Por Fernando Pureza
Em abril de 2016, o pré-candidato do
Partido Democrata, Bernie Sanders, foi convidado pelo Vaticano para
fazer uma fala sobre a “urgência de uma economia moral”. Sanders
declarou-se, ao longo de sua campanha, como um “socialista”, ainda que o
termo seja polissêmico – e, é claro, tenha suas particularidades num
contexto americano. Mas sua noção de “economia moral” não carregava em
si as particularidades de uma concepção socialista. De fato, o que
pautava o discurso de Sanders era justamente a ideia de uma economia
baseada “no bem comum”, um discurso bastante afinado com as críticas ao
capitalismo feitas pelo Papa Francisco[1].
Não há nada no discurso que fale sobre o controle da economia feito
pelos trabalhadores. A economia torna-se assunto no qual as autoridades
“morais” emitem os juízos sobre como devem ser as relações de trabalho, a
distribuição de riqueza e até mesmo o papel das classes sociais.
O termo “economia moral” ficou, durante
muitos anos, longe dos holofotes e sem dúvida há um anglicismo de
origem. Em 1837, o cartista Bronterre O’Brien teria usado o termo pela
primeira vez, opondo a “economia moral” aos “economistas políticos” que
“arruinaram os afetos em troca de produção e acumulação incessantes”.[2]
Em outras palavras, no século XIX se afirmava que a economia de
mercado, tal como defendida pelos smithianos, colocava os rendimentos do
capital acima dos afetos e das noções de reciprocidade conhecidas
anteriormente. Essa contestação reverberou ao longo do tempo e chegou
até mesmo em Marx, que nos seus Manuscritos Econômico Filosóficos,
afirmou que a alienação do trabalho fazia com que o trabalhador só se
sentisse livremente ativo em suas funções animais, ou seja, desprovido
dos afetos e de reciprocidades. Porém, não se pode negar que a “economia
política” triunfou ao longo do tempo sobre a “economia moral”.
Contudo, um observador do século XXI
pode se perguntar: será que essa vitória da “economia política” no
centro do capitalismo foi absoluta e atemporal? Será que sua
universalidade é incontestável? Ao que tudo indica, Sanders e o Papa
parecem discordar desse triunfo e levantaram vozes que, reivindicando a
“economia moral”, passam a questionar alguns dos pressupostos do
capitalismo contemporâneo. Mas será que a “economia moral” pode ser, de
fato, uma arma das lutas sociais contemporâneas? Ou ela se resume a um
recurso retórico pouco substancializado ainda nos discursos políticos?
A economia moral thompsoniana
Foi o historiador britânico E.P.
Thompson que trouxe à tona a possibilidade de investigar a “economia
moral” como uma “ideologia” que atribui “papeis econômicos” e que
endossa “práticas costumeiras, num equilíbrio particular de forças
sociais ou de classes”.[3]
É possível afirmar que a forma pela qual Thompson concebeu seu
argumento, ele procurou demonstrar que quando os motins da fome se
desencadearam na Inglaterra do século XVIII, eles seguiram um roteiro de
ação pré-definido. A multidão, como afirmava Thompson, não buscava o
controle da terra ou dos alimentos, mas sim reestabelecer um equilíbrio
firmado a partir dos costumes paternalistas e das antigas obrigações
feudais dos magistrados sobre o “bem viver”. Aqueles que dependiam do
trigo vendido nos mercados, que tinham direito ao “justo preço”, viram a
economia de mercado moderna se organizar e foram os primeiros a sentir
seus efeitos. Os cereais passaram a ser escondidos das feiras, os
moleiros aumentaram seus preços e a lei da oferta e da procura passou a
reger os mercados ingleses com punho de ferro.
