quarta-feira, 22 de junho de 2016

Por uma “economia moral dos trabalhadores”

Por Fernando Pureza


Em abril de 2016, o pré-candidato do Partido Democrata, Bernie Sanders, foi convidado pelo Vaticano para fazer uma fala sobre a “urgência de uma economia moral”. Sanders declarou-se, ao longo de sua campanha, como um “socialista”, ainda que o termo seja polissêmico – e, é claro, tenha suas particularidades num contexto americano. Mas sua noção de “economia moral” não carregava em si as particularidades de uma concepção socialista. De fato, o que pautava o discurso de Sanders era justamente a ideia de uma economia baseada “no bem comum”, um discurso bastante afinado com as críticas ao capitalismo feitas pelo Papa Francisco[1]. Não há nada no discurso que fale sobre o controle da economia feito pelos trabalhadores. A economia torna-se assunto no qual as autoridades “morais” emitem os juízos sobre como devem ser as relações de trabalho, a distribuição de riqueza e até mesmo o papel das classes sociais.

O termo “economia moral” ficou, durante muitos anos, longe dos holofotes e sem dúvida há um anglicismo de origem. Em 1837, o cartista Bronterre O’Brien teria usado o termo pela primeira vez, opondo a “economia moral” aos “economistas políticos” que “arruinaram os afetos em troca de produção e acumulação incessantes”.[2] Em outras palavras, no século XIX se afirmava que a economia de mercado, tal como defendida pelos smithianos, colocava os rendimentos do capital acima dos afetos e das noções de reciprocidade conhecidas anteriormente. Essa contestação reverberou ao longo do tempo e chegou até mesmo em Marx, que nos seus Manuscritos Econômico Filosóficos, afirmou que a alienação do trabalho fazia com que o trabalhador só se sentisse livremente ativo em suas funções animais, ou seja, desprovido dos afetos e de reciprocidades. Porém, não se pode negar que a “economia política” triunfou ao longo do tempo sobre a “economia moral”.

Contudo, um observador do século XXI pode se perguntar: será que essa vitória da “economia política” no centro do capitalismo foi absoluta e atemporal? Será que sua universalidade é incontestável? Ao que tudo indica, Sanders e o Papa parecem discordar desse triunfo e levantaram vozes que, reivindicando a “economia moral”, passam a questionar alguns dos pressupostos do capitalismo contemporâneo. Mas será que a “economia moral” pode ser, de fato, uma arma das lutas sociais contemporâneas? Ou ela se resume a um recurso retórico pouco substancializado ainda nos discursos políticos?

A economia moral thompsoniana

Foi o historiador britânico E.P. Thompson que trouxe à tona a possibilidade de investigar a “economia moral” como uma “ideologia” que atribui “papeis econômicos” e que endossa “práticas costumeiras, num equilíbrio particular de forças sociais ou de classes”.[3] É possível afirmar que a forma pela qual Thompson concebeu seu argumento, ele procurou demonstrar que quando os motins da fome se desencadearam na Inglaterra do século XVIII, eles seguiram um roteiro de ação pré-definido. A multidão, como afirmava Thompson, não buscava o controle da terra ou dos alimentos, mas sim reestabelecer um equilíbrio firmado a partir dos costumes paternalistas e das antigas obrigações feudais dos magistrados sobre o “bem viver”. Aqueles que dependiam do trigo vendido nos mercados, que tinham direito ao “justo preço”, viram a economia de mercado moderna se organizar e foram os primeiros a sentir seus efeitos. Os cereais passaram a ser escondidos das feiras, os moleiros aumentaram seus preços e a lei da oferta e da procura passou a reger os mercados ingleses com punho de ferro.

Retomar a análise histórica de Thompson nos ajuda a pensar justamente na ruptura do equilíbrio, um sentido muito semelhante ao que Bernie Sanders e o Vaticano parecem compartilhar sobre a “economia moral”. Todavia, o desequilíbrio que o historiador britânico observa é aquele que decorre da reformulação da estratégia de dominação política da gentry inglesa. Se, durante o revolucionário século XVII inglês, essa nobreza latifundiária reforçou seu paternalismo como forma de se defender da ofensiva dos camponeses radicais “niveladores” e “cavadores” (levelles e diggers), no século XVIII, após a restauração Stuart e a ascensão dos Hannover, a Inglaterra viu nascer alianças cada vez mais explícitas entre mercadores e banqueiros com a gentry, o que incentivou a formação de uma classe proprietária de terras cada vez mais focada na rentabilidade da propriedade e menos desejosa de reforçar os laços patriarcais de reciprocidade. Logo, a multidão que se amotinava cobrava dos “patrícios” que coibissem a ganância dos comerciantes que, nos novos tempos da economia de mercado, estavam se aproveitando dos pobres.

