segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

MEIO HOMEM, MEIO MITO



POR RAFHAEL BARBOSA - REPÓRTER



Quem foi Zumbi? Mesmo após inúmeras pesquisas, não existe uma resposta precisa para essa pergunta, ou pelo menos uma única resposta. Tido como herói absoluto da resistência negra durante o período colonial no Brasil, o líder de Palmares, o mais importante quilombo das Américas, é um entre os muitos personagens constantemente revisitados pelos historiadores em sua busca por iluminar o passado à luz da contemporaneidade.



Se de Sócrates a Jesus Cristo e de William Shakespeare a Alexandre, o Grande nem mesmo os maiores ícones da história estão imunes a questionamentos – alguns dos quais chegaram a pôr em xeque suas próprias existências –, no caso de Zumbi o que se sabe de sua passagem pelo mundo ainda está longe de proporcionar um retrato definitivo de quem ele foi, assim como do modo de vida que vigorava na complexa comunidade localizada na região que hoje pertence ao território alagoano.



As lacunas nos registros existentes, no entanto, não impediram que historiadores se debruçassem sobre o tema e que dele extraíssem reflexões consistentes. Um dos mais lúcidos e empenhados estudiosos acerca das comunidades formadas por escravos fugitivos, o professor carioca – e filho de alagoanos – Flávio dos Santos Gomes, 47, pesquisou os quilombos no mestrado e no doutorado. Agora, em De Olho em Zumbi dos Palmares – Histórias, Símbolos e Memória Social (Companhia das Letras), procura reconstituir a trajetória do líder quilombola costurando os muitos fragmentos de informações dispersos em documentos espalhados pelo mundo.



EM BUSCA DA IMAGEM DE ZUMBI



O tema das comunidades de fugitivos tem sido foco de suas principais publicações. Como surgiu esse interesse?



Flávio dos Santos Gomes. Eu fiz mestrado em 1992 sobre os quilombos no Rio de Janeiro, e doutorado em 1997 sobre os quilombos no Brasil como um todo. Ambos eu fiz na Unicamp, e ambos já viraram livro. Eu foquei mais no Pará, mas tratei do Rio, Minas e Bahia. Mas para quem estuda quilombo, claro, Palmares é a maior referência. E uma coisa de que eu tenho muito orgulho é de ser filho de alagoanos. Minha mãe é de Palmeira dos Índios. Toda a minha família é de migrantes nordestinos que vieram para o Sudeste. E isso justifica um pouco o meu interesse por Palmares. Só sobre Palmares eu tenho três livros: um pela Contexto, e em 2010 eu publiquei um outro chamado Mocambos de Palmares, em que 60% são documentações transcritas, com 40% de artigos. Acabou que eu estava com a mão na massa. E eu consegui colocar no livro pelo menos 240 documentos transcritos sobre Palmares. Desses, pelo menos 80% já eram conhecidos, mas estavam em lugares de difícil acesso.



Como o senhor avalia o retrato de Zumbi e do quilombo de Palmares feito pelos livros escolares?



Os retratos de Zumbi são tão invenções quanto os retratos dos responsáveis por expulsar os holandeses do Brasil. Se sabe hoje que aquele com Felipe Camarão e Henrique Dias e o indígena, aquela fábula do português, do negro e do índio que se unem para expulsar os [holandeses] do Brasil, os heróis da Restauração Pernambucana, o principal historiador, que é o Evaldo Cabral de Melo, mostra que os quadros desses personagens foram destruídos em Pernambuco. Portanto, as imagens disponíveis hoje nos museus são imagens inventadas desses personagens, produzidas praticamente no século 19, muito distantes desses personagens, que são do século 17. A imagem do Tiradentes na forca é uma imagem criada já dentro do ideário republicano, quase cem anos depois – não é necessariamente uma imagem fiel ao que aconteceu com ele quando ele é enforcado no final do século 18, no Rio de Janeiro. O que acontece com Zumbi é a mesma coisa.



