Por Marcos Cesar de Oliveira Pinheiro
Para compreender um autor, é necessário conhecer
profundamente o contexto histórico-político-cultural com o qual está envolvido.
Um pensador da envergadura de Antonio Gramsci (1891-1937) requer entender o
processo de formação da sua personalidade política e intelectual. A vivência
dos momentos mais dramáticos das lutas que agitaram a Europa e,
particularmente, das mobilizações sociais, políticas e econômicas que levaram,
ao menos na Rússia, à vitória da Revolução em 1917. O progressivo deslocamento
de Gramsci da esfera de influência do neo-idealismo, destacando o
distanciamento crítico e a superação em relação ao pensamento de Benedetto
Croce e Giovanni Gentile. Seu referencial marxista assumido[1],
que o leva a formular propostas interpretativas voltadas para a explicação de
modos de dominação social em meio à dinâmica do conflito, da luta de classes. A
espinhosa interlocução crítica de Gramsci no interior do próprio marxismo e os
embates travados com as correntes mecanicistas, dogmáticas e messiânicas.[2] A problemática
gramsciana de “explicar a dominação de classes, recusando determinismos de
cunho mecanicistas e procurando explicitar mecanismos culturais (sem
reivindicar-lhes exclusividade ou determinismo de pólo inverso) que alimentam a
dominação, bem como espaços de resistência a esta dominação que se constroem em
meio às lutas de classes”.[3]
Tanto os leitores já familiarizados com Antonio
Gramsci quanto os novos, a meu ver, dispõem da necessidade de contato com os
chamados “especialistas” ou intérpretes dos escritos gramscianos. Justamente
por apresentar-se – nas palavras do próprio autor – como um conjunto de notas
“escritas ao correr da pena, como rápidos apontamentos para ajudar a memória”
(GRAMSCI, 2004a: p. 85), a obra da maturidade de Antonio Gramsci – os Cadernos
do cárcere – tem proporcionado as mais variadas interpretações teóricas e
políticas da mesma – e até contrastantes leituras.[4] Decerto,
as condições peculiares nas quais os Cadernos foram escritos parecem
corroborar para que muitos leitores acentuem além da conta o caráter
fragmentário da obra, acarretando um instrumental gramsciano distorcido e, de
todo, retirado do contexto em que faz sentido. Acaba-se, em muitos casos,
contando menos o que Gramsci disse do que aquilo que os seus leitores julgam encontrar
em sua obra – o anacronismo é freqüente. Daí a necessidade de uma correta
contextualização e um estudo filológico dos textos, ou seja, uma leitura
“genética” dos Cadernos do cárcere, considerando a riqueza de seus
contrastes, de suas ambigüidades e até de seus limites.[5] Isso
permite aos leitores de Gramsci, veteranos ou novatos, encontrar o trajeto
unitário e coerente do seu pensamento, possibilitando ler os Cadernos
como resultado de uma concepção de mundo orgânica e unitária.
Na perspectiva ampliada do conceito de Estado em Gramsci, a relação entre sociedade política e sociedade civil é dialética. Os termos não se apresentam como mutuamente excludentes, mas um propõe o outro. A sociedade civil é uma arena privilegiada da luta de classes, em que se dá uma intensa luta pela hegemonia e, precisamente por isso, não é o “outro” em relação à sociedade política (o “Estado-coerção”), mas junto dela um de seus inelimináveis momentos constitutivos. Para Gramsci, os aparelhos hegemônicos da sociedade civil, aparentemente “privados” e voltados para a formação do consenso, estão articulados dialeticamente ao Estado, constituindo um poder hegemônico no qual nenhum dos dois aspectos (força e consenso, direção e domínio) pode ser cancelado. O conceito de hegemonia aparece não apenas como sinônimo de consenso, mas como a “combinação da força e do consenso, que se equilibram de modo variado, sem que a força suplante em muito o consenso, mas, ao contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da maioria, expresso pelos chamados órgãos da opinião pública” (GRAMSCI, 2002: p. 95). Portanto, não existe uma separação orgânica entre sociedade civil e sociedade política. Tal separação é apenas metodológica.
