[A propósito dos 50 anos da publicação do livro CEM ANOS DE SOLIDÃO, de Gabriel García Márquez]
Por Eric Nepomuceno
Há 50 anos, e a estas alturas de maio, a expectativa era palpável na casa de número 19 da rua Loma, em San Angel Inn, um bairro de classe média da Cidade do México. Faltava pouco para que Gabriel García Márquez e sua guardiã eterna, Mercedes, viajassem para Buenos Aires, para o lançamento do livro que era a aposta da sua vida, "Cem Anos de Solidão".
Em um tempo em que não havia internet e nenhum dos mecanismos de comunicação que hoje qualquer criança usa, em que os telefonemas internacionais tinham um custo exorbitante, uma carta recebida dias antes contava que a primeira edição do livro, pela prestigiada e prestigiosa Editorial Sudamericana, seria de 8 mil exemplares.
Nenhum livro de García Márquez havia vendido mais do que mil e poucos exemplares. Ele sabia que daquela vez seria diferente, mas 8 mil era demais, era assustador. Escreveu para a editora dizendo ter medo de provocar um encalhe de proporções amazônicas.
Outra carta urgente do lendário editor Paco Porrúa tentou acalmá-lo. Dizia que a expectativa da editora era vender aquela edição "até o fim do ano". Foi um garrafal erro de projeção: a edição esgotou-se em 15 dias. Veio uma segunda, de 10 mil exemplares, que teve o mesmo destino. Começaram a chegar pedidos de todos os lados: o México pedia 20 mil exemplares, a Colômbia queria mais 10 mil. A editora teve de suspender a impressão de todos os outros livros e comprar cotas extras de papel.
Em três anos foram 600 mil exemplares em castelhano, e em oito, as vendas chegaram a 2 milhões.
Em 1982, quando García Márquez ganhou o Nobel de Literatura, só em castelhano "Cem Anos de Solidão" tinha vendido 25 milhões de exemplares. Quando ele fez 80 anos de vida, em março de 2007, tinha vendido 50 milhões de exemplares em 36 idiomas, e não parou de vender até hoje. Os leitores de "Cem Anos de Solidão"poderiam formar um dos 20 países mais povoados do mundo.
Durante esse tempo, muito se especulou sobre o momento exato em que García Márquez escreveu a primeira frase do livro, uma das aberturas mais singulares da literatura: "Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo".
Ele dizia, rindo, que quando escreveu o que escreveu, seu primeiro pensamento foi: "E agora, o que virá?".
Bem, o que veio foi um manancial único, que mudou de vez não só a vida pessoal do autor, mas marcou para sempre a literatura contemporânea.
Quando escreveu essa frase, García Márquez tinha 37 anos de idade. Havia chegado à Cidade do México quatro anos antes - no entardecer do domingo, 2 de julho de 1961. Chegou, com Mercedes e o filho Rodrigo, de Nova York, onde tinha sido correspondente da agência cubana de notícias Prensa Latina. Viajou de ônibus, atravessando os Estados Unidos e prestando especial atenção às paisagens do Sul, o mundo misterioso e dramático de um de seus mestres, William Faulkner. Levava pouco mais de US$ 200 no bolso, a determinação de se transformar em roteirista de cinema e a vontade de se estabelecer como escritor.
Tinha escrito quatro livros e apenas um, "O Enterro do Diabo", fora publicado, sem outras glórias que
algumas resenhas elogiosas, seis anos antes, na Colômbia. Era um escritor quase clandestino.
Entre 1961 e aquela tarde remota de 1965 fez de tudo um pouco para viver. Voltou ao jornalismo, tentou a publicidade, trabalhou como roteirista de cinema, enfim, tudo menos literatura.
A única novidade importante aconteceu em 1962, quando ganhou na Colômbia o prêmio Esso de Literatura, com "O Veneno da Madrugada". Com os US$ 3 mil do prêmio comprou um Opel branco, pagou o parto de seu segundo filho, Gonzalo, comprou camisas e pijamas de presente para seu compatriota e amigo Álvaro Mutis e mudou de casa.
