por Ciro Flamarion Cardoso
Resumo: Todas as ciências sociais e humanas têm em comum o mesmo objeto: o ser humano em sociedade. Existem, entretanto, diferenças entre elas; e alguns critérios ajudam a perceber a diversidade de opinião que existe sempre no seio dos estudos sociais. Vamos escolher partir de dois deles. Toda conduta humana, seja individual, seja coletiva, pode ser apresentada como o resultado final de dois processos de seleção. O primeiro é a passagem pelo filtro definido pelo conjunto de limitações estruturais sobre as quais os agentes não tenham controle que reduz as possibilidades alternativas de agir, de seu número teórico a um conjunto menor de ações efetivamente possíveis. E o segundo é outro filtro, o do mecanismo que leve a escolher, dentre as ações factíveis remanescentes, qual será realizada. Os estudos do social sempre encontraram diante de si um problema crucial. De modo didático, o dilema envolvido pode ser definido como uma alternativa entre: abordar o social: privilegiando o ângulo material e das ações que os homens efetivamente realizam; ou fazê-lo dando maior importância ao ângulo mental. Ninguém nega o caráter inseparável do material e do mental. Nenhuma ação individual ou coletiva poderia exercer-se sem estar referida ao mesmo tempo a um projeto, ou a uma ideologia, ou a um mito, etc., que tenha curso na sociedade de que se trate. E, simetricamente, uma instituição qualquer.
Palavras-chave: Ciências Sociais e Humanas; Mundo em mudança; História; Pós-modernismo; Universidade.
Prolegômenos: alguns dos critérios que, de um modo geral, podem explicar divergências no modo de perceber o social
Todas as ciências sociais e humanas têm em comum o mesmo objeto: o ser humano em sociedade. Existem, entretanto, diferenças entre elas; e alguns critérios ajudam a perceber a diversidade de opinião que existe sempre no seio dos estudos sociais. Vamos escolher partir de dois deles.
1) Toda conduta humana, seja individual, seja coletiva, pode ser apresentada como o resultado final de dois processos de seleção. O primeiro é a passagem pelo filtro definido pelo conjunto de limitações estruturais - sobre as quais os agentes não tenham controle - que reduz as possibilidades alternativas de agir, de seu número teórico a um conjunto menor de ações efetivamente possíveis. E o segundo é outro filtro, o do mecanismo que leve a escolher, dentre as ações factíveis remanescentes, qual será realizada. As ciências humanas e sociais sóem apresentar tendências contrastantes ao considerarem estes dois processos de seleção. O economista, ao aceitar ordinariamente uma teoria da escolha racional, costuma negligenciar (ou minimizar) em muitos casos o primeiro e a concentrar-se no segundo (aliás, partirá da suposição de que as preferências dos seres humanos sejam no fundamental idênticas ou similares, independentemente dos períodos da História e dos tipos de sociedade). O historiador, o antropólogo e muitos dos sociólogos, pelo contrário, concentrar-se-ão no primeiro filtro ou processo, sublinhando coisas como cultura, ideologia, tradição ou valores. Os indivíduos ou grupos que agem são considerados pelo economista como se fossem atraídos por distintas recompensas, ao decidirem entre formas alternativas de agir; por outros cientistas sociais, como se fossem impelidos a dadas escolhas. De certo modo, a atitude dos economistas baseia-se na intencionalidade; a de outros cientistas sociais, freqüentemente, na causalidade cultural ou estrutural.
As duas atitudes contrastantes parecem ter a ver com a diferença estabelecida certa vez por Claude Lévi-Strauss entre o que, naquela ocasião, propôs chamar de ciências humanas (como a Antropologia ou a História: aquelas que se interessam pelas formas variáveis das estruturações sociais, por múltiplas sociedades) e de ciências sociais (as que, como a Economia, se instalam, para efetuar seus trabalhos, num único tipo de sociedade).
2) Os estudos do social sempre encontraram diante de si um problema crucial. De modo didático, o dilema envolvido pode ser definido como uma alternativa entre: 1. abordar o social: privilegiando o ângulo material e das ações que os homens efetivamente realizam; 2. ou fazê-lo dando maior importância ao ângulo mental. Obviamente, os dois ângulos mencionados são íntima e até mesmo inextricavelmente ligados, mas não há dúvida de que a alternativa indicada existe e podem achar-se estudos (a maioria deles, na verdade) que enfatizem seja um ângulo, seja o outro.
No primeiro caso, sublinha-se aquilo que todo sujeito individual ou coletivo já acha diante de si na sociedade em que vem a existir (os objetos, a língua, a divisão do trabalho, etc.; em resumo, aquilo que determina o enquadramento instrumental de sua ação), bem como as ações individuais ou coletivas mesmas, as práticas pelas quais tal sujeito participa na perpetuação, reprodução e reinvenção permanentes do social.
Caso a preferência recaia no ângulo mental, perceber-se-ão centralmente a religião, as ideologias, a interpretação dos símbolos, etc.; aquilo, portanto, que é pensado; mas também o impensado social (sonhos, mitos, o inconsciente ou não-consciente coletivo).
Como se afirmou, ninguém nega o caráter inseparável do material e do mental. Nenhuma ação individual ou coletiva poderia exercer-se sem estar referida ao mesmo tempo a um projeto, ou a uma ideologia, ou a um mito, etc., que tenha curso na sociedade de que se trate. E, simetricamente, uma instituição qualquer (igreja, escola, justiça, por exemplo) se caracteriza tanto pelos gestos e práticas materiais ritualizadas que exige quanto pelas representações que supõe. Nas palavras do sociólogo Claude Javeau:
A dialética do material e do mental tem, em seu centro, a linguagem, já que esta contém tanto ação quanto representação, pelo qual permite formular, melhor do qualquer outro elemento do social, as relações entre idéia e ação na consciência social.
O debate acerca de tendências intelectuais costuma ser uma discussão de posições minoritárias. Minoritárias mesmo nos ambientes universitários. Assim, por exemplo, na década de 1950 e na seguinte, até 1968, na França, com enorme influência sobre outros países, inclusive o Brasil, tomara corpo uma forma eclética (mistura de tendências heterogêneas) de pensar acerca do mundo de nosso século, a qual mesclava elementos de várias correntes intelectuais contemporâneas: aquelas derivadas de Karl Marx, Sigmund Freud e algumas correntes filosóficas (existencialismo, fenomenologia alemã).
