terça-feira, 17 de novembro de 2015

Na eleição argentina, encruzilhada da América do Sul

Por Atílio Boron*

 Não necessariamente os setores populares que melhoraram sua situação sócio-econômica e cultural graças à ação dos governos progressistas e de esquerda os recompensarão com seu voto, e na Argentina do primeiro turno presidencial isso foi perceptível.







O resultado do primeiro turno das eleições presidenciais na Argentina, no dia 25 de outubro, não foi um raio em dia sereno. Um difuso mas penetrante mal estar social já vinha se instalando na sociedade, em meio à crise geral do capitalismo, devido às restrições econômicas impostas à Argentina com o esgotamento do boom das commodities, e à tenaz ofensiva midiática para desestabilizar o governo. Era apenas questão de tempo para que esta situação se expressasse no terreno eleitoral.


Já nas eleições primárias, realizadas em 9 de agosto, havia um sinal de alerta, mas que não foi percebido e nem analisado pelos apoiadores do governo com o rigor requerido pelas circunstâncias. Prevaleceu uma atitude que, para sermos benévolos, poderíamos qualificar como “negacionista”, em que a autocrítica e a possibilidade de fazer correções  estiveram ausentes. As consequências, estamos hoje lamentando.

Me concentrarei, nesta breve análise, em alguns aspectos mais relacionados com a estratégia e a tática de luta política adotada pela Frente para la Victoria – FpV [coalização formada pelo governo da presidente Cristina Kirchner, em torno do candidato Daniel Scioli) nestes últimos meses.

Deixo para outro momento um balanço da experiência kirchnerista em sua integralidade e com suas múltiplas contradições: renda básica paga segundo número de filhos ("asignación universal por hijo") e concentração empresarial; extensão do regime de aposentaria e regressão tributária; desenvolvimento científico e tecnológico (ARSAT I e II – satélites argentinos) e a substituição dos cultivos tradicionais pelo plantio de soja na agricultura; orientação latinoamericanista da política externa e a “estrangeirização” da economia. Já disse coisas a este respeito no passado e não vem ao caso reiterá-las nesta ocasião. Voltarei à este tema em textos futuros, sem a pressão do momento atual.

Tampouco vou me referir, por exemplo, a questões que remetem a um arco temporal que transcenda a atual conjuntura eleitoral, como, por exemplo, a chamativa incapacidade para construir um sujeito político e fazer do movimento “Unidos y Organizados” uma verdadeira força plural e frentista e não uma concha vazia cuja única missão foi apoiar, sem nenhuma eficácia prática, as medidas do governo.

Ou mesmo a assombrosa incapacidade de preparar, ao final de doze anos de governo, uma liderança de mudança que não fosse Daniel Scioli, um político nascido nas entranhas do menemismo. Ou a atitude suicida, mantida até há poucos meses, de desqualificar e até ridicularizar aquele que, ao final, era o único candidato com o qual contava o kirchnerismo para enfrentar a arriscada sucessão presidencial. Ou seja, atacou-se um personagem contra a qual não se poupou nenhum tipo de ofensa ou humilhação, sem que se percebesse, na alegre ofuscação dos cortesãos do poder, que ele era a única carta que contavam e que pouco depois teriam de vergonhosamente grudar-se a ele, numa tentativa desesperada de “salvar o projeto”. Deixo para a imaginação dos leitores a qualificação desta atitude.

Mais recentemente cometeram-se vários erros de estratégia política com projeções incalculáveis: para começar, a decisão de não apoiar Martín Lousteau no segundo turno da eleição municipal de Buenos Aires contra Horacio Rodríguez Larreta, o pupilo daquele que hoje aparece como o provável carrasco do kirchnerismo. Se Lousteau tivesse sido apoiado, deixando de lado um fundamentalismo absurdo, os partidários conservdores do candidato presidencial Maurício Macri teriam perdido a cidade de Buenos Aires e a própria candidatura de seu líder estaria muito enfraquecida.

Essa cegueira da FpV, da qual participaram desde a Casa Rosada até o último militante, foi uma benção para a direita já que a permitiu nada menos do que conservar sob seu poder a cidade de Buenos Aires e salvar sua principal lança política. Poucos casos de miopia política podem se igualar a este. 