Durante as comemorações dos 500 anos do Brasil, a Folha de S.Paulo fez uma série de reportagens sobre Zumbi, e numa delas chamou atenção para o fato de os arquivos disponíveis no Brasil se encontrarem em péssimo estado de conservação, e em Portugal, em catalogações “pouco criteriosas”. Em suas pesquisas você também se deparou com esse problema?



Não. Já existe muita coisa transcrita. Existe um projeto criado pelo governo federal, chamado Projeto Resgate, que organizou os documentos brasileiros do Arquivo Histórico Ultramarino, em Portugal.



Onde estão os registros mais importantes?



A grande força está no Rio Janeiro, na Biblioteca Nacional, outra parte no Arquivo Nacional. Em Portugal, no Arquivo Histórico Ultramarino. Mas eu também me baseei em pesquisas de outros. Por exemplo, o Décio Freitas, que inclusive fez pesquisas em Portugal e publicou um repertório de fontes pela Universidade Federal de Alagoas, há uma década.



O ESQUECIMENTO DE GANGA ZUMBA



Os debates mais recentes sobre Palmares tentam restaurar a importância de Ganga Zumba, ofuscada pelo mito em torno de Zumbi. Qual foi o real papel de cada um deles no quilombo?



Isso é uma coisa interessante. A historiografia acabou induzindo a uma supervalorização de Zumbi, em contrapartida a uma visão completamente limitada do Ganga Zumba. Se você pensar, Ganga Zumba foi muito importante não apenas como a figura do herói, mas como liderança numa comunidade de fugitivos com a qual, assim como em muitos exemplos parecidos na Colômbia e no México, as autoridades coloniais foram obrigadas a fazer tratados de paz diante da impossibilidade de acabar com elas. Em Palmares aconteceu a mesma coisa. Era um quilombo que cada vez mais crescia, ficava invisível e ao mesmo tempo gigante. E Ganga Zumba se submeteu a esse tratado. Existem comunidades no Suriname, como Saramakas, que até hoje existem porque são descendentes daquelas comunidades que fizeram tratados de paz no século 18.



Então ao recusar os acordos Zumbi teria pecado pelo radicalismo?



Eu não acho que ele foi radical. Eu acho que você vai ter uma experiência também muito comum nas sociedades africanas, que era o pensamento de que a conquista do poder local é também feita através de assassinatos, de rituais de morte, como é o caso do Ganga Zumba, que até onde consta é assassinado para que Zumbi assuma o poder. Agora, se você considerar as primeiras informações de Palmares, de 1597, e as últimas, de 1740, algumas questões são importantes. Primeiro: Ganga Zumba não é o primeiro chefe de Palmares. Ele fez o tratado em 1678. Isso que dizer que muito provavelmente existiu outro antes dele, que nós sequer sabemos o nome. E depois, Zumbi morre em 1695. A documentação fala de dois líderes depois de Zumbi. Um chamado Mouza e outro chamado Camoanga. Isso não tira a importância de Zumbi, mas mostra um outro contexto. Agora, do ponto de vista da literatura, da historiografia, e também dos movimentos sociais, houve uma exacerbação da figura do Zumbi que de alguma maneira obscureceu a figura de Ganga Zumba. Ambos são muito importantes. Tanto que no meu livro eu trato dos dois. Mas também existe um outro ponto. O tratado de paz assinado por Ganga Zumba foi rompido pelas próprias autoridades, que continuaram fazendo expedições. Na verdade Palmares também era vítima de uma especulação fundiária. Porque à medida que as autoridades fazem o acordo com Ganga Zumba, muita gente ficou interessada nas terras do quilombo. Então continua o interesse de atritar Palmares e o próprio Ganga Zumba com o governo. Havia uma grande cobiça. Um exemplo é que, nas tropas do Domingos Jorge Velho, a base do pagamento eram terras e escravos capturados nos ataques a Palmares. E aí Zumbi ganha importância, porque a guerra continua, e é ele quem lidera. Tanto que o Domingos Jorge Velho fracassa em sucessivas expedições. Só na última que ele consegue destruir o cerco, em 94, e assassinar Zumbi em 95.