A visão resultante insistia na idéia de alienação: os seres humanos vivem numa sociedade e dentro de relações sociais que evidentemente eles mesmos fizeram, mas que lhes parecem estranhas e hostis, como se fossem uma coisa "lá fora", sobre a qual os homens não tivessem controle. Conforme predominasse algum dos ingredientes da mistura num certo autor, a alienação parecer-lhe-ia resultar: seja do capitalismo, sistema em que o trabalho humano se processa de maneira a produzir objetos que se separam do interesse e do controle dos produtores diretos para se transformarem em coisas que se vendem e compram, em mercadorias, tanto ao tratar-se de trabalho que resulte em objetos materiais quanto do trabalho intelectual; seja do naturalismo científico (isto é, de uma visão do mundo e das coisas que se limite à ciência e aos elementos racionais) predominante no pensamento ocidental; seja de costumes sociais repressivos, ou da vida social uniformizada pela publicidade e pelos meios de comunicação de massa ou, ainda, burocratizada por um poder estatal poderoso demais.
A libertação da alienação, por sua vez, podia ser vista como: a reconstrução revolucionária da vida social e do poder estatal; a criação de uma nova cultura moral não-repressiva; ou o fato de cada um abrir-se às suas experiências e vivências individuais mais autênticas, que estavam sendo ocultadas ou reprimidas pelo conformismo resultante da massificação, por exemplo.
Os intelectuais franceses mais influentes, nessa corrente heterogênea baseada numa mistura de tendências, foram, provavelmente, os filósofos Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Maurice Merleau-Ponty (1908-1961). Por outros caminhos, idéias no fundo bastante compatíveis com as deles estavam sendo defendidas, na América do Norte, pelo canadense Marshall McLuhan (1911-1980), ou por um membro da mal denominada "Escola de Frankfurt", Herbert Marcuse (1898-1979). Ora, nem estes nem os outros nomes ligados à tendência mencionada foram jamais os elementos dominantes, numericamente ou quanto ao poder efetivo de que dispusessem, nas universidades e em outras instituições acadêmicas de qualquer país. Mas sua influência foi bem maior e mais duradoura do que a daqueles que de fato detinham, nelas, mais postos de mando e controle institucional.
Mais visivelmente a partir de 1968, este modo hegemônico de ver as coisas no relativo ao social sofreu críticas contundentes e foi profundamente abalado. A primeira razão para o entender é constatar que o mundo mudara.
Um mundo que se percebe em mudança
A partir dos anos 1955-1965, as tendências mais salientes da situação que hoje percebemos já começavam a estar visíveis. Aquela década, situada no interior de um período de grande expansão da economia capitalista mundial (1947-1973), prova, com efeito, pela leitura de textos nela produzidos, que certos elementos, recentes ou surgidos então pela primeira vez, foram percebidos, corretamente, como prenúncios de mudanças muito profundas na ordem das coisas, no modo como os seres humanos viviam, pensavam, se pensavam e comunicavam.
Naqueles anos, algum tempo após a construção de um protótipo famoso mas cujo impacto sobre a consciência coletiva não foi de pronto muito grande, os computadores começaram a mostrar seu poder de transformar múltiplos aspectos do mundo contemporâneo. A pílula anticoncepcional simbolizava o início de um divórcio possível entre as idéias de procriação e de prazer sexual - falou-se, até, de "revolução sexual" - , bem como tornava mais visível a presença de profunda crise da moral tradicional, ao passo que nenhuma alternativa viável a ela estava à vista. Por caminhos diferentes, a difusão da televisão (em especial no que implicava quanto à universalização de expectativas de consumo pela publicidade e ao telejornalismo com reportagens instantâneas ao vivo) e o começo do transporte comercial de passageiros em aviões a jato evidenciaram que o mundo estava se tornando mais comunicado e, portanto, "menor" e menos heterogêneo do que antes. Em 1957, iniciava-se a era espacial, que, no que teve de mais influente e durável até agora, revolucionaria as comunicações através das transmissões por satélite, afetando tanto a televisão quanto a telefonia. Nos Estados Unidos, já era perceptível, pela primeira vez na história, que os trabalhadores dos setores de serviços e gestão se haviam tornado mais numerosos do que os operários das fábricas e os trabalhadores da agricultura e das minas, o que logo viria a acontecer também em muitos outros países. Em regiões que haviam sofrido em suas economias todo o impacto da Segunda Guerra Mundial, mas também nos Estados Unidos, tornara-se evidente que as mulheres, crescentemente inseridas no mercado de trabalho, reivindicavam eqüidade e maior participação nos diversos aspectos da vida econômica, política e social.
Também se notava, naquela década, que a cada ano novas colônias ganhavam independência política e entravam para a Organização das Nações Unidas, caracterizando o esfacelamento dos impérios coloniais tradicionais e a necessidade de que fossem estabelecidos novos padrões nas relações entre países desenvolvidos e menos desenvolvidos, mesmo porque muitos destes últimos, nações recentemente independentes, trataram de formar, na ONU e fora dela, um "bloco neutralista" independente dos dois grandes blocos em que a Guerra Fria partilhava o mundo, o ocidental, liderado pelos Estados Unidos, e o socialista, sob a égide da União Soviética e agora contando com vários outros países, inclusive a China: a conferência de Bandung, de 1955, simboliza esta tentativa - na verdade efêmera, mas de grande impacto - dos novos países africanos e asiáticos no sentido de terem uma posição política própria. Por fim, a década em que no momento nos centramos marcou o auge do movimento dos negros norte-americanos pela igualdade civil, o que teve grandes conseqüências - não somente nos Estados Unidos, nem só no tocante aos negros.
No conjunto, tais transformações, algumas delas mais perceptíveis de início nos Estados Unidos, significaram uma reformulação em profundidade dos conceitos de tempo e espaço.