Retomar a análise histórica de Thompson
nos ajuda a pensar justamente na ruptura do equilíbrio, um sentido muito
semelhante ao que Bernie Sanders e o Vaticano parecem compartilhar
sobre a “economia moral”. Todavia, o desequilíbrio que o historiador
britânico observa é aquele que decorre da reformulação da estratégia de
dominação política da gentry inglesa. Se, durante o
revolucionário século XVII inglês, essa nobreza latifundiária reforçou
seu paternalismo como forma de se defender da ofensiva dos camponeses
radicais “niveladores” e “cavadores” (levelles e diggers),
no século XVIII, após a restauração Stuart e a ascensão dos Hannover, a
Inglaterra viu nascer alianças cada vez mais explícitas entre
mercadores e banqueiros com a gentry, o que incentivou a
formação de uma classe proprietária de terras cada vez mais focada na
rentabilidade da propriedade e menos desejosa de reforçar os laços
patriarcais de reciprocidade. Logo, a multidão que se amotinava cobrava
dos “patrícios” que coibissem a ganância dos comerciantes que, nos novos
tempos da economia de mercado, estavam se aproveitando dos pobres.
Cabe ressaltar que, no século XVIII, as
referências da multidão para coibir as gananciosas práticas de
açambarcadores e atravessadores eram bastante plurais. Além das demandas
acerca do paternalismo e dos costumes tradicionais que recaíam sobre
magistrados e latifundiários, havia referências sobre a sacralidade da
família (não obstante, muitas mulheres emergiram como lideranças nos
motins) e uma série de elementos retirados da tradição radical puritana
que fizeram parte da vida religiosa inglesa no século XVII. Mas nenhuma
referência era mais poderosa do que o uso da violência, muitas vezes
esteticamente trabalhada a partir das canções demeritórias, efígies
queimando, castração e morte de animais, fogo em celeiros, entre outras
práticas que criavam um repertório de ações que transformavam uma
“moralidade” em algo muito maior do que uma estrutura mental. A
“economia moral” era a cobrança sobre noções de justiça que eram
compartilhadas, mas conforme as classes dirigentes passaram a aceitar os
pressupostos da “economia política” como verdades incontestáveis, as
noções de justiça de uma época tornaram-se rapidamente “subversão da
ordem” em outra.
Com o que foi colocado até agora, é
possível conceber um paradoxo sobre a “economia moral” segundo E.P.
Thompson. Em parte, ela seria um elemento reacionário, pois conceberia
uma possibilidade de retomar uma situação pré-capitalista. Por outro,
seu radicalismo pressupunha que poderia se usar da violência para coibir
as classes dirigentes a não romperem o frágil equilíbrio pelo qual as
relações de reciprocidade econômica estavam ancoradas. Esse paradoxo foi
equacionado por Peter Rogers de outra forma, pensando não em termos de
um binarismo entre “radicalidade” e “reacionarismo”, mas sim a partir de
uma compreensão da cultura camponesa como algo fragmentado e
diversificado, que incluiria tanto elementos conservadores como
inovadores e que estariam constante tensão. A “economia moral”,
portanto, agravaria essa tensão, pois colocaria elementos conservadores e
inovadores sob tensão, operando mutuamente. Em última instância, da
mesma forma que a “economia moral” poderia contemplar o passado, ela
também poderia vislumbrar um futuro alternativo.[4]
Talvez seja possível afirmar, todavia,
que essa conexão entre “passado” e “futuro” seja algo específico da
cultura camponesa europeia – algo que preocupou tanto Thompson quanto
Gramsci em suas análises sobre a hegemonia. No caso do historiador
britânico, vale ressaltar que ele procurou destacar a historicidade do
conceito de “economia moral. Porém, Thompson também afirmava que a
“economia moral” poderia ser utilizada para outros contextos, destacando
que ele poderia ser conciliado à terminologia de classe social. Assim,
ao fazer essa ligação seria possível perceber sua articulação com a
noção de hegemonia, entendida aqui como um processo “articulado nas
relações diárias de uma comunidade, sendo mantido apenas por concessão e
proteção (nos bons tempos) e, pelo menos, por gestos de amparo nos
tempos difíceis”[5].