Em setembro de 1963 ele foi parar na J. Walter Thompson, multinacional de publicidade. Uma vez mais, a estrela protetora de Mutis foi providencial. E, uma vez mais, García Márquez viu-se às voltas com um trabalho cuja função era assegurar o sustento da família. Continuava sem escrever literatura. Meses depois, foi trabalhar como roteirista, e sua primeira tarefa não poderia ser mais empolgante: tratava-se de escrever o roteiro de um argumento original de Juan Rulfo, "O Galo de Ouro".
Rulfo era o escritor vivo mais admirado por García Márquez. As leituras de seus dois únicos livros, o de contos, "O Chão em Chamas", e o romance "Pedro Páramo", tinham provocado nele um impacto de terremoto. Repetiria, ao longo da vida, que só outros dois autores haviam sacudido tanto seus alicerces: Kafka e Sófocles.
Nada melhor, portanto, que entrar no tão ansiado ofício do cinema com a missão de trabalhar com um
argumento de seu autor reverenciado. Terminada a tarefa, o produtor fez apenas um reparo: os diálogos estavam "em colombiano, e não em mexicano". Foi convocado, então, um jovem autor que García Márquez conhecia por carta e através de amigos em comum, Carlos Fuentes.
Tornaram-se amigos para sempre. O trabalho, porém, foi uma formidável sequência de frustrações. A tal ponto, que no primeiro semestre de 1965 ele disse a Fuentes que iria voltar para a Colômbia. Ouviu do amigo que aquele trabalho servia basicamente para financiar os livros que queriam escrever. Que fosse para casa escrever.
Na verdade, se fizesse um balanço de sua temporada mexicana, ele deveria se dar por satisfeito. Tinha se tornado um roteirista bem cotado, um escritor reconhecido, e editoras de vários países latino-americanos começavam, pouco a pouco, a se interessar pelos seus livros.
Mas não estava feliz. Nos últimos anos não havia escrito um só conto, não havia começado nenhum romance.
Álvaro Mutis, seu amigo mais próximo, o que melhor o conhecia, achava que na verdade ele havia sofrido três impactos: o da complexidade mexicana, o da obra de Juan Rulfo e o do sonho e da frustração com o cinema.
Foi quando aconteceu a história, tantas vezes repetida, de uma viagem de fim de semana com a família até Acapulco. Mal tinham saído da Cidade do México quando, de repente, ele manobrou bruscamente o Opel branco e voltou. É que, num relâmpago, um livro inteiro, o tão esperado, apareceu. No dia seguinte, começou a escrever "Cem Anos de Solidão".
Na verdade, as coisas não ocorreram exatamente assim. Ele teve, sim, o relâmpago do livro enquanto
dirigia. Mas passou o fim de semana em Acapulco, e só na manhã daquela incerta terça-feira, já de regresso à Cidade do México, sentou-se para começar a escrever.
Durante semanas García Márquez oscilou entre a necessidade de mergulhar no livro e a obrigação de
cumprir tarefas que, de repente, se tornaram insuportáveis. Até que decidiu se isolar do mundo.
Entre suas economias e a ajuda do permanente Álvaro Mutis, reuniu US$ 5 mil. Colocou o dinheiro nas mãos de Mercedes, que deveria se encarregar de tudo. Ele não voltaria à vida cotidiana durante os seis meses em que planejava escrever o livro. Refugiou-se num canto da sala de jantar, separado do resto da casa por uma divisória de madeira. Na porta, colocou uma tabuleta de humor caribenho: "La Cueva de la Máfia". Lá dentro havia uma estante com alguns livros, vários dicionários, um globo terrestre, a mesa de madeira com a Olivetti portátil, dois quadros de gosto mais do que duvidoso e, sempre, ao alcance da mão, uma pilha de 500 folhas de papel ofício.
García Márquez sentia uma espécie de rancor em relação ao livro: "Ele quase destroçou a minha vida. Depois de publicado, nada foi como antes".
A primeira versão de "Cem Anos de Solidão" tinha o equivalente a pouco mais de duas daquelas pilhas, ou seja, pouco mais de mil páginas datilografadas de forma impecável - e depois cobertas de rabiscos, correções, dúvidas, alterações, num bordado quase indecifrável para o próprio autor. Após semanas de cortes e recortes, o livro ficou menor: 590 páginas datilografadas em espaço duplo.