Em que momento da história Zumbi foi transformado no herói que é hoje?



Por aí a gente sai da história de Palmares e entra na história de Zumbi, da transformação dele num herói dos séculos 18, 19 e 21, contra o preconceito racial, contra o racismo, e pela cidadania. Isso é uma outra história, que não é um mito, que não é uma inverdade, é uma história se desdobrando. A transformação de zumbi num herói para uma luta social específica, que é a luta contra o racismo e a discriminação. E isso é completamente legítimo. Existe todo um movimento de ressignificação, de memória social e de símbolos que são mobilizados. São as simbologias, e elas são das mais diversas.



Para saber mais

Título: O Alufá Rufino – Tráfico, Escravidão e Liberdade no Atlântico Negro (c. 1822-c. 1853)
Autor(es): João José Reis, Flávio dos Santos Gomes e Marcus Joaquim de Carvalho
Editora: Companhia das Letras
Sinopse: as aventuras de um ex-escravo africano envolvido no tráfico negreiro são reconstituídas numa narrativa histórica acessível e bem documentada. Mais do que uma biografia convencional, a trajetória de Rufino serve como guia para uma história social do tráfico e da escravidão no mundo atlântico em meados do século 19.



Título: Histórias de Quilombolas – Mocambos e Comunidades de Senzalas no Rio de Janeiro, Século XIX
Autor: Flávio dos Santos Gomes
Editora: Companhia das Letras
Sinopse: estudo bem documentado e abrangente sobre a luta dos escravos em busca da liberdade, na província do Rio de Janeiro no século 19. Reedição revista e ampliada de um clássico publicado em 1995.


Título: Liberdade por um Fio – História dos Quilombos no Brasil
Autor(es): vários
Editora: Companhia das Letras
Sinopse: seleção de estudos acadêmicos que, reunidos, compõem um mapa detalhado da resistência à escravidão e da luta pela liberdade nos quilombos brasileiros.


Título: Cidades Negras
Autor(es): Carlos Eugênio Líbano Soares, Carlos Eduardo Moreira de Araújo, Flávio dos Santos Gomes, Juliana Barreto Farias
Editora: Alameda Editorial
Sinopse: ao contrário dos cenários típicos das plantations, parte da história da escravidão atlântica foi vivenciada em paisagens urbanas ou semiurbanas. Milhares de escravos, africanos e crioulos, misturaram-se com marinheiros, negociantes, caixeiros e viajantes e outros setores do mundo do trabalho e da cultura transatlânticos. O livro desenha esses espaços urbanos.

 
Título: A Hidra e os Pântanos – Mocambos, Quilombos e Comunidades de Fugitivos no Brasil
Autor: Flávio dos Santos Gomes
Editora: Unesp/Polis
Sinopse: na história da resistência escrava nas Américas, o Brasil tem o maior número de povoamentos de escravos fugitivos, conhecidos como quilombos ou mocambos. Nenhuma outra área escravista teve tantos. Este livro, além da participação dos africanos, esclarece os contatos e o papel dos indígenas e dos quilombolas, tanto nas relações de aliança e assistência mútua como nas de guerra.

Título: Palmares
Autor: Flávio dos Santos Gomes
Editora: Contexto
Sinopse: o historiador Flávio Gomes narra a história de Palmares desde os primeiros tempos, e a luta constante com as autoridades até a morte de Zumbi e seu fim. O autor desfaz mitos e muda o olhar que até então se tinha sobre este tema tão relevante na história do Brasil.

Título: De Olho em Zumbi dos Palmares – Histórias, Símbolos e Memória Social
Autor: Flávio dos Santos Gomes
Editora: Companhia das Letras

 
 
 
 

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