Quando os compromissos materiais e simbólicos firmados no passado não
são mais cumpridos, a estabilidade de uma hegemonia passa a entrar em
xeque. Portanto, a “economia moral” não é somente uma referência isolada
no século XVIII inglês, mas também um elemento específico da formação
da ordem capitalista, pois ela é uma equação constante que tensiona as
obrigações das relações de dominação a partir do olhar dos de baixo.
Apontamentos para uma economia moral dos trabalhadores
Uma leitura possível sobre o fato de
Sanders e o Papa retomarem uma noção de “economia moral” em pleno século
XXI, é de que haveria aqui uma preocupação sobre a ineficácia de uma
hegemonia, ou seja, pela possibilidade dos de baixo questionarem o
frágil equilíbrio pelo que se encontram as relações de dominação.
Todavia, também é possível perceber que há uma falta de substancialidade
sobre o que seria a “economia moral” e isso abre margem para certas
dúvidas. Tanto no discurso de Sanders quanto no de Francisco, existe uma
diretriz anti-capitalista? Ou será que ambos estão operando com a ideia
de um capitalismo na sua forma hegemônica do passado, ou seja,
enraizado nas comunidades a partir de um Welfare State tipicamente
americano? Muitas das discussões sobre a tributação de grandes fortunas
trazem em seu seio essa convicção, ou seja, de que é possível uma
distribuição mais equânime da riqueza tal como ocorria na Era de Ouro do
capitalismo ocidental. Até mesmo o milionário Donald Trump, candidato à
presidência nos Estados Unidos pelo Partido Republicano chegou a
levantar a necessidade de ajustes tributários capital para as classes
dominantes em detrimento do amparo estatal sobre os trabalhadores.[6]
Mas certamente entre Trump, Sanders e o Papa Francisco I não há um
acordo claro sobre distribuição de renda – e certamente o milionário
americano não parece ser um grande adepto da “economia moral”.
Contudo, há um interessante ponto em que
todos eles se encontram: em nenhum deles há no horizonte a ideia de que
os trabalhadores e trabalhadoras deveriam controlar a economia. Sanders
talvez seja o que mais se aproxime dessa perspectiva, mas seu discurso
pressupõe uma distribuição igualitária da riqueza – e não a
coletivização dos meios de produção, por exemplo. Há uma preocupação,
nesses termos, de que possa existir um “preço justo”, um “bem-estar”, um
“bem comum”… mas nada mais do que isso. Há, em última instância, uma
profunda crítica que aponta para aquilo que Karl Polanyi chamou de
“desenraizamento da economia”, ou, em outras palavras, para o fato de
que a economia de mercado não serve às pessoas. Sendo assim, uma
“economia moral” se colocaria como uma economia “enraizada”, capaz de
lidar com o problema do “bem comum”. Mas sobre qual autoridade seria
construída essa moralidade para uma nova economia? E, mais ainda, será
que essa moralidade seria anticapitalista?
Sobre a questão da autoridade, parece
lógico que o Papa Francisco, o líder da Igreja Católica, que queira se
colocar como autoridade no tema – apesar do fato de que o Banco do
Vaticano segue sendo um dos bancos mais sigilosos do mundo. A novidade
talvez seja que Bernie Sanders também se coloque como liderança em favor
de uma “economia moral”, tendo em vista que não se esperava que no
centro do capitalismo ocidental pudesse surgir uma liderança política
capaz de questionar a imoralidade das formas de acumulação de riqueza.
Diante da formação do Welfare State americano, é possível
conceber que havia algum tipo de construção sobre o “bem comum”
existente na sociedade estadunidense, cuja responsabilidade moral
parecia recair sobre o Estado – ainda que sua força ideológica talvez
tenha sido mais expressiva do que os mecanismos do Estado para garantir o
bem-estar dos cidadãos.
