Mahommah Gardo Baquaqua, nascido no
Norte da África no início do século XIX, trabalhou no país antes de fugir em
Nova York
POR LEONARDO VIEIRA
RIO - “Que aqueles ‘indivíduos
humanitários’ que são a favor da escravidão se coloquem no lugar do escravo no
porão barulhento de um navio negreiro, apenas por uma viagem da África à
América, sem sequer experimentar mais que isso dos horrores da escravidão: se
não saírem abolicionistas convictos, então não tenho mais nada a dizer a favor
da abolição.”
As palavras são de Mahommah Gardo
Baquaqua, ex-escravo nascido no Norte da África no início do século XIX e que
trabalhou no Brasil antes de fugir das amarras da servidão em Nova York, em
1847. O trecho consta do livro “An interesting narrative. Biography of Mahommah
G. Baquaqua” (“Uma interessante narrativa: biografia de Mahommah G. Baquaqua”,
em tradução livre), lançado assim mesmo, em inglês, pelo próprio ex-escravo, em
Detroit, no ano de 1854, em plena campanha abolicionista nos EUA. A obra jamais
foi traduzida para o português, permanecendo desconhecida do público
brasileiro.
No entanto, com apoio do Ministério da
Cultura e do Consulado do Canadá, o professor pernambucano Bruno Véras, de 26
anos, resolveu se debruçar sobre o documento, ajudado por outros dois
pesquisadores. Ele viajou ao Canadá, onde buscou vestígios de Baquaqua e
consultou os originais do livro, cuja primeira edição em português deve ser
lançada no Brasil até o fim do ano que vem.
- Baquaqua sempre foi um personagem que
me intrigou. Ele escreveu a única autobiografia de um africano escravizado em
terras brasileiras. Nos EUA e na Inglaterra existem vários desses relatos, que
tinham uma função abolicionista. No Brasil, só um. E, apesar disso, Baquaqua
não é conhecido em nossa História nem em nossos livros didáticos - conta Véras.
Os historiadores Paul Lovejoy e Robin
Law, por exemplo, republicaram o livro nos anos 2000, ainda no idioma de
Shakespeare. Segundo consta dos registros da edição original, parte da obra foi
ditada para o escritor Samuel Moore, responsável também por editar a história
do escravo.
DUAS VEZES ESCRAVIZADO
A trajetória extraordinária desse
personagem começa nos anos 1820, em Dijougou, onde hoje é o Norte do Benim.
Filho de um proeminente comerciante, o pequeno Mahommah Baquaqua estudou em uma
escola islâmica para ter acesso ao Corão, adquirindo conhecimentos de leitura e
de matemática. Suas habilidades logo lhe permitiram atuar em importantes rotas
comerciais que ligavam o então califado de Socoto e o extinto Império Ashanti,
que rivalizavam no tráfico de escravos e no domínio de regiões da África
Ocidental.
Baquaqua foi preso e feito escravo pelos
Ashanti enquanto vendia grãos, noz de cola e outras especiarias para o front de
guerra. Mesmo sendo recomprado e libertado pelo seu irmão, acabou novamente
detido pouco tempo depois por tentar roubar e ingerir bebida alcoólica perto de
Dijougou, algo próximo a um pecado capital para uma localidade dominada pelo
Islã.
Baquaqua não pôde contar com a sorte
daquela vez. Novamente escravizado, foi levado para a cidade litorânea de Uidá,
importante porto de onde saía grade parte dos cativos destinados ao Novo Mundo.
É a partir desse ponto que a autobiografia ganha seus contornos mais
emocionantes:
“Quando estávamos prontos para embarcar
(para as Américas), fomos acorrentados uns aos outros e amarrados com cordas
pelo pescoço e, assim, arrastados para a beira-mar. Uma espécie de festa foi
realizada em terra firme naquele dia. Não estava ciente de que essa seria minha
última festa na África. Feliz de mim que não sabia”, escreveu o escravo.
Se, antes, os brasileiros tinham
conhecimento do ambiente de um navio negreiro por meio das descrições de
historiadores ou de famosos poemas como o de Castro Alves, agora poderão ter um
relato vivo de uma testemunha de um dos piores capítulos da História da humanidade:
“Fomos arremessados, nus, porão adentro,
os homens apinhados de um lado, e as mulheres de outro. O porão era tão baixo
que não podíamos ficar de pé, éramos obrigados a nos agachar ou nos sentar no
chão. Noite e dia eram iguais para nós, o sono nos sendo negado devido ao
confinamento de nossos corpos.”
Comida e bebida eram escassos na viagem,
havendo dias em que os escravos não ingeriam absolutamente nada. “Houve um
pobre companheiro que ficou tão desesperado pela sede que tentou apanhar a faca
do homem que nos trazia água. Foi levado ao convés, e eu nunca mais soube o que
lhe aconteceu. Suponho que tenha sido jogado ao mar”, conta Baquaqua.
