Do total de 173 países presentes, 107 votaram a favor, 14 contra
Baby Siqueira Abrão
de Ramallah (Palestina)
A data de 31 de outubro de 2011 vai entrar para o calendário de comemorações da Palestina como o dia em que o país tornou-se, pela primeira vez, Estado-membro de uma agência da ONU. A 32ª. Assembleia Geral da UNESCO (órgão da ONU para a educação, a ciência e a cultura) votou pela admissão do país como membro pleno – desde 1974 a Palestina era apenas membro observador da entidade.
Essa vitória, porém, não fará diferença nenhuma em relação ao pleito que Mahmoud Abbas, presidente da Organização pela Libertação da Palestina (OLP) e da Autoridade Palestina, levou ao Conselho de Segurança da ONU em 23 de setembro, solicitando o reconhecimento do país como Estado-membro da organização, com plenos direitos. Mas mostra uma mudança significativa na antiga “coesão” política do mundo. Antes, as concessões à pressão conjunta de Estados Unidos e Israel sobre os demais países eram maiores.
Com milhões de indignados nas ruas do mundo, a maioria deles pró-palestinos e críticos dos sionistas, apontados como vilões não apenas dos direitos humanos mas também da crise financeira que vai solapando direitos civis conquistados com muita luta, alguns governos parecem ter perdido o medo. O da França, por exemplo, deu seu voto à Palestina, contrariando anos de aliança e submissão a Israel e Estados Unidos. Até a Grã-Bretanha e a Itália, parceiras de longa data dos EUA e dos sionistas, dessa vez se abstiveram. Do total de 173 países presentes, 107 votaram a favor, 14 contra e houve 52 abstenções, que não contam no cômputo final. A Palestina precisava de 81 votos para se tornar membro pleno da UNESCO. Recebeu 26 a mais do que o necessário.
Israel e EUA perdem poder
A repercussão do resultado da Assembleia da UNESCO indica uma leitura política do fato. Celebra-se, na verdade, a queda de poder de dois países cujos argumentos resumem-se à retórica falaciosa, às armas e à força bruta. “Trata-se do triunfo do espírito humano diante da intimidação”, comemorou Hanan Ashrawi, porta-voz da Palestina durante o processo conhecido como Tratado de Madri (1991) e até hoje figura importante no panorama político do país.
Luisa Morgantini, ex-vice-presidente do Parlamento Europeu e porta-voz da Associazione per la Pace [Associação pela Paz], da Itália, foi na mesma direção. “Esse resultado mostra que a maioria dos países já conseguiu escapar ao domínio dos EUA e não abandonará os palestinos ao poder militar e midiático israelense”, afirmou ela. “Esses países acreditam no direito à liberdade e à autodeterminação e querem que a Palestina também exerça esse direito, que é universal.”
Universal mas não muito, de acordo com Estados Unidos, Israel e Alemanha, os grandes perdedores desse jogo. Para esses países, a Palestina deve permanecer como está até que os sionistas tomem todo o seu território para fazer a Grande Israel, como foi planejado desde o início do movimento, no século XIX. Mas, como também aponta o resultado na UNESCO, o uso político de textos religiosos, a deturpação de uma simbologia importante para boa parte da população mundial e a manipulação da fé para alcançar a satisfação do apetite financeiro de alguns grupos já não enganam quase ninguém. Diante dessa mudança de postura, o relatório da CIA, a agência de inteligência estadunidense, segundo o qual Israel se autodestruirá em 20 anos (em 19, porque o documento é de 2010), ganha até ares de presságio.
Mas não é. Trata-se do resultado de anos de esforço dos palestinos, que, mesmo na contracorrente da propaganda sionista na grande mídia, mesmo sem poder econômico e militar, conseguiram se fazer ouvir no mundo inteiro. E o apoio da sociedade civil internacional a sua luta não para de crescer. Na intifada que agita a população do planeta – quem não sai à rua acompanha e apoia os acontecimentos de várias outras maneiras –, o caso palestino é citado e discutido como símbolo da resistência a uma força não apenas local.
A espoliação operada pelo capitalismo financeiro é apontada como responsável por aquilo que acontece com os palestinos e pela progressiva perda de direitos dos cidadãos de todo o mundo, como mostram os slogans e os textos produzidos pelos diversos movimentos populares, resultado de estudos e debates em praça pública. Num processo que quer redefinir os conceitos de democracia e liberdade, retirando-os do lugar-comum da retórica dos poderosos, o espaço para países que usam a linguagem da ameaça militar, como Estados Unidos e Israel, é cada vez menor.