Quanto ao tempo, sentiu-se que havia uma aceleração dele: não somente as coisas estavam acontecendo rapidamente demais, como também o acesso crescente a uma informação instantânea aumentava a vertigem. Alteravam-se, concomitantemente, as relações entre as gerações - num mundo onde as transformações se dão a um ritmo alucinante, os velhos deixam de ser os depositários do conhecimento que eram tradicionalmente, já que sua experiência acumulada é tornada irrelevante por mudanças rápidas e profundas demais - e com a história: o mundo do presente parecia tão diferente do de antes que qualquer correlação com o passado dava a impressão de não fazer sentido. É óbvio que esta impressão se baseava numa visão parcial demais das coisas, pois em muitíssimos aspectos o passado continua conosco apesar de todas as novidades: é o caso, por exemplo, dos fundamentalismos religiosos, muçulmanos, iugoslavos, irlandeses, etc.
Quanto ao espaço, por um lado, como já mencionamos, o tipo de relação tradicional do mundo desenvolvido europeu e norte-americano com o resto do planeta, marcado pelo mito da superioridade inerente do homem branco, pelo racismo e por diversas outras formas de segregação e discriminação, tinha de mudar na nova era da descolonização e do que veio a ser chamado de neocolonialismo. Por outro lado, se tradicionalmente as culturas diferentes, por definição consideradas inferiores, eram outrora vistas pelos brancos dos países mais ricos e desenvolvidos como estando situadas em outraspartes do mundo - a América ao sul dos Estados Unidos, a África, a Ásia, a Oceania - consideradas "exóticas", esta visão das coisas foi abalada cada vez mais por diversos fatores.
A prosperidade japonesa e depois a dos chamados "tigres asiáticos" - Cingapura, Formosa (Taiwan), Coréia do Sul e Hong Kong (reintegrada recentemente à China) - ameaçavam tal modo de ver, bem como as iniciativas políticas do neutralismo ou a exportação da revolução por Cuba: eis agora amarelos, outrora considerados inferiores, adquirindo níveis de desenvolvimento capitalista que em diversos setores faziam inveja aos Estados Unidos e à Europa ocidental; ou negros e amarelos que ousavam ter uma política externa própria e comum; ou ainda, latinos que ameaçavam a hegemonia dos Estados Unidos em seu próprio quintal. Mas também estavam acontecendo: as reivindicações feministas, denunciando a discriminação de uma metade da humanidade pela outra, em diversas modalidades e graus, mas em todo o mundo; a posta em evidência da situação dos negros e outras minorias étnicas nos Estados Unidos, o que também viria a ocorrer na Europa ocidental através da imigração maciça de asiáticos, africanos e caribenhos, com suas múltiplas conseqüências sociais. Temos aí processos que serviram para demonstrar que "o outro", aquilo que é diferente e exige eqüidade, estava também dentro dos países economicamente avançados da Europa e da América do Norte.
As mudanças começaram a ser percebidas, como mencionamos, em 1955-1965, desembocando essa percepção e o mal-estar resultante, agindo em conjunto com outros fatores específicos de tipo nacional, em múltiplos e heterogêneos movimentos de protesto nos Estados Unidos e na Europa em 1968. Aquelas transformações são vistas por muitos autores como configurando algo profundo ao ponto de significar o fim de uma era multimilenar da história: segundo alguns, a que foi inaugurada pelos inícios da agricultura e da criação de gado; segundo outros, a que teve início com o surgimento das primeiras cidades no que é hoje o sul do Iraque, por volta de 3200 a.C.
Exemplos de respostas de direita, conservadoras, às mudanças históricas mencionadas
Mencionemos, para começar, um grupo de intelectuais que surgiu claramente só na década de 1970, o qual foi batizado pelo liberal Michael Harrington com a designação "os neoconservadores" (em inglês comumente resumida como neocons). Trata-se de uma corrente que não deriva de alguma das tendências tradicionais do conservadorismo estadunidense, mas, sim, constituiu-se integrando pessoas de horizontes muito diferentes: bom número de judeus migrados da Europa Central que anteriormente haviam tido posições de esquerda, alguns anarquistas, sobretudo numerosos liberais que, diante do que viram como a "ingovernabilidade" dos Estados Unidos na década de 1970, tomaram posição a respeito denunciando como problemas a impotência do Estado para continuar satisfazendo as expectativas "exageradas" do cidadão médio, a crise do mesmo Estado em função, em especial, das políticas de bem-estar e seguridade social desenvolvidas e ampliadas desde a era Roosevelt, por fim a crise moral e espiritual do país manifestada no abandono dos valores tradicionais e numa educação corrompida. Além de um forte anticomunismo, o que unia os neoconservadores - em outros aspectos bastante variados em suas crenças e posições - era, por um lado, a preconização de uma receita neoliberal para os Estados Unidos, com a redução do Estado (mediante privatizações) e cortes nas despesas sociais, por outro lado, tomarem posição contra o que consideravam como um exagero dos ideais democráticos (à luz, por exemplo, de sua indignação diante do que chamavam de "excessos" cometidos nos protestos norte-americanos contra a guerra do Vietnã) e pretenderem uma renovação espiritual e moral da nação mediante uma retomada da tradição e da hierarquia.
Entre os neoconservadores mais influentes estavam o filósofo político Leo Strauss, o cientista politico Francis Fukuyama (do Departamento de Estado de 1981 até 1990), Allan Bloom, Seymour Martin Lippset (conhecido cientista social), Daniel Bell - que prenunciou algumas das teses de Fukuyama ao provocar famoso debate sobre o "fim das ideologias" nas décadas de 1960 e 1970 - , Irving Kristol e, considerando-se aqueles que ocuparam cargos políticos importantes, Zbigniew Brezinsky e Jane Kirkpatrick. Diversas revistas serviram de fórum à difusão das teses neoconservadoras (entre outras: Commentary, Encounter, National Review).
Existiu uma correntefrancesa no fundo bastante similar ao neoconservadorismo estadunidense por tratar-se, essencialmente, da proclamação do fim das ideologias associado à vitória da democracia liberal - , conhecida como "discurso do consenso", perceptível em três obras que tiveram grande influência e enquadraram o auge das posições neoconservadoras na França, provavelmente atingido nos anos 1984-1994: falamos de Les lieux de mémoire, coordenado por Pierre Nora ou, mais exatamente, de algumas das contribuições a essa volumosa obra publicada em 1984; de um livro coletivo de 1988 sobre "o fim da excepcionalidade francesa"; e de um escrito de Marc Augé acerca da "Antropologia dos mundos contemporâneos", surgido em 1994. No ano seguinte, os movimentos de massa franceses de novembro e dezembro de 1995 puxaram o tapete de sob os pés dos proponentes da corrente de que falmos, silenciando-a.
