Por Atílio Boron*
Não necessariamente os setores populares que melhoraram sua situação sócio-econômica e cultural graças à ação dos governos progressistas e de esquerda os recompensarão com seu voto, e na Argentina do primeiro turno presidencial isso foi perceptível.
O resultado do
primeiro turno das eleições presidenciais na Argentina, no dia 25 de
outubro, não foi um raio em dia sereno. Um difuso mas penetrante mal
estar social já vinha se instalando na sociedade, em meio à crise geral
do capitalismo, devido às restrições econômicas impostas à Argentina com
o esgotamento do boom das commodities, e à tenaz ofensiva
midiática para desestabilizar o governo. Era apenas questão de tempo
para que esta situação se expressasse no terreno eleitoral.
Já nas
eleições primárias, realizadas em 9 de agosto, havia um sinal de
alerta, mas que não foi percebido e nem analisado pelos apoiadores do
governo com o rigor requerido pelas circunstâncias. Prevaleceu uma
atitude que, para sermos benévolos, poderíamos qualificar como
“negacionista”, em que a autocrítica e a possibilidade de fazer
correções estiveram ausentes. As consequências, estamos hoje
lamentando.
Me concentrarei, nesta breve análise, em alguns
aspectos mais relacionados com a estratégia e a tática de luta política
adotada pela Frente para la Victoria – FpV [coalização formada pelo
governo da presidente Cristina Kirchner, em torno do candidato Daniel
Scioli) nestes últimos meses.
Deixo para outro momento um balanço
da experiência kirchnerista em sua integralidade e com suas múltiplas
contradições: renda básica paga segundo número de filhos ("asignación
universal por hijo") e concentração empresarial; extensão do regime de
aposentaria e regressão tributária; desenvolvimento científico e
tecnológico (ARSAT I e II – satélites argentinos) e a substituição dos
cultivos tradicionais pelo plantio de soja na agricultura; orientação
latinoamericanista da política externa e a “estrangeirização” da
economia. Já disse coisas a este respeito no passado e não vem ao caso
reiterá-las nesta ocasião. Voltarei à este tema em textos futuros, sem a
pressão do momento atual.
Tampouco vou me referir, por exemplo, a
questões que remetem a um arco temporal que transcenda a atual
conjuntura eleitoral, como, por exemplo, a chamativa incapacidade para
construir um sujeito político e fazer do movimento “Unidos y
Organizados” uma verdadeira força plural e frentista e não uma concha
vazia cuja única missão foi apoiar, sem nenhuma eficácia prática, as
medidas do governo.
Ou mesmo a assombrosa incapacidade de
preparar, ao final de doze anos de governo, uma liderança de mudança que
não fosse Daniel Scioli, um político nascido nas entranhas do
menemismo. Ou a atitude suicida, mantida até há poucos meses, de
desqualificar e até ridicularizar aquele que, ao final, era o único
candidato com o qual contava o kirchnerismo para enfrentar a arriscada
sucessão presidencial. Ou seja, atacou-se um personagem contra a qual
não se poupou nenhum tipo de ofensa ou humilhação, sem que se
percebesse, na alegre ofuscação dos cortesãos do poder, que ele era a
única carta que contavam e que pouco depois teriam de vergonhosamente
grudar-se a ele, numa tentativa desesperada de “salvar o projeto”. Deixo
para a imaginação dos leitores a qualificação desta atitude.
Mais
recentemente cometeram-se vários erros de estratégia política com
projeções incalculáveis: para começar, a decisão de não apoiar Martín
Lousteau no segundo turno da eleição municipal de Buenos Aires contra
Horacio Rodríguez Larreta, o pupilo daquele que hoje aparece como o
provável carrasco do kirchnerismo. Se Lousteau tivesse sido apoiado,
deixando de lado um fundamentalismo absurdo, os partidários conservdores
do candidato presidencial Maurício Macri teriam perdido a cidade de
Buenos Aires e a própria candidatura de seu líder estaria muito
enfraquecida.
Essa cegueira da FpV, da qual participaram desde a
Casa Rosada até o último militante, foi uma benção para a direita já que
a permitiu nada menos do que conservar sob seu poder a cidade de Buenos
Aires e salvar sua principal lança política. Poucos casos de miopia
política podem se igualar a este.
