sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Versão em português da entrevista da historiadora Anita Prestes à revista cubana "La Jiribilla" (janeiro de 2017)

Anita Prestes, o legado de um país

Anita Prestes tem dedicado a vida a investigar e documentar a vida de seus pais, Luiz Carlos Prestes e Olga Benario, figuras quase míticas na história da luta do povo brasileiro. O seu notável trabalho de historiadora e a firmeza e coerência do seu percurso político pessoal são uma muito valiosa prossecução do legado que recebeu.

Anita Prestes no Instituto Cubano de Investigación Cultural Juan Marinello, onde apresentou sua palestra "A
atualidade da Aliança Nacional Libertadora", no Seminário Internacional "Las izquierdas en América Latina durante el siglo XX" . Havana, 14 de novembro de 2016.
Anita Prestes dedicou sua vida a perpetuar a luta de seus pais pela justiça e a igualdade social, tanto a partir da teoria como em sua incansável actividade revolucionária, que a levou a viver passagens muito similares às experimentadas por seus pais, os lutadores comunistas Olga Benário e Luiz Carlos Prestes.

Sua história foi marcada pelo exílio desde o início: nasceu em uma prisão na Alemanha, para onde sua mãe foi extraditada do Brasil e, 1 ano e 2 meses depois, foi salva graças a uma campanha internacional dirigida por sua avó paterna. Passou a maior parte de sua infância o México até que conheceu seu pai, em 1945, após a amnistia dos presos políticos. Sua mãe foi assassinada nesse mesmo ano em um campo de concentração alemão.

“Minha tia e minha avó sempre me falaram dos meus pais, desde que eu era bem pequena. Nunca me esconderam nada. Fui crescendo e tomando consciência dos fatos, por isso nunca sofri um grande impacto. Formei-me em uma família comunista e segui naturalmente esse caminho, influenciada por meu pai e minhas tias”, comenta Anita.

“Sempre fomos muito perseguidos, porque existia muita repressão. Quando tinha 14 anos, parti para a União Soviética com minhas tias e fiz toda a escola secundária ali. O Brasil era muito perigoso pelas repressões, ameaças e sequestros. Voltei em 1957 com 20 anos e estudei Química Industrial na universidade”.

No entanto, mais uma vez, a jovem se veria obrigada a deixar seu país: em 1964, ocorreu o golpe de estado; em um início, Anita tentou permanecer no Brasil e trabalhar em sua profissão, porém foi impossível. Dedicou-se ao trabalho político no Partido Comunista Brasileiro e por seu activismo foi perseguida e condenada a quatro anos de prisão. O exílio a empurrou novamente e só pode regressar em 1979, quando se deu a amnistia.

“Meu regressou também nesse ano. Sempre tive muito vínculo com ele e passei a assessorar seu trabalho político. Mantive-me ajudando-o até sua morte, nos anos 90. Também deixei a Química e fiz um Doutorado em História. Minha tese foi justamente sobre a Coluna Prestes, da qual publiquei um livro que, inclusive, foi premiado aqui em Cuba. Dediquei grande parte de minha vida a trabalhar como professora e a investigar a história dos comunistas no Brasil, assim como a biografia política de meu pai, que estudei por período”, explica a destacada lutadora, que esteve em Cuba recentemente, em um evento dedicado às esquerdas latino-americanas celebrado no Instituto Juan Marinello.


Você reúne uma extensa obra consagrada à figura de seu pai. Como desenvolveu o processo investigativo, tendo em conta sua grande proximidade com Luiz Carlos Prestes tanto do ponto de vista ideológico como afectivo?

Cheguei a isso depois de investigar diferentes períodos de sua vida. No início dos anos 80, eu e uns amigos começamos a gravar entrevistas com meu pai. Este foi um material importante que utilizei bastante nos livros da Coluna; porém, também estudei muitos documentos e artigos: fui a Moscou para revisar documentos sobre a Internacional Comunista, busquei informação em vários sítios, na imprensa, em sua correspondência… a documentação foi muito variada. Tudo está nos livros, não afirmo nada que não esteja documentado, e me centro em sua actuação política, não tanto em sua vida pessoa, apenas o necessário para estabelecer o contexto.