Os mencionados pensadores franceses conservadores (ou mais exatamente neoconservadores, embora sem a conotação ideológica especificamente norte-americana do termo) acreditaram, naqueles anos, ter-se chegado na França a um consenso no sentido de existir uma relação necessária entre economia de mercado e democracia representativa: desde então, por um lado a diferença entre direita e esquerda teria perdido o sentido, na era da morte das ideologias; e, por outro, os franceses, que anteriormente reivindicavam o caráter universal da Revolução de 1789 e assim "universalizavam" sua própria História nacional, teriam dado fim a tal excepcionalidade, comportando-se doravante como os cidadãos das outras democracias desenvolvidas. Esta tese do consenso, dramaticamente desmentida nas ruas pelos acontecimentos do final de 1995 e pelas eleições de 1996, tinha todos os ingredientes de um "fim da História" à maneira de Fukuyama: algo grande e importante terminara entre os humanos e, se ainda existiriam, naturalmente, eventos, tratar-se-ia em todo caso de uma história menor, não da História pautada pelos conflitos ideológicos. Como sempre, porém, a própria História enterrou seus pretensos coveiros...
Falarei, agora, de visões utópicas e afirmativas, de corte conservador, que tiveram bastante mais difusão, nos Estados Unidos mas também no resto do mundo. O caráter social e politicamente conservador das posições de que se tratará agora não é duvidoso, por mais que as pessoas que propuseram as teorias em pauta se apresentem como defensoras de uma nova civilização que encaram como um progresso para toda a humanidade. O último livro de Alvin e Heidi Toffler foi prefaciado por Newton Gingricht, líder republicano ultraconservador do Congresso dos Estados Unidos alguns anos atrás. E, em seu prefácio, ele menciona que os Toffler, de que é amigo íntimo há mais de vinte anos, foram, nos anos 1980, chamados a assessorar o Comando de Treinamento e Doutrina do Exército dos Estados Unidos (coisa que também fez o próprio Gingricht), de um modo que, suponho, pode ter influído nas modalidades de guerra aplicadas em 1991 contra o Iraque. Por outro lado, no caso de um autor como John Naisbitt, é evidente o caráter de aberta apologia do capitalismo na era do que ele chama de paradoxo global - uma mundialização econômica que ao mesmo tempo se traduz na terceirização e descentralização que favorecem empresas pequenas e médias eficientes, bem como a autonomia dos indivíduos. Por exemplo, em frases como estas da conclusão de um livro que escreveu com Patricia Aburdene:
Não há dúvida, entretanto, de que autores como estes proponham teorias bastante globais e integradas do social, que pretendem sejam válidas para o presente e para o futuro previsível.
Sua visão - coerente em linhas gerais mas com variantes de autor a autor - parte da noção de que estamos vivendo o nascimento de uma nova civilização, cuja tônica é a "vitória do indivíduo"; e, ao mesmo tempo, num paradoxo apenas aparente, vivemos a era da "mundialização" ou "globalização". Como somos a última geração de um mundo em desaparecimento e a primeira de outro que surge, sofremos conflitos, incertezas, perplexidades, coletiva bem como individualmente.
A percepção dessa nova civilização poderia remontar, nos Estados Unidos, à década de 1955 a 1965: pela primeira vez, então, os trabalhadores de serviços e de gestão tornaram-se mais numerosos que os operários e os trabalhadores primários (da agricultura, das minas). O computador se difundia naquela época, como o transporte comercial por aviões a jato, a pílula anticoncepcional, etc. Como já vimos, nos anos 1970 o declínio da civilização ligada às revoluções industriais seria já visível. E, nestes últimos anos, os indicadores não poderiam ser mais claros. Em 1989 havia, nos Estados Unidos, uns quinze milhões de negócios operados em tempo integral de casa. E em 1995, cerca de trinta milhões de norte-americanos trabalhavam em casa total ou parcialmente, graças ao computador, ao telefone celular, ao fax. Também em 1995, a exportação de serviços e propriedade intelectual (patentes) foi igual, naquele país, à soma das exportações de artigos eletrônicos e de carros. Três quartos da força de trabalho estão lá nos serviços e nas atividades "supersimbólicas" (ou seja, vinculadas à informação, ao conhecimento). Desde os anos 1970, em modalidades variáveis, as mesmas tendências percebem-se no resto do mundo desenvolvido.
Os Toffler falam, a respeito, de uma "terceira onda". A "primeira onda" foi a Revolução Agrícola superando a caça-coleta: levou milhares de anos para firmar a "civilização da enxada". A "segunda onda" foi a da civilização industrial ou da "linha de montagem", que se impôs em menos de trezentos anos. E a "terceira onda" é a da "civilização do computador": dos que hoje vivem, muitos constatarão a sua vitória nas próximas décadas.
Por enquanto, as três civilizações coexistem no planeta. As sociedades da primeira onda provêem produtos primários: matérias-primas agrícolas e minerais. As da segunda onda proporcionam trabalho barato e produção massificada. As da terceira onda possuem novos modos de criar e explorar o conhecimento e a informação - isto é, algo intangível em comparação com os fatores de produção que os economistas costumam considerar: capital, matérias-primas, terra, trabalho etc. Na verdade, informação e conhecimento substituem crescentemente o capital e os demais recursos, cortando custos. Assim, por exemplo, quanto a um programa de computador dirigindo uma máquina-robô que corta aço: conseguem-se mais peças com a mesma quantidade de matéria-prima do que se fossem cortadas por operadores humanos. A manipulação genética e molecular cria novos materiais menos volumosos e mais leves, ao que a miniaturização também contribui - o que se traduz em menores custos de produção, armazenagem e transporte; ainda mais porque, paralelamente, estabelece-se uma informação rápida (até minuto a minuto, se for preciso) da relação estoque/fluxo de materiais ou produtos prontos, graças à informática. Ao mesmo tempo que o conhecimento se torna o recurso principal e mais remunerado, o tempo revela-se um recurso econômico também central em função da aceleração do ritmo da inovação, dos investimentos, das transações. A competição é intensa e há redes computadorizadas que movem capitais instantaneamente - capitais que migram sem dificuldade entre setores e países. Se o dinheiro se move à velocidade da luz, a informação, idealmente, teria de andar ainda mais depressa!