Cabe ressaltar que, no século XVIII, as referências da multidão para coibir as gananciosas práticas de açambarcadores e atravessadores eram bastante plurais. Além das demandas acerca do paternalismo e dos costumes tradicionais que recaíam sobre magistrados e latifundiários, havia referências sobre a sacralidade da família (não obstante, muitas mulheres emergiram como lideranças nos motins) e uma série de elementos retirados da tradição radical puritana que fizeram parte da vida religiosa inglesa no século XVII. Mas nenhuma referência era mais poderosa do que o uso da violência, muitas vezes esteticamente trabalhada a partir das canções demeritórias, efígies queimando, castração e morte de animais, fogo em celeiros, entre outras práticas que criavam um repertório de ações que transformavam uma “moralidade” em algo muito maior do que uma estrutura mental. A “economia moral” era a cobrança sobre noções de justiça que eram compartilhadas, mas conforme as classes dirigentes passaram a aceitar os pressupostos da “economia política” como verdades incontestáveis, as noções de justiça de uma época tornaram-se rapidamente “subversão da ordem” em outra.

Com o que foi colocado até agora, é possível conceber um paradoxo sobre a “economia moral” segundo E.P. Thompson. Em parte, ela seria um elemento reacionário, pois conceberia uma possibilidade de retomar uma situação pré-capitalista. Por outro, seu radicalismo pressupunha que poderia se usar da violência para coibir as classes dirigentes a não romperem o frágil equilíbrio pelo qual as relações de reciprocidade econômica estavam ancoradas. Esse paradoxo foi equacionado por Peter Rogers de outra forma, pensando não em termos de um binarismo entre “radicalidade” e “reacionarismo”, mas sim a partir de uma compreensão da cultura camponesa como algo fragmentado e diversificado, que incluiria tanto elementos conservadores como inovadores e que estariam constante tensão. A “economia moral”, portanto, agravaria essa tensão, pois colocaria elementos conservadores e inovadores sob tensão, operando mutuamente. Em última instância, da mesma forma que a “economia moral” poderia contemplar o passado, ela também poderia vislumbrar um futuro alternativo.[4]

Talvez seja possível afirmar, todavia, que essa conexão entre “passado” e “futuro” seja algo específico da cultura camponesa europeia – algo que preocupou tanto Thompson quanto Gramsci em suas análises sobre a hegemonia. No caso do historiador britânico, vale ressaltar que ele procurou destacar a historicidade do conceito de “economia moral. Porém, Thompson também afirmava que a “economia moral” poderia ser utilizada para outros contextos, destacando que ele poderia ser conciliado à terminologia de classe social. Assim, ao fazer essa ligação seria possível perceber sua articulação com a noção de hegemonia, entendida aqui como um processo “articulado nas relações diárias de uma comunidade, sendo mantido apenas por concessão e proteção (nos bons tempos) e, pelo menos, por gestos de amparo nos tempos difíceis”[5]. Quando os compromissos materiais e simbólicos firmados no passado não são mais cumpridos, a estabilidade de uma hegemonia passa a entrar em xeque. Portanto, a “economia moral” não é somente uma referência isolada no século XVIII inglês, mas também um elemento específico da formação da ordem capitalista, pois ela é uma equação constante que tensiona as obrigações das relações de dominação a partir do olhar dos de baixo.

Apontamentos para uma economia moral dos trabalhadores

Uma leitura possível sobre o fato de Sanders e o Papa retomarem uma noção de “economia moral” em pleno século XXI, é de que haveria aqui uma preocupação sobre a ineficácia de uma hegemonia, ou seja, pela possibilidade dos de baixo questionarem o frágil equilíbrio pelo que se encontram as relações de dominação. Todavia, também é possível perceber que há uma falta de substancialidade sobre o que seria a “economia moral” e isso abre margem para certas dúvidas. Tanto no discurso de Sanders quanto no de Francisco, existe uma diretriz anti-capitalista? Ou será que ambos estão operando com a ideia de um capitalismo na sua forma hegemônica do passado, ou seja, enraizado nas comunidades a partir de um Welfare State tipicamente americano? Muitas das discussões sobre a tributação de grandes fortunas trazem em seu seio essa convicção, ou seja, de que é possível uma distribuição mais equânime da riqueza tal como ocorria na Era de Ouro do capitalismo ocidental. Até mesmo o milionário Donald Trump, candidato à presidência nos Estados Unidos pelo Partido Republicano chegou a levantar a necessidade de ajustes tributários capital para as classes dominantes em detrimento do amparo estatal sobre os trabalhadores.[6] Mas certamente entre Trump, Sanders e o Papa Francisco I não há um acordo claro sobre distribuição de renda – e certamente o milionário americano não parece ser um grande adepto da “economia moral”.

Contudo, há um interessante ponto em que todos eles se encontram: em nenhum deles há no horizonte a ideia de que os trabalhadores e trabalhadoras deveriam controlar a economia. Sanders talvez seja o que mais se aproxime dessa perspectiva, mas seu discurso pressupõe uma distribuição igualitária da riqueza – e não a coletivização dos meios de produção, por exemplo. Há uma preocupação, nesses termos, de que possa existir um “preço justo”, um “bem-estar”, um “bem comum”… mas nada mais do que isso. Há, em última instância, uma profunda crítica que aponta para aquilo que Karl Polanyi chamou de “desenraizamento da economia”, ou, em outras palavras, para o fato de que a economia de mercado não serve às pessoas. Sendo assim, uma “economia moral” se colocaria como uma economia “enraizada”, capaz de lidar com o problema do “bem comum”. Mas sobre qual autoridade seria construída essa moralidade para uma nova economia? E, mais ainda, será que essa moralidade seria anticapitalista?