Porém, desde os Reaganomics da
década de 1980, o neoliberalismo passou a ser a força motriz não só das
economias ocidentais, mas também sua forma específica ideológica,
impondo limites sobre o que seria razoável dentro da política. A fórmula
“There is no alternative” de Thatcher foi combinada com a ideia de que
“não havia uma sociedade, mas sim um conjunto de indivíduos”. Ao serem
interligadas essas máximas, as noções de “bem-estar” e “bem comum” foram
deixadas de lado do debate político no capitalismo e a força da
hegemonia neoliberal se consolidou de forma muito semelhante a
reclamação dos cartistas do século XIX: os afetos estavam agora
arruinados em troca da produção e acumulação incessantes. Nesse
contexto, conforme o Estado se ausentara da responsabilidade de definir
um “bem comum”, milhões de trabalhadores se viram em situação de
precariedade e desemprego, um fenômeno que desde 2008 passou a ganhar
uma dimensão global até mesmo no centro do capitalismo.
Porém, a multiplicidade de movimentos
que emergiram – e cada vez mais emergem – no cenário pós-2008 indicam,
no mínimo, que essa hegemonia que abstrai o “bem comum” de seu horizonte
está sendo questionada em suas próprias entranhas. Isso, por si só,
ajudaria a explicar a preocupação de Sanders e do Vaticano em conceber
uma noção de “economia moral” para o século XXI. Todavia, há um fator
ainda não explorado nessa conjuntura histórica que se abre: a dizer, a
possibilidade que os trabalhadores e trabalhadoras tornem-se os sujeitos
responsáveis por suas próprias noções “morais” sobre a economia, que
eles sejam responsáveis pela definição de um “bem comum”. Isso
implicaria, por sua vez, reconhecer que as formas pelas quais a economia
poderá voltar a se “enraizar” nas comunidades não dependeria necessária
ou exclusivamente nem do Estado, nem de um líder político e muito menos
de uma religião organizada – o que ajuda a explicar porque essa não é
uma preocupação essencial nem para Bernie Sanders e nem para o Papa
Francisco.
Para conseguir construir, portanto, uma
“economia moral dos trabalhadores” e que seja, em sua essência
anticapitalista, cabe as esquerdas tensionarem os pontos que as
“autoridades morais” não parecem dispostas a fazê-lo. Em tempos de crise
de hegemonia, procurar conceber relações econômicas amparadas na
experiência daqueles que lutam e na possibilidade de um sistema de
reciprocidade pode ser extremamente revolucionário. Até porque, o “bem
comum” concebido pelos próprios trabalhadores pode não ser o mesmo que o
Estado e a Igreja defendem. O dever das esquerdas, nesse cenário, é
justamente buscar consolidar uma “economia moral” que seja uma arma
contra a “produção e acumulação incessantes” e que construa o “bem
comum” a partir da vivência das classes subalternas.
Notas
[1] SANDERS, Bernie. The urgency of a Moral Economy: reflections on the 25th Anniversary of Centesimus Annus. 15 de abril de 2016. Ver: https://berniesanders.com/urgency-moral-economy-reflections-anniversary-centesimus-annus/
[2] THOMPSON, E.P. A economia moral revisitada. IN: THOMPSON, E.P. Costumes em comum. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2005. p. 260.
[3] Idem, p. 258.
[4] ROGERS, Peter. Stirring words, ruling ideas and the price of bread: reflections on a Gramscian-Thompsonian Approach to Cultural History. IN: Past Imperfect. Vol. 10. University of Alberta: 2004. p. 16.
[5] THOMPSON, E.P. A economia moral revisitada. In: THOMPSON, E.P. Costumes… p. 261.
[6]
LAWDER, David; DUNSMUIR, Lindsay. Trump changes tune on tax hikes for
wealthy Americans. Reuters, 9 May 2016. Disponível em: .
http://www.reuters.com/article/us-usa-election-trump-idUSKCN0XZ0I3
FONTE: Blog Junho
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