Em tais condições, torna-se economicamente viável a desmassificação da produção. O comprador de um carro Volvo, nos Estados Unidos, pode escolher entre 20.000 possibilidades para criar o seu "veículo ideal". É o triunfo do consumidor, num mercado que não é mais global nem mesmo segmentado, mas sim, atomizado: são indivíduos ou famílias comprando por mala direta, pela TV, pela Internet.
Tudo isto exige uma infra-estrutura crescente de meios de comunicação avançados: computadores ligados em redes, estas em redes maiores; telefonia celular; fax. E, na gestão, obriga à terceirização -triunfo das empresas pequenas e médias eficientes e inovadoras - , à descentralização, à reengenharia empresarial, à iniciativa dos empregados em equipes pequenas; também conduz à remuneração altamente diferenciada do trabalho, em lugar de todos ganharem o mesmo, como era o ideal do sindicato tradicional.
No limite, poder-se-ia imaginar a humanidade toda - mas uma humanidade feita de indivíduos autônomos - ligada entre si mundialmente pela Internet e por outros meios. Seria já possível, no mundo desenvolvido, iniciar a eliminação das grandes cidades, descentralizando residências, produções, gestão, sem qualquer perda de contato ou informação.
Esta visão configura, claro, uma tendência altamente idealizada ou ideológica, através de insistentes imagens que enfatizam o indivíduo livre, criativo, totalmente informado e que não sofre ao que parece a interferência de fatores mais amplos - ideologia de classe, publicidade, propaganda política, socialização no interior de certos valores desde a infância etc. Uma das imagens preferidas é a daautoprogramação individual da cultura, da instrução e do lazer pelo uso da televisão a cabo interativa, do videocassete, da multimídia, da obtenção de dados por fax etc. Insiste-se em que indivíduos, mais do que grupos ou instituições, é que são ligados pelos novos meios de comunicação.
Ao contrário do utopismo aberto de Naisbitt, os Toffler - mais próximos de fato do círculo de poder vinculado aos novos interesses e pela mesma razão mais realistas - percebem sombras no quadro, mas são, a respeito, adeptos da Realpolitik: o parto de uma nova civilização nunca é indolor, mas o custo social vale a pena. Em todos esses autores, a brutal e acelerada concentração da renda, ou está ausente das análises, ou aparece como algo inevitável; o mesmo quanto aos homeless; o desemprego maciço é visto como problema passageiro que só será resolvido por políticas afinadas com os novos tempos, nunca pelas do Welfare state -um dinossauro da segunda onda.
Os Toffler acham que será impossível uma coexistência pacífica da segunda e da terceira ondas no âmbito mundial: são duas civilizações a enfrentar-se. com necessidades radicalmente contrastantes e ideologias também opostas. O "ultranacionalismo" é próprio dos países que ainda não completaram a segunda onda e dificilmente poderiam atingir a terceira na sua plenitude; a ele se oporia uma "consciência planetária", uma ideologia de "cidadão do mundo", posta pela terceira onda a trabalhar pela "globalização" a qualquer preço dos serviços, finanças, negócios e patentes. Derramamentos de sangue são, pois, previsíveis no futuro próximo. Mesmo porque a poluição do mundo, as doenças e a imigração ameaçam a riqueza e o bem-estar minoritários do mundo desenvolvido a partir dos países semi ou subdesenvolvidos: as tensões crescerão e a "nova civilização da terceira onda" provavelmente guerreará para estabelecer sua hegemonia política.
A capitulação pós-moderna como resposta distinta às mudanças históricas da segunda metade do século XX
O debate acerca do mundo e da vida de que agora vou tratar organiza-se em torno de pensadores, quase sempre de classe média e universitários, que são uma pequena minoria. Esta minoria enxerga de preferência os elementos que a preocupam mais. Assim, a ouvi-la, teríamos a impressão de os que debates acerca de coisas como feminismo (ou, mais em geral, papéis masculinos e femininos, no que se costuma chamar hoje em dia de "gênero"), ecologismo (proteção de um meio ambiente cada vez mais ameaçado, incluindo objetivos específicos como o banimento da energia nuclear, produtora de lixo atômico de alto perigo), multiculturalismo (o reconhecimento de que cada cultura só pode ser julgada de dentro, constituindo seus valores um sistema não-comparável com outros, válido por definição e que deveria ser respeitado), descriminalização (ou seja, extinção das leis que penalizam) e desmedicalização (retirada da lista de doenças e, portanto, fim das políticas de saúde pública nisto baseadas) do homossexualismo e do uso de drogas - em suma, o debate a partir de posições que nos Estados Unidos são conhecidas como "politicamente corretas" - configurariam as discussões mais importantes, mais vitais e urgentes do mundo atual.
Há uma diferença, porém: enquanto os pensadores de meados do século tinham a pretensão de falar à humanidade como um todo e de estabelecer soluções aplicáveis universalmente, os da atualidade costumam aceitar que falam "de um determinado lugar" (lugar social, num sentido limitado a interesses de grupos; lugar ideológico, neste mesmo sentido fragmentado) e para um setor específico e delimitado de pessoas (conforme o caso: mulheres, gays, negros, ecologistas e assim por diante).
Pessoalmente, acho mais importantes e urgentes outras discussões - sem, com isto, querer dizer que aquelas careçam de importância. Penso, mesmo, que ao não serem considerados estes outros debates mais gerais, ao não se agir de acordo com eles, as reivindicações parcializadas do "politicamente correto" têm poucas chances de cumprir-se de modo cabal e satisfatório. Na verdade, elas começam a ser desafiadas e derrotadas cada vez mais - nos Estados Unidos, onde suas bandeiras foram hasteadas mais entusiasticamente, também na Europa - pelo fortalecimento de tendências políticas muito reacionárias que detêm agora frações importantes do poder político ou, estando fortemente representadas na sociedade, pretendem aumentar sua representação político-institucional. Pois, ao contrário do que pregam aqueles que duvidam de que o Estado seja o lugar crucial em que se concentra o poder social - este residiria, pelo contrário, "nos poros" de toda a sociedade: e o que está presente em toda parte não tem um núcleo estratégico que possa ser atacado decisivamente - , são os governos que contam com os meios de implementar políticas que influem na vida e no bem-estar da maioria dos habitantes de seus países - nestas últimas décadas, quase sempre negativamente.