Mas, mesmo desacreditados, eles falam grosso. Continuam querendo decidir o que é melhor para os palestinos – a velha história de “paz pela negociação”, que até agora só beneficiou os sionistas, aos quais a paz nunca interessou – e fazem deles alvos de agressão contínua. Segundo o jornal israelense Haaretz, na mesma segunda-feira em que a Palestina conquistou o status de membro pleno da UNESCO, por exemplo, o primeiro ministro de Israel, Benjamin Netanyhau, anunciou reunião com seu gabinete, composto por oito ministros, para o dia seguinte, a fim de “discutir a possibilidade de impor sanções aos palestinos.
Já existem várias propostas nesse sentido, ainda de acordo com o Haaretz: aumentar o número das colônias ilegais em terras palestinas, restringir a transferência de impostos coletados na Palestina e retirar o status VIP do alto escalão palestino, impedindo-o de passar por checkpoints sem ser incomodado. Sem falar, claro, na “terceirização” da violência, hoje, literalmente, também nas mãos e nas armas dos colonos, que perseguem e ferem os palestinos, além de destruir suas plantações e transformar suas vidas num pesadelo à luz do dia. O objetivo, além de tomar terras, fontes e poços de água, é minar a economia dos vilarejos. Só as milhares de oliveiras devastadas pelos colonos judeus deram, na colheita deste ano, em outubro, um prejuízo de cerca de U$ 500 mil aos palestinos. A maioria das famílias agricultoras vive o ano todo com o dinheiro da venda da colheita. Quem compra? Israel, ao preço que seu mercado determinar.
Palestina, patrimônio da humanidade
Os sionistas temem, além da progressiva perda de poder proveniente de suas ações contra os palestinos e do isolamento causado por seu hábito de desdenhar a legislação internacional e as resoluções da ONU, aquilo que a Palestina pode conseguir como membro pleno da UNESCO. Para Abdelfattah Abusrour, fundador e presidente da Sociedade Cultural e Teatral Alrowaad, do campo de refugiados de Aida, em Belém, e professor doutor da Universidade de Belém, “esse reconhecimento da Palestina como Estado poderá impedir que Israel continue a destruir o país, confiscando terras e erguendo construções em cidades históricas como Belém, El-Khalil (Hebron), Jerusalém oriental, Jericó”.
Ele explica que os palestinos podem pedir que suas cidades sejam consideradas Patrimônio da Humanidade, evitando sua descaracterização, a devastação de seus bens culturais e históricos e, mais importante, reconhecendo-as como parte da Palestina. Será um golpe duro nas ambições dos sionistas. “Claro que nada disso acontecerá da noite para o dia”, continua Abdelfattah. “Mas o reconhecimento da comunidade internacional, no caso da UNESCO, torna-a corresponsável pela defesa da população de um Estado que é membro pleno e que é ocupado e agredido por outro Estado. É um primeiro passo para a imposição de sanções a Israel, a fim de obrigá-lo a respeitar os palestinos e a legislação internacional”, completa ele.
A italiana Luisa Morgantini faz a mesma avaliação. “A Palestina pode reivindicar o título de Patrimônio da Humanidade para grande parte dos locais da Cisjordânia e de Gaza”, afirma ela. “Um dos primeiros pontos deve ser a cidade velha de Hebron, hoje refém de centenas de colonos fanáticos que já destruíram partes importantes dessa herança cultural da humanidade.”
Caso a Palestina dê mais esse passo, boa parte de seu território estará a salvo da sanha sionista. “Isso não vai acabar com a ocupação, assim como uma possível aprovação do país como membro pleno da ONU não porá fim ao roubo de terras, de água, da vida, mas é um avanço importante, há muito tempo devido à Palestina”, diz Luisa Morgantini. “É hora de Israel ser responsabilizado pelas contínuas violações ao direito internacional. Somente o fim da ocupação garantirá justiça e paz aos palestinos”, finaliza ela, anunciando que a Associazione per la Pace já iniciou mobilização para pressionar os governos dos países europeus a “fazer prevalecer o direito das pessoas sobre os interesses das alianças geopolíticas”. “Só sossegaremos quando eles derem seu voto ao reconhecimento da Palestina como Estado-membro pleno da ONU”, acrescenta ela.
A UNESCO é a primeira agência da ONU à qual a OLP solicitou reconhecimento como membro pleno. A próxima será a OMS, a Organização Mundial da Saúde, de acordo com Fathi Abu Moghli, titular da pasta da Saúde. É assim, devagar e insistentemente, que os palestinos vão vencendo, no campo diplomático, a tecnologia militar, as ameaças e a violência cotidiana que os sionistas de Israel lhes impõem.
FONTE: Brasil de Fato
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