ENTREVISTA DE DAVID HARVEY PUBLICADA NO JORNAL O GLOBO DESTE SÁBADO (29/11/2014)
Geógrafo marxista, um dos principais intelectuais da esquerda, esteve no Brasil no início do mês para palestras
POR LEONARDO CAZES
RIO - Um dos principais intelectuais da
esquerda hoje, o geógrafo britânico David Harvey terminou na semana passada uma
maratona de eventos no Brasil, visitando cinco cidades em seis dias. No Recife,
conheceu o movimento Ocupe Estelita, que se opõe ao projeto de construção de 12
torres residenciais no antigo Cais José Estelita. Em Fortaleza, falou para mais
de 3 mil na Concha Acústica da Universidade Federal do Ceará (UFC). Já em São
Paulo, antes de dar uma palestra no Centro Cultural São Paulo, Harvey teve um
encontro com o prefeito Fernando Haddad.
Em entrevista ao GLOBO, por telefone, de
Curitiba, pouco antes de sair para a penúltima palestra no país, o geógrafo
falou sobre os seus dois últimos livros lançados no Brasil: “Cidades rebeldes”
(Martins Fontes) e “Para entender O Capital: Livros II e III” (Boitempo). O
primeiro, dividido em duas partes, discute as origens e o conceito do chamado
direito à cidade e os protestos que ocuparam as ruas de Londres e Nova York, em
2011. Já “Para ler...” é a segunda e última parte do guia de leitura da
principal obra de Karl Marx sobre o funcionamento do capitalismo. No ano
passado, a Boitempo publicou “Para ler O Capital: Livro I”.
Por
que os livros II e III de “O Capital”, de Karl Marx, são menos lidos do que o
livro I?
A resposta é simples: Marx nunca
terminou esses livros. Deixou apenas rascunhos desses dois livros, que foram
terminados por Engels. Há muitas controvérsias sobre a qualidade do trabalho de
Engels, mas pessoalmente acho que foi um enorme e monumental ato de amor editar
os manuscritos. E, ao contrário do livro I, que é uma bela obra de literatura,
os livros II e III não são.
No
seu guia de leitura, o senhor mistura capítulos dos dois livros. Por quê?
Há várias razões. Uma delas é que Marx
fez uma explicação extremamente técnica da circulação de mercadorias no livro
II, mas não fala das pessoas que participam deste processo. Isso ele fará no
livro III. Então, pensei que seria mais interessante juntar os aspectos
técnicos da circulação e os interesses de banqueiros, financistas, etc. A
segunda razão é que, dados os eventos de 2007 e 2008 no mundo das finanças,
seria melhor para os leitores verem como Marx via as duas coisas, tanto os
aspectos técnicos da circulação quanto a atuação dos agentes econômicos. E, a
partir daí, abrir uma possibilidade de compreensão sobre o que aconteceu na
crise financeira recente.
O
livro do economista francês Thomas Piketty, “O capital no século XXI”, teve
bastante repercussão recentemente. A que o senhor atribuir esse sucesso?
Primeiro, é preciso deixar claro que o
livro de Piketty não é sobre o capitalismo. Ao lê-lo, você não vai ter a menor
ideia do que levou às crises de 2007 e 2008. Sua obra é sobre a produção da
desigualdade social no capitalismo. O que ele faz é mostrar que há uma
tendência de níveis cada vez mais maiores de desigualdade social se nada for
feito. Essa é uma das principais teses de Marx no livro I de “O Capital”: o
capitalismo de livre-mercado de fato não beneficia a todos, mas sim os super
ricos e empobrece a massa da população. De certa maneira, o que os muitos dados
reunidos por Piketty fazem é sugerir que Marx está certo.
O
senhor começou a ler “O Capital” quando fazia um trabalho sobre o problema
habitacional em Baltimore, nos Estados Unidos. Como Marx nos ajuda a
compreender a crise das cidades hoje?
O que eu tento fazer é uma conexão entre
como a teoria de Marx compreende as contradições do capitalismo e as
contradições que existem nos processos de urbanização, que sempre geram tensões
na vida nas cidades. Nos últimos anos, em particular, foi fascinante ver como
esses estresses da vida urbana produziram grandes irrupções em cidades do
Brasil e da Turquia. Foi um profundo descontentamento com as coisas que não
funcionam nas cidades que está gerando esses movimentos de protesto.
No
Rio, os preços dos imóveis começaram a subir aceleradamente a partir de 2007,
quando começa a crise financeira. Há uma relação entre as duas coisas?
É interessante que a crise financeira
tenha eclodido nos Estados Unidos a partir da crise habitacional no sul da
Califórnia, no Arizona e na Flórida. As origens das crises de 2007 e 2008 estão
nos processos de urbanização. Nos EUA, o mercado habitacional tem um papel
crucial para gerar crises e para solucioná-las. A partir da crise financeira, o
que se observa é um movimento dos capitalistas em direção à especulação
imobiliária. O aumento do preço dos imóveis não ocorreu apenas no Rio de
Janeiro. Você vê o mesmo fenômeno em Londres, Nova York, Istambul. Um aumento de
preços a um nível que metade da população não consegue mais viver nessas
cidades.
As
ruas foram o lugar por excelência dos protestos nos últimos anos em todo mundo.
Por quê?
A sensação é que o grande capital
controla o que acontece nas cidades e as pessoas têm muito pouco a dizer sobre
o que está acontecendo. Nas cidades, o dinheiro tem sido usado para gerar mais
dinheiro através do aumento dos aluguéis, da especulação imobiliária, de todo
tipo de jogadas financeiras. As pessoas veem todo o sistema como ilegítimo, na
medida em que ele não olha para as suas necessidades. Há uma sensação de que a
política não está funcionando, a democracia não está funcionando, a economia
não está funcionando.
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