As questões que me parecem ser de fato as mais urgentes e vitais podem ser sintetizadas em certo número de perguntas, de que mencionarei algumas. Como construir uma teoria global das sociedades contemporâneas que, adquirindo alto grau de confiança e consenso, possa servir à retomada de lutas também globais contra o sistema capitalista e seus representantes à frente dos Estados? Como usar, na luta social que sem dúvida precisa ser renovada, os novos elementos tecnológicos agora disponíveis? Por exemplo, se houver boas razões para tal, que objetivos sociais justifiquem, o que hoje são meras irritações, como os vírus de computador, podem se transformar em arma: é possível causar bilhões de dólares de prejuízo ao capitalismo mundial e globalizado, num período muito curto, mediante um uso adequado do computador e das redes informáticas como instrumentos da luta social.
Continuando com as perguntas, como lutar contra a erosão dos direitos adquiridos penosamente pelos trabalhadores e pelos cidadãos em geral, uma vez encerrada a época em que predominaram as idéias do Estado do Bem-Estar (Welfare state), substituídas por aquelas de implacáveis neoconservadorismo e neoliberalismo que, quando no poder, não se sensibilizam com os sofrimentos sociais, aceitando tranqüilamente o empobrecimento da maioria das pessoas e níveis de vida majoritários cada vez piores, em nome das regras do mercado, da eficiência e da competitividade capitalistas? O exemplo francês de 1995 a que aludimos antes mostra que mesmo meios de combate tradicionais, como as greves em cadeia, quando usados adequadamente e com grande consenso social, podem ser altamente eficientes. Em contraste, as pessoas que vêem, por exemplo, um objetivo auto-suficiente e prioritário na luta por um financiamento estatal adequado à pesquisa científica tendente a vencer a AIDS, se esquecem de que as atitudes governamentais a respeito fazem parte de políticas muito mais gerais: a deterioração friamente calculada da medicina social garantida pelo Estado e o acoplamento, também facilitado ou mesmo forçado pelos governos mediante chantagem financeira (cortes das verbas garantidas às universidades, por exemplo), da pesquisa científica básica cada vez mais aos interesses e ao financiamento direto das empresas e do capital privado, cujas finalidades nada têm de sociais.
Como evitar que no processo de mundialização capitalista - ideologicamente chamada de globalização - , dificilmente evitável nas atuais circunstâncias, se agrave progressivamente o descompasso tecnológico e econômico entre os países mais ricos e desenvolvidos e os outros? E poderíamos continuar a formular perguntas. Perguntas para as quais, de momento, há poucas respostas; e respostas que são insatisfatórias em muitos casos.
O próprio fato de que questões como estas não sejam as que mobilizem atualmente a maior parte dos intelectuais, mesmo dos que se considerem progressistas, leva à pergunta essencial: como, por que, por quais caminhos se deu o abandono das perspectivas voltadas para a visão global (ao contrário de uma visão compartimentada) do social, única forma de poder oferecer alternativas ao estado de coisas vigente nas sociedades humanas?
As opiniões a respeito estão longe de qualquer unanimidade. A meu ver, a resposta tem a ver centralmente com três tipos de fatores.
As visões globais do social - das quais a mais influente e mobilizadora foi por muito tempo o marxismo - são uma herança do Iluminismo, movimento de idéias do século XVIII, de sua confiança no progresso histórico da razão. Ora, tal herança se enfraqueceu por ter sido percebida por muitos pensadores como estando ligada às atrocidades de nosso século - um século de avanço da barbárie nas relações entre pessoas e coletividades, como foi demonstrado por Eric Hobsbawm. A debilitação da crença na razão abriu caminho à influência crescente de correntes contrárias ao racionalismo, à ciência e à idéia mesma de progresso. No caso específico do marxismo, sua própria insistência na união indissolúvel da teoria e da prática o tornou vulnerável, como corrente intelectual, às derrotas políticas sucessivas do socialismo e à crescente perda de credibilidade, como modelos a imitar, dos sistemas sociais e políticos que pretendiam estar baseados no marxismo - isto é, a desilusão cada vez maior com o chamado "socialismo realmente existente". Ao desaparecer este último num rápido processo, em 1989-1991, restando somente uma Cuba isolada, uma China e um Vietnã que parece muitom mobilizados pela magia do mercado, o capitalismo se configura como o único sistema ora vigente no mundo - coisa que muitos concluíram apressadamente ser algo definitivo e inelutável.
Outro elemento explicativo é a importância atribuída à presença, nas sociedades humanas, de sistemas simbólicos e sígnicos que passaram a perceber-se como, em grande parte, programando "de fora" a ação humana. Associada ao pessimismo resultante da diluição da crença na razão humana e sua possibilidade de basear conhecimentos válidos (verdadeiros) da natureza e das sociedades, conduz à noção de que o conhecimento humano se limita aos códigos e signos, mais exatamente à ação deles nos processos em que se gera o sentido (semioses), estudados por uma disciplina, a Semiótica: tal conhecimento seria incapaz de dizer seja o que for acerca do mundo natural e social em si. Como os processos de criação de significados, a partir dos signos e das mensagens (verbais e não-verbais) que permitem difundi-los, dependem de como sejam decodificados (decifrados, compreendidos), pensou-se que o conhecimento humano fosse necessariamente relativo: os significados dependeriam de uma hermenêutica, isto é, de um processo de interpretação inescapavelmente marcado por sistemas de poder e por interesses que nunca são universais, estão sempre ligados a grupos delimitados.
Ao mesmo tempo, certos processos do século atual, por exemplo a descolonização e as reivindicações feministas e de diversos grupos discriminados em seus direitos e possibilidades, foram entendidos no contexto da noção de uma "culpa do Ocidente" - recordam-se os horrores da conquista e da colonização na América, o tráfico de escravos, as atrocidades do colonialismo contemporâneo, as guerras mundiais, o pesadelo nazista, as torturas durante a guerra de independência da Argélia, barbaridades sem número durante a guerra do Vietnã, a ciência a serviço da destruição de seres humanos e do meio ambiente (neste ponto é corriqueira a confusão da ciência com os seus usos; e com a tecnologia, coisa ligada à ciência mas diferente dela) - , tudo isto em nítido contraste com o eurocentrismo e o privilégio anteriormente concedido à história ocidental como algo válido universalmente. Estas convicções do passado desaparecem agora, substituídas pelo multiculturalismo encarado como valor absoluto.