O Estado é instrumento de uma classe, mas também lugar de luta pela hegemonia e processo de unificação das classes dirigentes. Tal perspectiva admite, no entanto, momentos de “contra-hegemonia”. Uma determinada classe social pode tornar-se hegemônica conquistando o consenso e impondo-se como dirigente, antes mesmo de chegar ao poder. Contudo, o desenvolvimento pleno da função hegemônica (combinação da força e do consenso) só ocorre quando essa classe “se tornar Estado”.[6] Para Gramsci, o processo pelo qual uma classe “se faz Estado” é um momento iniludível na luta pela hegemonia.[7]
A sociedade civil é um momento integrante do Estado entendido em sua acepção ampla e intimamente relacionada com a questão da hegemonia. Portanto, a sociedade civil não é politicamente neutra, mas, ao contrário, é um campo de disputa entre várias propostas de sociedade, entre diferentes concepções de mundo, expressando a mutável correlação de forças entre as classes.[8] Nesse terreno, no qual tanto os dominados quanto os dominadores levam a cabo suas lutas ideológicas, é impossível pensar a educação desvinculada das relações de poder, de hegemonia.
A construção da hegemonia é um ato pedagógico. “Toda relação de ‘hegemonia’ é necessariamente uma relação pedagógica”, que “não pode ser limitada às relações especificamente ‘escolares’” (GRAMSCI, 2004a: p. 399). As relações educacionais constituem o próprio núcleo da hegemonia, enquanto relações sociais produtoras de sentido e de difusão de uma concepção de mundo convertida em norma de vida.[9]
Praticada em diferentes áreas da sociedade civil, seja em nível sindical e partidário, seja nas mais diversas associações e movimentos sociais, a educação popular orienta sua ação educativa para uma ação política, no esforço de mobilização, organização e capacitação dos setores populares.[10] No esforço de mobilização das classes subalternas, movidas por suas necessidades e interesses, é que está colocada a questão política, uma vez que, numa sociedade dividida em classes antagônicas, os interesses de uma se contrapõem aos interesses da outra.[11] Na organização popular é que está colocado o exercício do poder que necessariamente se vai conquistando.[12] Na capacitação científica e técnica é que está colocada a questão da apropriação e produção de um modo de pensar diferente do historicamente predominante
Nesse sentido, deve-se considerar:
Na perspectiva ampliada do conceito de Estado em Gramsci, a relação entre sociedade política e sociedade civil é dialética. Os termos não se apresentam como mutuamente excludentes, mas um propõe o outro. A sociedade civil é uma arena privilegiada da luta de classes, em que se dá uma intensa luta pela hegemonia e, precisamente por isso, não é o “outro” em relação à sociedade política (o “Estado-coerção”), mas junto dela um de seus inelimináveis momentos constitutivos. Para Gramsci, os aparelhos hegemônicos da sociedade civil, aparentemente “privados” e voltados para a formação do consenso, estão articulados dialeticamente ao Estado, constituindo um poder hegemônico no qual nenhum dos dois aspectos (força e consenso, direção e domínio) pode ser cancelado. O conceito de hegemonia aparece não apenas como sinônimo de consenso, mas como a “combinação da força e do consenso, que se equilibram de modo variado, sem que a força suplante em muito o consenso, mas, ao contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da maioria, expresso pelos chamados órgãos da opinião pública” (GRAMSCI, 2002: p. 95). Portanto, não existe uma separação orgânica entre sociedade civil e sociedade política. Tal separação é apenas metodológica.
O Estado é instrumento de uma classe, mas também lugar de luta pela hegemonia e processo de unificação das classes dirigentes. Tal perspectiva admite, no entanto, momentos de “contra-hegemonia”. Uma determinada classe social pode tornar-se hegemônica conquistando o consenso e impondo-se como dirigente, antes mesmo de chegar ao poder. Contudo, o desenvolvimento pleno da função hegemônica (combinação da força e do consenso) só ocorre quando essa classe “se tornar Estado”.[6] Para Gramsci, o processo pelo qual uma classe “se faz Estado” é um momento iniludível na luta pela hegemonia.[7]
A sociedade civil é um momento integrante do Estado entendido em sua acepção ampla e intimamente relacionada com a questão da hegemonia. Portanto, a sociedade civil não é politicamente neutra, mas, ao contrário, é um campo de disputa entre várias propostas de sociedade, entre diferentes concepções de mundo, expressando a mutável correlação de forças entre as classes.[8] Nesse terreno, no qual tanto os dominados quanto os dominadores levam a cabo suas lutas ideológicas, é impossível pensar a educação desvinculada das relações de poder, de hegemonia.