A incrível jornada de Baquaqua - Editoria de Arte
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Pernambuco foi o destino do navio que
levava nosso personagem, que desembarcou em 1845. De início, foi levado para
uma lavoura nos arredores de Olinda, onde conheceu a dureza da escravidão
brasileira: “o fazendeiro tinha grande quantidade de escravos, e não demorou
muito para que eu presenciasse ele empregando livremente seu chicote contra um
rapaz. Essa cena causou-me uma impressão profunda, pois, é claro, imaginei que
em breve seria o meu destino”.
Baquaqua tratou da violência do senhor,
chamando-o de “tirano”. Trabalhando como padeiro, o escravo inicialmente
prestava os serviços com dedicação, mas ao ver que seu "patrão" nunca
ficava satisfeito, entregou-se às bebidas e evitou o serviço. Acabou revendido
para outro comerciante, desta vez no Rio de Janeiro.
"Meus companheiros não eram tão
constantes quanto eu, sendo muito dados à bebida e, por isso, eram menos
rentáveis para o senhor. Aproveitei disso para procurar elevar-me em sua
opinião, sendo muito prestativo e obediente, mas tudo em vão; fizesse o que
fizesse, descobri que servia a um tirano e nada parecia satisfazê-lo. Então
comecei a beber como os outros e, assim, éramos todos da mesma laia, mau
senhor, maus escravos."
Na capital do Império, devido aos seus
conhecimentos de matemática e literatura, o escravo atuou dentro de um navio
especializado no comércio de charque entre o Rio Grande do Sul e a Corte.
Mas foi uma encomenda de café para Nova
York que mudou sua vida completamente. Naquela época, os estados do Norte dos
Estados Unidos já tinham abolido a escravidão, fato que não passou despercebido
por Baquaqua. “A primeira palavra que meus dois companheiros e eu aprendemos em
inglês foi F-R-E-E (L-I-V-R-E); ela nos foi ensinada por um inglês a bordo e,
oh!, quantas e quantas vezes eu a repeti.”
Baquaqua tentou fugir do navio ao
desembarcar em Nova York, mas logo acabou preso. Com a ajuda de abolicionistas
locais, o escravo conseguiu escapar da prisão e rumou para o Haiti. Ficou por
lá durante dois anos, período em que se converteu ao cristianismo, ingressando
na Igreja Batista Abolicionista. De volta aos Estados Unidos, em 1850, o já
liberto africano frequentou aulas de inglês por três anos no Central College,
numa localidade então conhecida como MacGrawville, hoje parte de Nova York.
RELATO SIMILAR AO DE FILME QUE GANHOU
OSCAR
Mas foi em Detroit que Baquaqua publicou
seu livro, numa tentativa de arrecadar fundos para a campanha abolicionista. A
autobiografia - chave do seu engajamento na luta abolicionista (que o levou até
mesmo à inglesa Liverpool, em 1857, último lugar onde se teve notícia de
Baquaqua) - é contemporânea e guarda similaridade com a de Solomon Northup.
Americano nascido livre e escravizado no Sul dos Estados Unidos, ele teve sua
obra adaptada para o cinema em 2013, com o título “Doze anos de escravidão”. O
filme americano venceu o Oscar em três categorias, inclusive a de melhor longa-metragem.
- O contexto em que o livro de Solomon
Northup foi publicado é o mesmo do de Baquaqua. Abolicionistas incentivavam
ex-escravos a escrever relatos do cativeiro e mobilizar a opinião pública. Nada
melhor do que o próprio escravo para contar como era a escravidão - afirmou
Véras, que também trabalha para lançar um site somente sobre o ex-escravo,
reunindo vídeos, fotos e arquivos de época.
Essa fascinante história também virou
tema de um pequeno documentário em 2012, produzido por pesquisadores da
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em parceria com professores da rede
de ensino do estado. Paulo Alexandre, conhecido nacionalmente por reproduzir os
principais acontecimentos da Segunda Guerra Mundial no Facebook, foi um dos que
participaram da produção.
Segundo ele, o personagem pode ser
trabalhado em sala de aula como uma história de superação e de luta contra os
estereótipos em torno do escravo:
- Meus alunos ficam impressionados
quando lhes conto sobre Baquaqua, pois todos tinham aquela velha ideia de
escravo submisso, aquele indivíduo sem nome nem identidade, que só sabia
apanhar e trabalhar. Ninguém imagina que ele poderia ser uma pessoa inteligente,
empreendedora, que consegue a liberdade a partir do próprio esforço.
Assista abaixo às duas partes do
documentário de 2012.
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