No contexto de tais fatores é que se deu a desilusão da chamada "geração de 1968", a qual crera na possibilidade de mudar globalmente as sociedades humanas num sentido positivo e, cada vez mais desencantada após ter acreditado sucessivamente no existencialismo, no marxismo, na "via chinesa ao socialismo" e no eurocomunismo, acabou por desembocar - melancolicamente - no socialismo moderado, no apoio a movimentos específicos e delimitados de reivindicação (feminismo, ecologismo, regionalismo, movimento negro, movimento gay), ou mesmo em posições tecnocráticas, neoliberais ou neoconservadoras.
O termo "pós-moderno" foi aplicado em primeiro lugar a uma arquitetura que pretendia livrar-se da modernidade e suas formas despojadas - se antes se dizia que less is more (o despojamento é acréscimo, é ganho), agora se passou a dizer que less is a bore (o despojamento é tedioso) - para cair num ecletismo formal que, de certo modo, canibalizava e mesclava os estilos precedentes: dando a entender, às vezes, que tudo de básico que deveria ser inventado já o foi (sinal claro de uma crise).
Com o tempo, "pós-modernismo" passou a ser expressão de aplicação mais geral, caracterizando entre outras coisas um modo de ver o mundo e as sociedades que desconfia da explicação científica e das teorias com pretensões globais - com o argumento, por exemplo, de que as sociedades de hoje estão desagregadas em "subculturas" autônomas, cada intelectual dirigindo-se de fato a alguma delas, mesmo quando tenha a ilusão de falar à humanidade como um todo - e proclamando diversas "mortes": morte do homem (como sujeito e objeto do conhecimento e de uma ação social globalmente transformadora), morte da História (o futuro, no essencial, seria o prolongamento do presente), morte das ideologias e dos sistemas explicativos holísticos (que lidem com totalidades).
Conclusão: os paradigmas futuros nos estudos sociais
Que pensar dessa tendência pós-moderna - bastante heterogênea, aliás, embora não possamos detalhar aqui as suas variantes - , tão presente ainda entre os intelectuais, pessimista quanto às possibilidades humanas de conhecer o mundo e a sociedade e de transformá-los mediante uma ação baseada em tal conhecimento, negativa ao ponto de ter sido caracterizada como a orfandade intelectual de uma geração? Pessoalmente, sempre acreditei que, exatamente no que tinha de negativa e pessimista, seria passageira. Duvido muito da longevidade de teorias que se concentrem em dizer-nos o que não podemos ser ou fazer, quando mais não seja porque, historicamente, se nota que as interdições intelectuais despertam irresistível impulso de desobediência... Mas essas noções, sobretudo num país como o Brasil (pois, nos países centrais sua credibilidade, desde o extremo fim do século XX, após um auge em 1984-1994, está em queda livre), ainda estarão conosco por algum tempo, até que surjam novas teorias globais dotadas de credibilidade e poder de mobilização, passado o trauma das recentes e esmagadoras vitórias políticas das posições direitistas (neoconservadorismo, neoliberalismo). O surgimento dessas novas teorias é, por outro lado, difícil atualmente, em especial no tocante ao conhecimento de uma sociedade humana em fluxo, em processo ainda inacabado - portanto, difícil de perceber em seus contornos - de transformação radical das modalidades de convivência, produção e comunicação.
Tais teorias globais novas surgirão sem falta, no entanto, por uma razão muito simples: os problemas sociais, tanto os tradicionais quanto outros, derivados das tendências mais recentes que resumimos, só fazem agravar-se em todo o mundo; e a busca de soluções através da luta social passa necessariamente por teorias assim. Elas também deverão surgir em reação ao individualismo absoluto reinante na atualidade, produto da descrença nas teorias globais e da erosão considerável sofrida neste século pelas instâncias coletivas integradoras mais influentes no passado (família, nação, sindicato, partido, religiões tradicionais, sistemas éticos antes vigentes), sem que tenham surgido alternativas viáveis. Como tal individualismo coincide no tempo com o sucesso de teorias que proclamaram a "morte do homem", há quem fale, ironicamente, numa "vitória póstuma do sujeito". Quanto a mim, é minha firme convicção que os seres humanos formam coletividades solidárias que o nível individual escamoteia ao ser absolutizado: mas tal dimensão coletiva é uma parte inseparável do fato de pertencer à humanidade, pelo qual, posições unilaterais que a neguem não podem ser duradouras.
Deve considerar-se, também, que o pós-modernismo é um produto específico do desencanto intelectual de minorias pensantes de tradição ocidental. Nos países islâmicos, por exemplo, os numerosos excluídos das vantagens do mundo contemporâneo refugiam-se, não nos ideais pós-modernos mas, sim, no mito da volta a um Islã original, depurado, perseguindo a utopia teocrática (isto é, baseada na possibilidade de um governo dirigido por Deus ou, mais exatamente, por pessoas reconhecidas como representantes Dele) do califado unificado da Alta Idade Média como solução - ilusória, claro está- para os males do presente. Em países como o Japão ou a China também não parece considerável a influência pós-moderna. A América Latina, porém, por suas próprias origens históricas, configura-se tradicionalmente como importadora das modas ocidentais, pelo qual, em nossos países, tal influência é, pelo contrário, muito visível, mesmo com a insignificância numérica das "novas elites" de natureza profissional e gerencial - mais apoiadas na manipulação de conhecimentos profissionais e informações do que no controle da propriedade ou do capital - que autores como Alex Callinicos e Christopher Lasch percebem como sendo a base social do pós-modernismo nos Estados Unidos e na Europa.