A construção da hegemonia é um ato pedagógico. “Toda relação de ‘hegemonia’ é necessariamente uma relação pedagógica”, que “não pode ser limitada às relações especificamente ‘escolares’” (GRAMSCI, 2004a: p. 399). As relações educacionais constituem o próprio núcleo da hegemonia, enquanto relações sociais produtoras de sentido e de difusão de uma concepção de mundo convertida em norma de vida.[9]
Praticada em diferentes áreas da sociedade civil, seja em nível sindical e partidário, seja nas mais diversas associações e movimentos sociais, a educação popular orienta sua ação educativa para uma ação política, no esforço de mobilização, organização e capacitação dos setores populares.[10] No esforço de mobilização das classes subalternas, movidas por suas necessidades e interesses, é que está colocada a questão política, uma vez que, numa sociedade dividida em classes antagônicas, os interesses de uma se contrapõem aos interesses da outra.[11] Na organização popular é que está colocado o exercício do poder que necessariamente se vai conquistando.[12] Na capacitação científica e técnica é que está colocada a questão da apropriação e produção de um modo de pensar diferente do historicamente predominante
Nesse sentido, deve-se considerar:
“A compreensão
crítica dos limites da prática [educativa] tem que ver com o problema do poder, que é de classe e tem que
ver, por isso mesmo, com a questão da luta e do conflito de classes.
Compreender o nível em que se acha a luta de classes em uma dada sociedade é
indispensável è demarcação dos espaços, dos conteúdos da educação, do
historicamente possível, portanto, dos limites da prática político-educativa.
(...) A leitura atenta e crítica da maior ou menor intensidade e profundidade
com que o conflito de classes vai sendo vivido nos indica as formas de
resistência possíveis das classes populares, em certo momento. (...) A luta de
classes não se verifica apenas quando as classes trabalhadoras, mobilizando-se,
organizando-se, lutam claramente, determinadamente, com suas lideranças, em
defesa de seus interesses, mas, sobretudo, com vistas à superação do sistema
capitalista. A luta de classes existe também, latente, às vezes escondida,
oculta, expressando-se em diferentes formas de resistência ao poder das classes
dominantes” (FREIRE, 2007: pp. 49-50; grifo do autor)[13]
1)
o papel da educação como parte do processo da formação
da hegemonia cultural nas sociedades capitalistas burguesas;
2)
as possibilidades de educação formal e não-formal como
lugares de formação de consciência revolucionária, contra-hegemônica anterior a
qualquer transição revolucionária;
3)
os princípios que devem fundamentar a pedagogia
socialista de uma sociedade pós-revolucionária.
Gramsci possui chaves interessantes para se pensar a educação popular tanto no plano metodológico quanto dos conceitos fundamentais por ele apresentados e/ou desenvolvidos (como os de hegemonia, Estado integral, revolução passiva, classes e luta de classes / correlação de forças, cultura / nacional popular / senso comum, partido, intelectuais orgânicos). No que diz respeito ao instrumental teórico gramsciano, cabem duas notas de teor metodológico. Gramsci recusa a fossilização dos conceitos ou sua imposição à realidade histórica. Ele adverte que suas observações teóricas não devem “ser concebidas como esquemas rígidos, mas apenas como critérios práticos de interpretação histórica e política” (GRAMSCI, 2004a: p. 67). Não se deve “forçar os textos” para dobrá-los a teses preconcebidas. Sabendo-se que o conhecimento histórico não é peremptório, deve-se admitir a ‘possibilidade do erro’, reconhecer a honestidade intelectual e o ponto de vista dos outros, a provisoriedade dos resultados obtidos e a falibilidade das próprias certezas, sem com isso descaracterizar as próprias convicções de fundo (idem: pp. 91, 123-124, 134 e 174). Essas são indicações metodológicas traçadas por Gramsci nos Cadernos do cárcere.