Mas a corrida de erros não
parou por ai. Com a intenção de garantir a pureza ideológica da fórmula
kirchnerista, e diante da desconfiança suscitada pelo candidato
governista Daniel Scioli, e sua sinuosa trajetória política, não houve
melhor ideia que a de propor Carlos Zannini como candidato a
vice-presidente. A preferência pelo secretario legal e técnico da
Presidência configurou uma “fórmula kirchnerista pura”, boa para
apaziguar a ansiedade dos próprios militantes, mas absolutamente incapaz
de captar um único voto fora do universo político do kirchnerismo.
Esta
decisão passou longe de tudo o que ensinam os manuais da sociologia
eleitoral, que dizem que para se obter uma maioria é preciso apresentar
uma proposta política capaz de atrair a vontade não apenas dos já
convencidos – o núcleo duro de uma força partidária – mas também
daqueles que podem ser atraídos por outras razões: rejeição às forças
anti-kirchneristas, cálculo oportunista ou tendência de “votar no
vencedor”, entre muitas outras. Mas a chapa Scioli-Zannini fechava todas
estas portas, como se comprovou no dia das eleições e era incapaz de
evitar o temido segundo turno.
Antes ainda, agrega-se outro erro
inexplicável: a teimosia em propor como candidato a governador da
crucial província de Buenos Aires, que com quase 38% dos votos nacionais
é a mãe de todas as batalhas políticas na Argentina, o chefe da Casa
Civil da Presidência, Aníbal Fernández. Este foi vítima de uma tenaz e
imoral campanha de desprestígio que o converteu no personagem com a
maior imagem negativa da província. Apesar disso insistiu-se numa
candidatura que apenas representava os próprios governistas e que perdia
completamente de vista o complexo panorama eleitoral da província.
O
resultado foi uma derrota final pelas mãos de uma candidata opositora,
María Eugenia Vidal, que carecia de experiência neste distrito já que
havia sido durante os últimos oito anos vice-chefa de governo da cidade
de Buenos Aires, acompanhando Maurício Macri.
É justo reconhecer
que nesta derrota existem responsabilidades concorrentes: a má imagem de
Aníbal se encontrou com a pobre gestão de Scioli na província. Se esta
tivesse sido um pouco melhor, Vidal não teria alcançado o governo. Por
exemplo, se no lugar de dotar a província com os tão publicizados 85 mil
novos policiais Scioli tivesse designado um valor igual de novos
professores, certamente haveria outro resultado. De todas as formas, é
difícil entender as razões de tão perniciosa e custosa teimosia de se
manter a candidatura de Aníbal Fernández nestas circunstâncias.
Por
último, nesta breve história, outro erro foi a decisão de fazer com que
Scioli se desdobrasse para ser o mais parecido possível com Cristina em
sua campanha, cujo eixo central foi a árdua defesa da gestão
presidencial, sem nenhuma projeção ao futuro. Contra aqueles que
propunham como slogan a mudança – daí o nome da alinça direitista:
“Mudemos” -, Scioli aparecia como um político triste e titubeante, na
defensiva, e historicamente maltratado pela presidenta e seu entorno.
Debilitado
pelas críticas vindas da Casa Rosada, do movimento La Cámpora, da Carta
Abierta, e com um livreto que o condenava a posicionar-se como um fiel
defensor do “projeto”, sem a menor possibilidade de alusão a tudo o que
faltava fazer no mesmo, como uma reforma tributária integral, a
estatização do comércio exterior e a implementação de uma política
heterodoxa anti-inflacionária que evitasse que se espremesse uma parte
nada desdenhável do numeroso investimento social do governo de Cristina
Fernández. Os resultados estão à vista.
Haveria outras questões a
apontar, como a não presença nos debates com os outros candidatos
presidenciais, e o anuncio oportunista, feito em cima da hora, de
duplicar a faixa de salários isenta de impostos, algo que o governo
deveria ter feito há muito tempo. Em todo caso, parece que algumas
mudanças ocorridas na estrutura social argentina e no clima cultural
imperante no país, fortemente impulsionados pelo terrorismo midiático
lançado pela direita; mudanças produzidas precisamente pelas políticas
de inclusão social do governo de Cristina Fernández, não operaram na
direção de dar maior sustentabilidade ao projeto. Ao contrário,
reproduziu-se a tendências já observada em países como Brasil, Bolívia,
Equador e Venezuela: ela certamente não haveriam de passar longe da
Argentina.
