-2013, Clarin.
(15)Naim Moisés, «A latino-americanização da Europa», La Nacion, 6-11-11. Também Clarin, 27-01-2013.
(16) Ver: Portes Alejandro. O Desenvolvimento futuro da América Latina: neoliberalismo, classes sociais e transnacionalismo, Ediciones Antropos, Bogotá, Maio de 2004, cap. 1.
(17) Santiso Javier, «A emergência das multilatinas», Revista CEPAL 95, Agosto 2008
(18) O giro implicou uma subordinação maior da burguesia nacional ao capital estrangeiro e consequente renúncia a aumentar transformações progressistas, no balanço que Dos Santos Theotonio apresentou. A teoria da independência um balanço histórico e teórico, nos desafios da globalização, UNESCO, Caracas, 1998.
(19) Esta caracterização foi antecipada por: Marini Ruy Mauro, «A dialéctica do desenvolvimento capitalista no Brasil», Subdesenvolvimento e revolução, Siglo XXI, 1985.
(20) É a visão de Robinson William J. A América Latina e o capitalismo global, pág. 176-178.

(22) Portes O desenvolvimento futuro, cap. 1 e 4
(23)Ver CEPAL-UNICEF, «Boletim Desafios» n. 10, Maio 2010, www.oei.es/noticias/
(24) Guillemi Ruben, América latina a região mais desigual, www.lanacion,com.ar 22/09/2012

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