Deve notar-se, por fim, que as distinções com que começamos ajudam a entender a razão de ser da adesão a alguma das respostas às transformações do mundo diferencial em suas proporções de uma a outra das ciências humanas e sociais: obviamente, os profissionais que se vêem como "técnicos" atuantes na sociedade de hoje são menos provavelmente críticos às ideologias e posições nela dominantes (em especial o "pensamento único" do neoconservadorismo e do neoliberalismo) do que os estudiosos do social que mantenham vínculos menos diretos com os sistemas de poder. Outrossim, será difícil encontrar pós-modernos entre aqueles que acham importante, ao tratar das sociedades, jamais deixar de lado o ângulo material em favor de uma visão unilateralmente mental ou cultural.
Indicações bibliográficas:
Como textos que, da perspectiva do final do século XX, interrogam limitada e prudentemente o início do próximo, consulte-se:
KENNEDY, Paul. Preparando para o século XXI. Rio de Janeiro: Campus, 1993;
CARDOSO, Ciro Flamarion. "No limiar do século XXI". Tempo (Rio de Janeiro: Relume Dumará). Ano 1, no 2, 1996, pp. 7-30.
Como panorama interpretativo daquele século - que, segundo o autor, terminou em 1991 - , ver HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Acerca dos avanços científicos e tecnológicos que estão na base de transformações como a engenharia genética e a "revolução informacional", bem como dos efeitos de tais elementos sobre a vida das pessoas e sobre o capitalismo contemporâneo - o que inclui o debate acerca da "globalização" - , recomendamos também alguns escritos:
WITKOWSKI, Nicolas (org.). Ciência e tecnologia hoje. São Paulo: Editora Ensaio, 1994, é sumário útil e bastante completo do tema indicado por seu título, atualizado até 1991, quando foi publicado originalmente na França.
NEGROPONTE, Nicholas. A vida digital. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, tece interessantes considerações acerca da vida quotidiana tal como influída pelas novas tecnologias da informação (um dos capítulos se intitula "Onde as pessoas e os bits se encontram").
LOJKINE, Jean. A revolução informacional. São Paulo: Cortez Editora, 1995, trata de teorizar, de um ponto-de-vista marxista, o impacto das mencionadas tecnologias da informação sobre as estruturas do capitalismo na época atual. Para uma finalidade similar, mas numa perspectiva distinta, vale a pena ler: PETRAS, James. Ensaios contra a ordem. São Paulo: Editora Scritta, 1995.
SANTOS, Milton. Técnica, espaço, tempo. Globalização e meio técnico-científico informacional. São Paulo: Hucitec, 1994, redefine, da perspectiva de um geógrafo e em conjunto com diversas outras obras do autor, as novidades trazidas à categorização do espaço pelos fatores ligados à "revolução informacional" e à "globalização".
Para os dilemas intelectuais e políticos de nossa época, eis aqui algumas indicações:
KAPLAN, E. Ann (org.). O mal-estar no pós-modernismo. Teorias e práticas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, oferece uma gama de opiniões sobre o pós-modernismo e suas ligações com o feminismo e as teorias de uma "cultura popular".
BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda. Razões e significados de uma distinção política. São Paulo: Editora UNESP, 1995, demonstra que a distinção entre posições políticas e sociais de direita e de esquerda está muito longe de ser algo superado, como hoje em dia pretendem tantos.
LETÍZIA, Vito. "Conquistas sociais versus neoliberalismo: o povo francês trava a primeira grande batalha". O Olho da História. Revista de História Contemporânea (Salvador: Oficina Cinema-História). Ano 2, no 2, 1996, pp. 15-18, resume brevemente, mas com pertinência, o significado das greves de dezembro de 1995 na França.
Para a visão de historiadores a respeito do estado atual das visões histórico-sociais, consulte-se:
CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997;
CARDOSO, Ciro Flamarion. Ensaios racionalistas. Rio de Janeiro: Campus, 1988 (os dois últimos ensaios, pp. 61-117).
Filmes:
A exploração - sem muitas ilusões - do que nos reserva o início do século XXI tem sido uma especialidade do cinema de ficção científica na vertente iniciada em 1982, conhecida como cyberpunk (de "cibernética" e "punk", palavra da terminologia roqueira surgida na década de 1970). Indicaremos a seguir alguns dos filmes disponíveis nas locadoras, escolhidos dentre os mais significativos (que nem sempre são os melhores do ponto-de-vista do cinema como arte).
Blade runner: o caçador de andróides (dir. Ridley Scott, 1982), já foi mencionado no texto.
Anna do infinito poder (dir. Robert Wiemer, 1982) é uma reflexão sobre as possibilidades e ameaças da engenharia genética (clonagem humana).
Videodrome, a síndrome do vídeo (dir. David Cronenberg, 1982), é visão metafórica acerca da invasão da vida humana pelos meios de comunicação de massa. Operação Brainstorm (dir. Douglas Trumbull, 1983) refere-se à realidade virtual como ameaça e manipulação.
O exterminador do futuro, I e II (dir. James Cameron, 1984 e 1991), refletem receios diante da ciência e da tecnologia, bastante típicos da ficção científica contemporânea.
Brazil (dir. Terry Gilliam, 1985) é reflexão dolorosa sobre um futuro totalitário e a tentativa de revolta contra o mesmo.
O escondido (dir. Jack Sholder, 1987) metaforiza, na relação de um policial humano e outro alienígena, a questão do multiculturalismo, além de abordar temas da violência urbana.
De volta ao futuro II (dir. Robert Zemeckis, 1989) mostra um futuro em que os japoneses dominam o capitalismo dos Estados Unidos, o que aliás é só uma de numerosas ameaças do porvir representadas no filme.
O vingador do futuro (dir. Paul Verhoeven, 1990) retrata o domínio de um capitalismo amoral e violento sobre dois mundos, além de uma extensão aos humanos da memória informática programável.
Fugindo do futuro (dir. David Twohy, 1991), pelo contrário, se refere a um futuro tão utópico que chega a ser tedioso, razão pela qual surge um tipo de turismo voltado para a visita, mediante viagens no tempo, a grandes e sangrentas catástrofes do passado, numa observação sem intervenção, como se se tratasse de um espetáculo.
Tekwar (dir. William Shattner, 1994) explora o que poderiam vir a ser no futuro próximo a realidade virtual e o tráfico de drogas.
O segredo da imortalidade (dir. Allan Goldstein, 1994) interroga as possibilidades mais extremas da criogenia (supercongelamento) e da cirurgia, num século XXI entregue a um totalitarismo disfarçado de regime benéfico.
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