Não necessariamente os setores populares que melhoraram
sua situação sócio-econômica e cultural graças à ação dos governos
progressistas e de esquerda os recompensarão com seu voto, e na
Argentina do dia 25/10 isso foi perceptível. Há tempos que advertimos
que, diante da ausência de uma trabalho sistemático de conscientização e
de formação ideológica – a célebre “batalha das ideias” de Fidel – a
explosão do consumo não cria hegemonia política — ao contrário, termina
engrossando as fileiras dos partidos de direita.
Dito isto,
reverter o que ocorreu no primeiro turno desta eleição aparece como algo
bastante difícil mas não impossível. Deve-se tentar, para evitar que a
Argentina seja a ponta de lança de um processo que, agora sim, poderia
ser o início do “fim do ciclo” progressista na região, algo que até
poucos dias parecia improvável.
Se o candidato kirchnerista for
derrotado no segundo turno, [marcado para 22/11], será a primeira vez
que um governo progressista ou de esquerda é vencido nas urnas desde a
vitória inaugural de Hugo Chávez, em dezembro de 1998. Até agora, todos
estes governos foram ratificados nas urnas e seria lamentável que a
Argentina rompesse com esta tendência positiva. Temos uma
resposibilidade regional da qual não podemos nos esquivar: uma vitória
de Macri seria uma golpe mortal para a União de Nações da América do Sul
(Unasul), a Comunidade de Estados Latino-americanos e do Caribe (Celac)
e até mesmo o Mercosul.
Além disso, a Argentina se realinharia
incondicionalmente ao império e este, por sua vez, redobraria sua
ofensiva contra os governos bolivarianos, cada vez mais privados de
apoios externos.
Como latino-americano e marxista não posso ser
indiferente ante a ameaça que representa um eventual governo de Macri,
que se uniria imediamente à Álvaro Uribe, José M. Aznar e seus mentores
norte-americanos em sua persistente cruzada para erradicar da face da
terra o chavismo, os governos de Evo e Correa e para promover uma
“mudança de regime” em Cuba. Quer dizer, para liquidar definitivamente
todo rastro de anti-imperialismo na América Latina.
Ninguém
genuinamente situado na esquerda política poderia contemplar
distraidamente esta possibilidade sem empenhar-se em enfrentá-la com
todas as forças. Desgraçadamente, chegado a este ponto, não temos
melhores opções que apoiar a FpV para espantar o risco de um mal maior,
sabendo, contudo, que se lograrmos triunfar neste empenho teremos a
tarefa de imediatamente construir uma verdadeira alternativa política de
esquerda — porque o kirchnerismo, com seus acertos, seus erros e suas
limitações ideológicas, não é e nem pode ser esta alternativa.
Scioli
conseguirá vencer seu adversário no segundo turno? Dependerá de como
desenhe sua estratégia de campanha. Os dois debates com Macri podem ser a
chave do triunfo, se for capaz de passar à ofensiva e demonstrar que
por trás da vagueza discursiva de seu oponente esconde-se um brutal
programa de “ajuste”. Mas isso não será suficiente.
Scioli terá
também que deixar de circunscrever seu discurso à defesa da obra do
kirchnerismo (algo para o qual a presidenta Cristina Fernández não
precisa de ajuda, porque o faz infinitamente melhor que ele); definir
novas prioridades e sair com propostas concretas em matéria econômica,
social, cultural e internacional que lhe permitam persuadir a opinião
pública de que ele será o presidente que começará a fazer tudo aquilo
que o kirchnerismo, em outros momentos, reconhecia que ainda restavam
para ser feito e que não fez.
E que diga com convicção, sem pedir
permissão de ninguém e nem esperar cumprimentos afetuosos da Casa
Rosada. É uma tarefa difícil, mas não impossível. À sua frente não está
um De Gaulle, ou um Churchill, mas um insosso produto de um marketing
político astuto, apoiado no aparato publicitário da direita imperial.
Repito: é difícil, mas está longe de ser impossível. Espero que se dê
bem porque, apesar de alguns se empenharem em negar, neste segundo turno
também está em jogo o futuro dos processos emancipatórios e das lutas
anti-imperialistas na América Latina.
*Atílio Boron é
sociólogo e jornalista argentino, com doutorado em Ciência Política pela
Universidade de Harvard. É autor de diversos livros de orientação
marxista com um compromisso claro com o socialismo na América Latina.
**Tradução Akira Pinto Medeiros, para o Outras Palavras.
FONTE: Brasil de Fato
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