Assim publiquei vários livros, além do da Coluna. Escrevi um sobre a Campanha Prestes, que foi dirigida por minha avó pela libertação dos presos políticos, de meus pais e, depois, a minha também. A obra percorre um período que vai de 1936 a 1945.

Treze anos atrás publicamos a correspondência de meu pai no cárcere em três volumes, que minha tia teve a preocupação de guardar e conservar. Ali existem cartas dirigidas a minha avó, a minha mãe, minhas tias e outros amigos e parentes. O que ela conseguiu salvar foi interessante, porque revela o aspecto de sua vida mais pessoal; nas cartas não podia falar de política porque eram censuradas. Os três tomos se chamam Anos tormentosos: a correspondência de Prestes na prisão.

Meu último trabalho é um livro que recopila 30 anos de investigação sobre a participação de Prestes na actividade política no Brasil. Intitula-se Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro, e doei um exemplar à biblioteca do Instituto Cubano de Investigação Cultural Juan Marinello.

Você comentou sobre a obra de seu pai, à qual dedicou não poucos volumes. Com respeito ao activismo político de sua mãe, Olga Benário, tem pensado estudar ou escrever algo?

Sobre ela apareceu recentemente um elemento muito interessante na internet, que é o seguinte: quando o Exército Soviético tomou Berlim, ocorreu uma pilhagem de guerra que incluiu o arquivo da Gestapo alemã. Este permaneceu na Rússia e há pouco tempo se produziu um convénio entre os governos russo e alemão para digitalizar esses arquivos e torná-los disponíveis na web.

Existe uma grande documentação, incluindo quase 200 escritos sobre minha mãe com muitas coisas que ninguém sabia. É a única pessoa de todos os investigados que conta com uma documentação tão ampla no arquivo d’A Internacional. A maior parte estava em alemão, mas eu não sei alemão. Então, formei uma equipe de tradução composta por vários professores de diferentes universidades do Brasil. Recentemente terminei a tradução de tudo e já estou escrevendo o livro, que espero finalizar rapidamente.

Creio que o texto será bem extenso, porque existem materiais muito interessantes e novos, entre eles, uma quantidade razoável de cartas dela e de meu pai que penso em publicar completas, documentos sobre a colaboração entre a polícia brasileira e a Gestapo, o comportamento dela nos interrogatórios e os comentários dos oficiais sobre isto… Tudo está muito bem conservado e completo, porque os alemães são muito detalhistas e organizados.

Ali estão registradas as histórias incríveis que ela inventava, quando eles queriam que falasse acerca de seu trabalho no Komintern. Como nunca disse nada sobre isso, a castigavam ainda mais, e tudo está escrito e documentado. Minha mãe foi confrontada em um interrogatório com outro comunista alemão que acabou falando, e várias vezes ela disse: “Ainda que exista gente traidora, eu jamais serei”. Manteve uma firmeza muito grande até o final, e o governo de Hitler dava mais importância a ela por ser comunista que judia.

Na literatura e no cinema também se evocou as figuras de seus pais. Estou pensando no livro de Fernando Morais, Olga, e no filme de mesmo nome baseado nesta obra, que mostrou ao mundo a história de amor de ambos combatentes…

O livro é muito bom. Inclusive, meu pai o reconhecia como uma obra feita com seriedade. Fernando Morais viajou, investigou e entrevistou muita gente que ainda estava viva naquela época, e registrou os principais arquivos; claro que tem coisas que podem ser melhoradas, porém no fundamental é um bom livro.

O filme ficou muito superficial, em minha opinião. Inclusive, o director disse em entrevista que ele não estava interessado na política, nem na história e nem na vida de Prestes, mas em contar uma história de amor que lhe parecia muito bonita. O filme revela pouco da luta pela Campanha Prestes, que foi muito importante; também mostra aspectos que não ocorreram exactamente assim, porém, por outro lado, adquiriu relevância porque denunciou ante a opinião pública do Brasil o papel de Getúlio Vargas, que normalmente era negado; e na verdade, Vargas foi o principal responsável. Outro aspecto positivo do filme é que não possui um carácter anticomunista e mostra que os comunistas são gente normal, o que é bom porque no Brasil existe uma tradição anticomunista, respaldada por muita propaganda.