Entretanto, os tais seis meses viraram 14. No meio do caminho o dinheiro acabou, o Opel foi primeiro penhorado e depois vendido, e penhoradas foram as joias de Mercedes e depois a televisão, o rádio e tudo que fosse penhorável. Quando finalmente o livro acabou eles deviam nove meses de aluguel, quatro meses de açougue e não tinham mais quase nada para empenhar ou vender.
Na hora de despachar, pelo correio, os originais para Buenos Aires, o funcionário pesou o pacote, e disse: "São 82 pesos". Mercedes contou o dinheiro e disse ao marido: "Só temos 53". Os dois dividiram o pacote pela metade, despacharam uma parte e pronto.
Quando enfim conseguiram empenhar o secador de cabelos de Mercedes, o aquecedor elétrico e uma
batedeira de bolo, mandaram o que faltava. E só então perceberam que no primeiro pacote despachado estava, na realidade, a segunda parte do livro: o editor recebeu primeiro o final.
Pouco depois, o mesmo correio trouxe o cheque de adiantamento sobre direitos autorais do livro: US$ 500. Com esse dinheiro o aluguel de quase um ano foi pago.
A partir daquele 20 de junho de 1967 , quando "Cem Anos de Solidão" chegou às livrarias de Buenos Aires, cada hora de cada dia foi dedicada, arduamente, a um esforço imenso para que ele pudesse continuar sendo o Gabriel García Márquez que tinha sido até então.
Sabia que seria impossível. Alguns dos amigos de antes ficaram pelo caminho, mas os que se mantiveram continuaram intocados e intocáveis. "Compartilhamos nostalgias", dizia ele para justificar o elo que os unia. Algumas poucas vezes participei daquelas reuniões, que eram emocionantes. Ali, o livro não tinha feito estrago algum.
Mas a fama, a pressão, tudo se fez insuportável. Defender a cidadela da privacidade se tornou uma tarefa esgotadora e, muitas vezes, vã.
No começo de 2003, Mercedes fez para mim uma conta que dá bem a dimensão do grau de solicitação e de assédio a que García Márquez era submetido: ao longo de um ano, foram 115 convites para eventos que iam de feiras de livros a conferências e homenagens, 150 pedidos de entrevistas, 28 propostas para entrevistas filmadas - por semana.
E isso apenas na casa deles, na Cidade do México, sem contar o que aterrissava no escritório de sua agente literária, Carmen Balcells, em Barcelona.
Qual era a relação dele com "Cem Anos de Solidão"? Não exatamente boa. Certa vez, disse que sentia uma espécie de rancor: "Ele quase destroçou a minha vida. Depois de publicado, nada foi como antes". E esclareceu: a fama perturba o sentido da realidade, talvez quase tanto como o poder, e além do mais é uma ameaça constante à vida privada.
Queixava-se do peso de não mais poder dizer as coisas de maneira espontânea, de se ver obrigado a viver na defensiva. Em 1970, deixou de escrever cartas. Descobriu que alguém, cujo nome não revelou, havia vendido cartas suas para uma universidade dos Estados Unidos. A partir de então, só falava com os amigospor telefone.
Teve clara noção do que seria essa transformação sem volta numa noite de 1967 , dias depois da publicação do livro, durante uma festa em Buenos Aires. Quis conversar com Rodolfo Walsh, um velho companheiro da época pioneira da Prensa Latina, quando os dois moravam na Havana do começo da revolução. Mas havia tanta gente, tanto ruído, tanto borboletear ao redor do escritor subitamente famoso, que não conseguiram. Ficaram, atônitos e desolados, olhando um para o outro.
Nunca mais se viram.
Foi, contou ele, a despedida da solidão. Sentiu que, a partir daquele dia, jamais conseguiria ficar sozinho.
Ou, quem sabe, tenha sido exatamente o contrário: a partir daquela noite, nunca mais deixou de viver na solidão da fama absoluta, arrasadora. Lutando, sempre, para continuar a ser o mesmo de antes. Sabendo que era uma tarefa impossível, mas que tinha de ser tentada. Porque, tentando, no fundo da sua alma ele continuou a ser o Gabo de sempre.
Eric Nepomuceno é autor, entre outros, de "Antologia Pessoal" e "A Memória de Todos Nós", ambos editados pela Record. Traduziu vários livros de Gabriel García Márquez.
FONTE: Valor Econômico
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