sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Crise do capitalismo ou crise no capitalismo?


Por João Alexandre Peschanski.



Um dos efeitos da crise econômica atual é um crescente interesse pela economia política marxista. Foi noticiado em 2008 que as vendas das obras de Marx haviam aumentado nos Estados Unidos e na Europa. No Brasil, a cuidadosa coleção Marx e Engels está regularmente no topo dos mais vendidos da Boitempo. É o caso dos Grundrisse – como noticiou Emir Sader no Facebook –, o livro mais vendido pela editora em 2011, por mais que se trate de uma obra relativamente difícil.



A crise econômica também estimulou novas pesquisas sobre os determinantes de contradições sistêmicas e, mais do que isso, fomentou um novo e interessantíssimo debate entre marxistas. O debate é um exercício fundamental na evolução do pensamento marxista e, mais do que isso, dá fôlego novo à economia política. Marx era um polemista e muitas de suas obras foram réplicas a teóricos contemporâneos, que levaram a tréplicas e assim por diante. Houve controvérsias entre Lenin e Rosa Luxemburgo sobre a organização do processo revolucionário e, especialmente nas décadas de 1960 e 1970, marxistas se opuseram sobre a questão da transição do feudalismo ao capitalismo, do socialismo de mercado e do Estado, entre outras. Além disso, houve importantes discussões, às vezes acaloradas, sobre os determinantes de contradições sistêmicas no capitalismo, isto é, de crises, que opuseram os defensores da queda tendencial da taxa de lucro, do subconsumo e da compressão do lucro.



O novo debate entre marxistas está relacionado aos determinantes da crise atual. Há pensadores que defendem que a crise atual diz respeito à variedade de capitalismo na qual estamos (o neoliberalismo) e, por isso, tem seu ponto de contradição em um período recente. Nessa perspectiva, a recessão econômica surge e se mantém pelas ineficiências dos mecanismos que levaram à expansão do neoliberalismo. Defendem essa tese, entre outros, Gérard Duménil e Dominique Lévy (The Crisis of Neoliberalism, 2011) e David Harvey (O enigma do capital, publicado pela Boitempo no final de 2011). Sugerem, de certo modo, que a crise atual não é do capitalismo no geral, mas de uma forma específica da organização da acumulação do capital; portanto, a crise não é necessariamente do capitalismo, mas se dá no capitalismo. Numa recente e ótima entrevista a Armando Boito Jr., no Jornal da Unicamp, Duménil expõe sua tese:



“A crise atual não é uma simples crise financeira. É a crise de uma ordem social insustentável, o neoliberalismo. Essa crise, no centro do sistema, deveria acontecer, de qualquer modo, um dia ou outro, mas ela chegou de uma maneira bem particular em 2007/2008, vinda dos Estados Unidos. Dois tipos de mecanismos convergiram. Encontramos, de uma parte, a fragilidade induzida em todos os países neoliberais pelas práticas de financeirização e de globalização (notadamente financeira), motivada pela busca desenfreada de rendimentos crescentes por parte das classes superiores, reforçada pela recusa de regulamentação. O banco central dos EUA, em particular, perdeu o controle das taxas de juros e a capacidade de conduzir políticas macroeconômicas em decorrência da globalização financeira. De outra parte, a crise foi o efeito da trajetória econômica estadunidense, uma trajetória de desequilíbrios cumulativos, que os EUA puderam manter devido à sua hegemonia internacional – contrariamente à Europa que, considerada no seu conjunto, não conheceu tais desequilíbrios.”



Contra a tese da crise no capitalismo surgiram estudos provando que os determinantes da contradição econômica atual são da própria dinâmica estrutural do capitalismo. Esse tipo de argumentação não é novo, presente nas obras clássicas de István Mészáros e François Chesnais, entre outros, mas agora se coloca num debate com Duménil/Lévy e Harvey. Andrew Kliman (The Failure of Capitalist Production, 2011) contesta os dados que estes apresentam para justificar a tese da crise no capitalismo. Chris Harman (Zombie Capitalism, 2009), reagindo a publicações anteriores de Duménil/Lévy, sugere que o epicentro da crise não é o sistema financeiro, o elemento explicativo-chave da tese da crise no capitalismo, mas a indústria. Com isso, afirma que a crise atual é, portanto, uma crise da própria dinâmica de reprodução da acumulação do capital, ou seja, uma crise do capitalismo.



Uma das derivações lógicas dos defensores da tese da crise no capitalismo é que esta pode ser resolvida por uma reorganização do capitalismo, com um novo pacto keynesiano, por exemplo. (Harvey é mais cético, pelo menos na retórica, do que Duménil/Lévy em relação à capacidade do capitalismo de se reorganizar, vide seu artigo “Organizando para a transição anticapitalista”, na Margem Esquerda n. 15.) O outro lado, que defende que as ineficiências expressas na recessão atual são estruturais, ou seja, do capitalismo, coloca mais claramente a necessidade da superação da ordem atual pelo socialismo.



O debate sobre a crise atual está apenas começando e, entre outros méritos, recoloca a urgência de estudar e pensar seriamente a economia política — com o mesmo nível de urgência dos desafios que uma ordem socioeconômica em crise impõe.

 

João Alexandre Peschanski é sociólogo, coorganizador da coletânea de textos As utopias de Michael Löwy (Boitempo, 2007) e integrante do comitê de redação da revista Margem Esquerda: Ensaios Marxistas.

 
 
 
 
 
 

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