O filme resgata uma história que, devido a todos os anos de ditadura, estava esquecida. As novas gerações não tinham informação destes acontecimentos e Olga alcançou a marca de ser assistido por mais de quatro milhões de brasileiros. As pessoas se emocionam muito e gostam bastante do filme porque é romântico. A repercussão foi muito grande. Eu recebi um montão de cartas e até agora é interessante como continuam exibindo com frequência o filme na TV.

Não é a primeira vez que visita nosso país. Você poderia me falar de suas primeiras aproximações com a ilha e sua relação com Cuba?

Vim pela primeira vez quando tinha apenas seis anos, durante a Campanha Prestes, e fiquei quatro meses. Minha avó conhecia os comunistas da época; o Partido Socialista Popular tinha muita força, com deputados, senadores e até ministros durante o primeiro governo de Batista. Eles convidaram minha tia, e eu vim com ela. Lembro das grandes manifestações. Eram impressionantes, com uma solidariedade que me emociona até agora porque significou um grande apoio, não em Havana, mas em outras cidades de Cuba.

Depois da Revolução, vim com uma delegação brasileira de mais de 90 pessoas, em 2 de Janeiro de 1962. Eu era estudante e lembro o desfile na Praça da Revolución. Também fomos a Santiago, Santa Clara, Pinar del Río, Camagüey, visitamos o campo, as escolas… Era uma época de muito entusiasmo. As pessoas cantavam o dia inteiro, era um ambiente diferente porque tinha recém-terminado a Campanha de Alfabetização.

A terceira vez que vim foi em 2011, para a publicação de meu livro A Coluna Prestes na Feira do Livro em Havana, e agora regressei para o evento Las izquierdas en América Latina durante el siglo XX [As esquerdas na América Latina durante o século XX], onde apresentei meu trabalho “A Actualidade da Aliança Libertadora”.

De sua posição enquanto intelectual comunista e cidadã brasileira, como avalia a situação que atravessa hoje o Brasil após o impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff?

É muito difícil depois deste golpe parlamentar. O Partido dos Trabalhadores (PT) não resolveu os problemas; melhorou um pouco a situação dos mais pobres, porém sem mobilizá-los, sem fazer-lhes tomar consciência e, agora, estão perdendo tudo. Afectou muito a propaganda dos meios de comunicação, além da corrupção no interior do Partido, da qual se aproveitaram para desmoralizá-los. O povo já não vê Dilma com simpatia. Lula ainda tem algo de prestígio, ainda que tenha decaído, porém não existe outro líder no Brasil. Nem a direita possui uma liderança. O PT contribuiu muito com a desmoralização da esquerda e do socialismo. Grande parte da população tem um espírito de repúdio à política e aos partidos, um caminho muito perigoso que a direita utilizou a seu favor.

O impeachment foi realizado de forma escandalosa e, agora, estão aprovando uma lei para limitar os gastos públicos, terminar com todas as conquistas dos trabalhadores e diminuir o dinheiro para a educação e a saúde. As escolas estão ocupadas pelos estudantes, que vêm se mobilizando mais nestes momentos, sobretudo os secundaristas e universitários. Porém, a situação é muito complicada porque o povo em geral, ainda que esteja descontente, se encontra muito desmobilizado e desorganizado, passivo e sem iniciativa.

Ainda que existam países do continente que tenham avançado mais, como a Venezuela, existe uma contra-ofensiva do imperialismo. Na Venezuela, o povo vai para as ruas defender, porém Dilma não possui esse apoio. Também se produziram golpes parlamentares em Honduras e Paraguai. Sendo assim, a situação é complicada e não sei até que ponto os movimentos populares vão conseguir mudar isso. Creio que a própria violência e a situação de precariedade económica das pessoas vão levá-las a organizarem-se e lutar, porém é um processo que tarda no Brasil porque, diferente da Argentina, Chile e Uruguai, não existe tradição de organização popular, e as classes dominantes brasileiras sempre conseguiram esmagar toda tentativa de movimento popular. As insurreições são todas reprimidas com uma violência muito forte e esse é um fardo que levamos até hoje.

Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)

FONTE: ODiario.Info

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