Mas a corrida de erros não parou por ai. Com a intenção de garantir a pureza ideológica da fórmula kirchnerista, e diante da desconfiança suscitada pelo candidato governista Daniel Scioli, e sua sinuosa trajetória política, não houve melhor ideia que a de propor Carlos Zannini como candidato a vice-presidente. A preferência pelo secretario legal e técnico da Presidência configurou uma “fórmula kirchnerista pura”, boa para apaziguar a ansiedade dos próprios militantes, mas absolutamente incapaz de captar um único voto fora do universo político do kirchnerismo.

Esta decisão passou longe de tudo o que ensinam os manuais da sociologia eleitoral, que dizem que para se obter uma maioria é preciso apresentar uma proposta política capaz de atrair a vontade não apenas dos já convencidos – o núcleo duro de uma força partidária – mas também daqueles que podem ser atraídos por outras razões: rejeição às forças anti-kirchneristas, cálculo oportunista ou tendência de “votar no vencedor”, entre muitas outras. Mas a chapa Scioli-Zannini fechava todas estas portas, como se comprovou no dia das eleições e era incapaz de evitar o temido segundo turno.

Antes ainda, agrega-se outro erro inexplicável: a teimosia em propor como candidato a governador da crucial província de Buenos Aires, que com quase 38% dos votos nacionais é a mãe de todas as batalhas políticas na Argentina, o chefe da Casa Civil da Presidência, Aníbal Fernández. Este foi vítima de uma tenaz e imoral campanha de desprestígio que o converteu no personagem com a maior imagem negativa da província. Apesar disso insistiu-se numa candidatura que apenas representava os próprios governistas e que perdia completamente de vista o complexo panorama eleitoral da província.

O resultado foi uma derrota final pelas mãos de uma candidata opositora, María Eugenia Vidal, que carecia de experiência neste distrito já que havia sido durante os últimos oito anos vice-chefa de governo da cidade de Buenos Aires, acompanhando Maurício Macri.

É justo reconhecer que nesta derrota existem responsabilidades concorrentes: a má imagem de Aníbal se encontrou com a pobre gestão de Scioli na província. Se esta tivesse sido um pouco melhor, Vidal não teria alcançado o governo. Por exemplo, se no lugar de dotar a província com os tão publicizados 85 mil novos policiais Scioli tivesse designado um valor igual de novos professores, certamente haveria outro resultado. De todas as formas, é difícil entender as razões de tão perniciosa e custosa teimosia de se manter a candidatura de Aníbal Fernández nestas circunstâncias.

Por último, nesta breve história, outro erro foi a decisão de fazer com que Scioli se desdobrasse para ser o mais parecido possível com Cristina em sua campanha, cujo eixo central foi a árdua defesa da gestão presidencial, sem nenhuma projeção ao futuro. Contra aqueles que propunham como slogan a mudança – daí o nome da alinça direitista: “Mudemos” -, Scioli aparecia como um político triste e titubeante, na defensiva, e historicamente maltratado pela presidenta e seu entorno.

Debilitado pelas críticas vindas da Casa Rosada, do movimento La Cámpora, da Carta Abierta, e com um livreto que o condenava a posicionar-se como um fiel defensor do “projeto”, sem a menor possibilidade de alusão a tudo o que faltava fazer no mesmo, como uma reforma tributária integral, a estatização do comércio exterior e a implementação de uma política heterodoxa anti-inflacionária que evitasse que se espremesse uma parte nada desdenhável do numeroso investimento social do governo de Cristina Fernández. Os resultados estão à vista.

Haveria outras questões a apontar, como a não presença nos debates com os outros candidatos presidenciais, e o anuncio oportunista, feito em cima da hora, de duplicar a faixa de salários isenta de impostos, algo que o governo deveria ter feito há muito tempo. Em todo caso, parece que algumas mudanças ocorridas na estrutura social argentina e no clima cultural imperante no país, fortemente impulsionados pelo terrorismo midiático lançado pela direita; mudanças produzidas precisamente pelas políticas de inclusão social do governo de Cristina Fernández, não operaram na direção de dar maior sustentabilidade ao projeto. Ao contrário, reproduziu-se a tendências já observada em países como Brasil, Bolívia, Equador e Venezuela: ela certamente não haveriam de passar longe da Argentina.

