domingo, 30 de novembro de 2014

David Harvey: "O que os muitos dados reunidos por Piketty fazem é sugerir que Marx está certo"

ENTREVISTA DE DAVID HARVEY PUBLICADA NO JORNAL O GLOBO DESTE SÁBADO (29/11/2014)

Geógrafo marxista, um dos principais intelectuais da esquerda, esteve no Brasil no início do mês para palestras

POR LEONARDO CAZES

RIO - Um dos principais intelectuais da esquerda hoje, o geógrafo britânico David Harvey terminou na semana passada uma maratona de eventos no Brasil, visitando cinco cidades em seis dias. No Recife, conheceu o movimento Ocupe Estelita, que se opõe ao projeto de construção de 12 torres residenciais no antigo Cais José Estelita. Em Fortaleza, falou para mais de 3 mil na Concha Acústica da Universidade Federal do Ceará (UFC). Já em São Paulo, antes de dar uma palestra no Centro Cultural São Paulo, Harvey teve um encontro com o prefeito Fernando Haddad.

Em entrevista ao GLOBO, por telefone, de Curitiba, pouco antes de sair para a penúltima palestra no país, o geógrafo falou sobre os seus dois últimos livros lançados no Brasil: “Cidades rebeldes” (Martins Fontes) e “Para entender O Capital: Livros II e III” (Boitempo). O primeiro, dividido em duas partes, discute as origens e o conceito do chamado direito à cidade e os protestos que ocuparam as ruas de Londres e Nova York, em 2011. Já “Para ler...” é a segunda e última parte do guia de leitura da principal obra de Karl Marx sobre o funcionamento do capitalismo. No ano passado, a Boitempo publicou “Para ler O Capital: Livro I”.

Por que os livros II e III de “O Capital”, de Karl Marx, são menos lidos do que o livro I?

A resposta é simples: Marx nunca terminou esses livros. Deixou apenas rascunhos desses dois livros, que foram terminados por Engels. Há muitas controvérsias sobre a qualidade do trabalho de Engels, mas pessoalmente acho que foi um enorme e monumental ato de amor editar os manuscritos. E, ao contrário do livro I, que é uma bela obra de literatura, os livros II e III não são.

No seu guia de leitura, o senhor mistura capítulos dos dois livros. Por quê?

Há várias razões. Uma delas é que Marx fez uma explicação extremamente técnica da circulação de mercadorias no livro II, mas não fala das pessoas que participam deste processo. Isso ele fará no livro III. Então, pensei que seria mais interessante juntar os aspectos técnicos da circulação e os interesses de banqueiros, financistas, etc. A segunda razão é que, dados os eventos de 2007 e 2008 no mundo das finanças, seria melhor para os leitores verem como Marx via as duas coisas, tanto os aspectos técnicos da circulação quanto a atuação dos agentes econômicos. E, a partir daí, abrir uma possibilidade de compreensão sobre o que aconteceu na crise financeira recente.

O livro do economista francês Thomas Piketty, “O capital no século XXI”, teve bastante repercussão recentemente. A que o senhor atribuir esse sucesso?

Primeiro, é preciso deixar claro que o livro de Piketty não é sobre o capitalismo. Ao lê-lo, você não vai ter a menor ideia do que levou às crises de 2007 e 2008. Sua obra é sobre a produção da desigualdade social no capitalismo. O que ele faz é mostrar que há uma tendência de níveis cada vez mais maiores de desigualdade social se nada for feito. Essa é uma das principais teses de Marx no livro I de “O Capital”: o capitalismo de livre-mercado de fato não beneficia a todos, mas sim os super ricos e empobrece a massa da população. De certa maneira, o que os muitos dados reunidos por Piketty fazem é sugerir que Marx está certo.

O senhor começou a ler “O Capital” quando fazia um trabalho sobre o problema habitacional em Baltimore, nos Estados Unidos. Como Marx nos ajuda a compreender a crise das cidades hoje?

O que eu tento fazer é uma conexão entre como a teoria de Marx compreende as contradições do capitalismo e as contradições que existem nos processos de urbanização, que sempre geram tensões na vida nas cidades. Nos últimos anos, em particular, foi fascinante ver como esses estresses da vida urbana produziram grandes irrupções em cidades do Brasil e da Turquia. Foi um profundo descontentamento com as coisas que não funcionam nas cidades que está gerando esses movimentos de protesto.

No Rio, os preços dos imóveis começaram a subir aceleradamente a partir de 2007, quando começa a crise financeira. Há uma relação entre as duas coisas?


É interessante que a crise financeira tenha eclodido nos Estados Unidos a partir da crise habitacional no sul da Califórnia, no Arizona e na Flórida. As origens das crises de 2007 e 2008 estão nos processos de urbanização. Nos EUA, o mercado habitacional tem um papel crucial para gerar crises e para solucioná-las. A partir da crise financeira, o que se observa é um movimento dos capitalistas em direção à especulação imobiliária. O aumento do preço dos imóveis não ocorreu apenas no Rio de Janeiro. Você vê o mesmo fenômeno em Londres, Nova York, Istambul. Um aumento de preços a um nível que metade da população não consegue mais viver nessas cidades.

As ruas foram o lugar por excelência dos protestos nos últimos anos em todo mundo. Por quê?

A sensação é que o grande capital controla o que acontece nas cidades e as pessoas têm muito pouco a dizer sobre o que está acontecendo. Nas cidades, o dinheiro tem sido usado para gerar mais dinheiro através do aumento dos aluguéis, da especulação imobiliária, de todo tipo de jogadas financeiras. As pessoas veem todo o sistema como ilegítimo, na medida em que ele não olha para as suas necessidades. Há uma sensação de que a política não está funcionando, a democracia não está funcionando, a economia não está funcionando.




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