Outra questão importante diz respeito ao fato de que os pares conceituais empregados por Gramsci – como sociedade civil e sociedade política, consenso e coerção, direção e domínio, entre outros – não se apresentam jamais como mutuamente excludentes. Cada termo pressupõe o outro, de tal modo que o emprego de um depende do emprego do outro. “Desse modo, o problema reside na determinação empírica da proporção, peso e valor de cada elemento da díade no contexto de uma situação histórica concreta”.[14]
No meu entender, o conjunto de categorias desenvolvidas por Antonio Gramsci constitui um campo aberto de criação histórica, apesar dos limites inerentes a qualquer conceito. Mas o que explica essa “adoção” de Gramsci é a análise da validade operatória de muitas de suas categorias para formular interpretações mais aprofundadas da realidade social concreta.
Bibliografia básica:
GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. V. 1. Introdução ao estudo da filosofia. A
filosofia de Benedetto Croce. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2004a.
____ .Cadernos do Cárcere.
V. 2 . Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. 3 ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2004b.
____ . Cadernos do Cárcere. V. 3. Maquiavel. Notas sobre o Estado e a
política. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
____ . Cadernos do Cárcere.
V. 4. Temas de cultura. Ação Católica. Americanismo e Fordismo. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001.
[1] Indiscutivelmente, nas reflexões dos Cadernos do cárcere está presente a
proposição básica de que as classes sociais, o conflito de classes e a consciência
de classe existem e desempenham um papel na história.
[2] Para
compreender o processo de formação política e intelectual de Gramsci ver:
LOSURDO, Domenico. Antonio Gramsci: do liberalismo ao “comunismo crítico”.
Rio de Janeiro: Revan, 2006; MAESTRI, Mário e CANDREVA, Luigi. Antonio Gramsci: vida e obra de um comunista
revolucionário. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2007.
[3] MATTOS, Marcelo Badaró. “Os historiadores e os
operários: um balanço”. In: ____ . (coord.). Greves e repressão policial ao sindicalismo carioca: 1945-1964. Rio
de Janeiro: APERJ / FAPERJ, 2003, p. 33.
[4] Por
exemplo, há muita polêmica em torno das interpretações dos usos de “sociedade
civil”, “sociedade política” e Estado em Gramsci.
[5] Muitos estudos atendem a esse propósito, entre eles:
BARATTA, Giorgio. As rosas e os Cadernos: o pensamento dialógico de Antonio
Gramsci. Rio de Janeiro: DP&A, 2004; BIANCHI, Álvaro. O laboratório de
Gramsci: filosofia, história e política. São Paulo: Alameda, 2008;
COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um
estudo sobre seu pensamento político. 2 ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003; LIGUORI, Guido. Roteiros para Gramsci. Rio
de Janeiro: Ed. UFRJ, 2007; SEMERARO, Giovanni. Gramsci e a sociedade civil: cultura e educação para a democracia.
2 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.
[6] LIGUORI, Guido. Roteiros
para Gramsci. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2007, pp. 13, 21, 24, 29 e 47.
[7] Idem, p. 36.
[8] Sobre
a problemática das relações de força ver GRAMSCI, 2002, pp. 36-46.
[9] ACANDA, Jorge Luis. Sociedade civil e hegemonia.
Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2006, pp. 208-211.
[10] FREIRE,
Paulo e NOGUEIRA, Adriano. Que fazer:
teoria e prática em educação popular. 9 ed. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 19.
[11] RODRIGUES, Antônio Carlos. “Educação popular:
histórico e concepções teóricas”. In: MELLO, Marco (org.). Paulo Freire e a Educação Popular. Porto Alegre: IPPOA, ATEMPA,
2008, p. 45.
[12] FREIRE
e NOGUEIRA, op. cit, p. 19.
[13] FREIRE,
Paulo. Política e Educação. 8 ed.
Indaiatuba: Villa das Letras, 2007, pp. 49-50.
[14] FONTANA, Benedetto. “Hegemonia e a nova ordem
mundial”. In: COUTINHO, C. N. e TEIXEIRA, A. P. Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003, pp. 119-120.
PARABÉNS MARCOS
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