Sobre a questão da autoridade, parece lógico que o Papa Francisco, o líder da Igreja Católica, que queira se colocar como autoridade no tema – apesar do fato de que o Banco do Vaticano segue sendo um dos bancos mais sigilosos do mundo. A novidade talvez seja que Bernie Sanders também se coloque como liderança em favor de uma “economia moral”, tendo em vista que não se esperava que no centro do capitalismo ocidental pudesse surgir uma liderança política capaz de questionar a imoralidade das formas de acumulação de riqueza. Diante da formação do Welfare State americano, é possível conceber que havia algum tipo de construção sobre o “bem comum” existente na sociedade estadunidense, cuja responsabilidade moral parecia recair sobre o Estado – ainda que sua força ideológica talvez tenha sido mais expressiva do que os mecanismos do Estado para garantir o bem-estar dos cidadãos.

Porém, desde os Reaganomics da década de 1980, o neoliberalismo passou a ser a força motriz não só das economias ocidentais, mas também sua forma específica ideológica, impondo limites sobre o que seria razoável dentro da política. A fórmula “There is no alternative” de Thatcher foi combinada com a ideia de que “não havia uma sociedade, mas sim um conjunto de indivíduos”. Ao serem interligadas essas máximas, as noções de “bem-estar” e “bem comum” foram deixadas de lado do debate político no capitalismo e a força da hegemonia neoliberal se consolidou de forma muito semelhante a reclamação dos cartistas do século XIX: os afetos estavam agora arruinados em troca da produção e acumulação incessantes. Nesse contexto, conforme o Estado se ausentara da responsabilidade de definir um “bem comum”, milhões de trabalhadores se viram em situação de precariedade e desemprego, um fenômeno que desde 2008 passou a ganhar uma dimensão global até mesmo no centro do capitalismo.

Porém, a multiplicidade de movimentos que emergiram – e cada vez mais emergem – no cenário pós-2008 indicam, no mínimo, que essa hegemonia que abstrai o “bem comum” de seu horizonte está sendo questionada em suas próprias entranhas. Isso, por si só, ajudaria a explicar a preocupação de Sanders e do Vaticano em conceber uma noção de “economia moral” para o século XXI. Todavia, há um fator ainda não explorado nessa conjuntura histórica que se abre: a dizer, a possibilidade que os trabalhadores e trabalhadoras tornem-se os sujeitos responsáveis por suas próprias noções “morais” sobre a economia, que eles sejam responsáveis pela definição de um “bem comum”. Isso implicaria, por sua vez, reconhecer que as formas pelas quais a economia poderá voltar a se “enraizar” nas comunidades não dependeria necessária ou exclusivamente nem do Estado, nem de um líder político e muito menos de uma religião organizada – o que ajuda a explicar porque essa não é uma preocupação essencial nem para Bernie Sanders e nem para o Papa Francisco.

Para conseguir construir, portanto, uma “economia moral dos trabalhadores” e que seja, em sua essência anticapitalista, cabe as esquerdas tensionarem os pontos que as “autoridades morais” não parecem dispostas a fazê-lo. Em tempos de crise de hegemonia, procurar conceber relações econômicas amparadas na experiência daqueles que lutam e na possibilidade de um sistema de reciprocidade pode ser extremamente revolucionário. Até porque, o “bem comum” concebido pelos próprios trabalhadores pode não ser o mesmo que o Estado e a Igreja defendem. O dever das esquerdas, nesse cenário, é justamente buscar consolidar uma “economia moral” que seja uma arma contra a “produção e acumulação incessantes” e que construa o “bem comum” a partir da vivência das classes subalternas.

Notas
[1] SANDERS, Bernie. The urgency of a Moral Economy: reflections on the 25th Anniversary of Centesimus Annus. 15 de abril de 2016. Ver: https://berniesanders.com/urgency-moral-economy-reflections-anniversary-centesimus-annus/
[2] THOMPSON, E.P. A economia moral revisitada. IN: THOMPSON, E.P. Costumes em comum. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2005. p. 260.
[3] Idem, p. 258.
[4] ROGERS, Peter. Stirring words, ruling ideas and the price of bread: reflections on a Gramscian-Thompsonian Approach to Cultural History. IN: Past Imperfect. Vol. 10. University of Alberta: 2004. p. 16.
[5] THOMPSON, E.P. A economia moral revisitada. In: THOMPSON, E.P. Costumes… p. 261.
[6] LAWDER, David; DUNSMUIR, Lindsay. Trump changes tune on tax hikes for wealthy Americans. Reuters, 9 May 2016. Disponível em: . http://www.reuters.com/article/us-usa-election-trump-idUSKCN0XZ0I3

FONTE: Blog Junho
 

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