Não necessariamente os setores populares que melhoraram sua situação sócio-econômica e cultural graças à ação dos governos progressistas e de esquerda os recompensarão com seu voto, e na Argentina do dia 25/10 isso foi perceptível. Há tempos que advertimos que, diante da ausência de uma trabalho sistemático de conscientização e de formação ideológica – a célebre “batalha das ideias” de Fidel – a explosão do consumo não cria hegemonia política — ao contrário, termina engrossando as fileiras dos partidos de direita.
Dito isto, reverter o que ocorreu no primeiro turno desta eleição aparece como algo bastante difícil mas não impossível. Deve-se tentar, para evitar que a Argentina seja a ponta de lança de um processo que, agora sim, poderia ser o início do “fim do ciclo” progressista na região, algo que até poucos dias parecia improvável.

Se o candidato kirchnerista for derrotado no segundo turno, [marcado para 22/11], será a primeira vez que um governo progressista ou de esquerda é vencido nas urnas desde a vitória inaugural de Hugo Chávez, em dezembro de 1998. Até agora, todos estes governos foram ratificados nas urnas e seria lamentável que a Argentina rompesse com esta tendência positiva. Temos uma resposibilidade regional da qual não podemos nos esquivar: uma vitória de Macri seria uma golpe mortal para a União de Nações da América do Sul (Unasul), a Comunidade de Estados Latino-americanos e do Caribe (Celac) e até mesmo o Mercosul.

Além disso, a Argentina se realinharia incondicionalmente ao império e este, por sua vez, redobraria sua ofensiva contra os governos bolivarianos, cada vez mais privados de apoios externos.

Como latino-americano e marxista não posso ser indiferente ante a ameaça que representa um eventual governo de Macri, que se uniria imediamente à Álvaro Uribe, José M. Aznar e seus mentores norte-americanos em sua persistente cruzada para erradicar da face da terra o chavismo, os governos de Evo e Correa e para promover uma “mudança de regime” em Cuba. Quer dizer, para liquidar definitivamente todo rastro de anti-imperialismo na América Latina.

Ninguém genuinamente situado na esquerda política poderia contemplar distraidamente esta possibilidade sem empenhar-se em enfrentá-la com todas as forças. Desgraçadamente, chegado a este ponto, não temos melhores opções que apoiar a FpV para espantar o risco de um mal maior, sabendo, contudo, que se lograrmos triunfar neste empenho teremos a tarefa de imediatamente construir uma verdadeira alternativa política de esquerda — porque o kirchnerismo, com seus acertos, seus erros e suas limitações ideológicas, não é e nem pode ser esta alternativa.

Scioli conseguirá vencer seu adversário no segundo turno? Dependerá de como desenhe sua estratégia de campanha. Os dois debates com Macri podem ser a chave do triunfo, se for capaz de passar à ofensiva e demonstrar que por trás da vagueza discursiva de seu oponente esconde-se um brutal programa de “ajuste”. Mas isso não será suficiente.

Scioli terá também que deixar de circunscrever seu discurso à defesa da obra do kirchnerismo (algo para o qual a presidenta Cristina Fernández não precisa de ajuda, porque o faz infinitamente melhor que ele); definir novas prioridades e sair com propostas concretas em matéria econômica, social, cultural e internacional que lhe permitam persuadir a opinião pública de que ele será o presidente que começará a fazer tudo aquilo que o kirchnerismo, em outros momentos, reconhecia que ainda restavam para ser feito e que não fez.

E que diga com convicção, sem pedir permissão de ninguém e nem esperar cumprimentos afetuosos da Casa Rosada. É uma tarefa difícil, mas não impossível. À sua frente não está um De Gaulle, ou um Churchill, mas um insosso produto de um marketing político astuto, apoiado no aparato publicitário da direita imperial. Repito: é difícil, mas está longe de ser impossível. Espero que se dê bem porque, apesar de alguns se empenharem em negar, neste segundo turno também está em jogo o futuro dos processos emancipatórios e das lutas anti-imperialistas na América Latina.

*Atílio Boron é sociólogo e jornalista argentino, com doutorado em Ciência Política pela Universidade de Harvard. É autor de diversos livros de orientação marxista com um compromisso claro com o socialismo na América Latina.

**Tradução Akira Pinto Medeiros, para o Outras Palavras.


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