terça-feira, 1 de novembro de 2011

Barbárie social e devir humano dos homens


Por Giovanni Alves



O que consideramos “barbárie social” é uma dimensão da barbárie histórica que se constitui como metabolismo social nas condições do capitalismo global em sua etapa de hipertrofia financeira. Ela é um elemento compositivo da era histórica de declínio estrutural do capital caracterizado pela constituição do capitalismo global. É a terceira modernidade do capital em sua etapa senil capaz de colocar, no plano global, impasses civilizatórios inéditos na história humana.



A nova era de barbárie social se caracteriza, por um lado, pela crise de valorização e a financeirização da riqueza capitalista, que provocaram alterações estruturais na dinâmica da acumulação de valor, com impactos diruptivos no padrão de concorrência intracapitalista e no processo de desenvolvimento e organização das políticas públicas e estruturação do mercado de trabalho, com a crise do emprego e a disseminação da nova precariedade salarial no núcleo orgânico mais desenvolvido do sistema mundial do capital.



Por isso, a ideologia do neoliberalismo se impõe como ideologia orgânica da ordem política do capital. Mesmo partidos de “esquerda” assumem hoje nos países capitalistas mais desenvolvidos plataformas políticas neoliberais. A lógica férrea da ordem burguesa senil constrange cada vez mais os partidos políticos que optaram por permanecer no interior do jogo democrático representativo de cariz liberal.



Por exemplo, torna-se cada vez mais perceptível a crise estrutural da social-democracia e partidos socialistas europeus cada vez mais incapazes de conciliar crescimento econômico e desenvolvimento social, ou ainda, conciliar Estado de bem-estar social e Estado político do capital a serviço dos interesses do capital financeiro (o que explica o crescimento da concentração de riqueza e desigualdade social nos países capitalistas europeus, berço histórico da social-democracia européia).



Por outro lado, a nova era de barbárie social se caracteriza pela reestruturação produtiva do capital sob o espírito do toyotismo. Exacerba-se o contraste entre racionalização intraempresa capitalista sob a lógica do trabalho flexível e irracionalidade social com a disseminação do desemprego de longa duração e a precarização estrutural do trabalho. Na medida em que o capitalismo global é a etapa superior do capitalismo manipulatório, acirra-se o processo de dessocialização do proletariado desterritorializado pela nova precariedade salarial com impactos importantes na consciência necessária de classe. Nesse caso, o poder da ideologia e a intensificação do fetichismo da mercadoria devido a vigência do mercado na estruturação social, compôs um cenário qualitivamente novo de desefetivação do ser genérico do homem.



Estas são as novas condições sócio-históricas no interior das quais se desenvolvem as contradições do modo de produção social de mercadorias no plano global e, portanto, as novas condições da luta de classes no século XXI. É com a terceira modernidade do capital que a barbárie se instaura como metabolismo social, isto é, constitui-se como “barbárie social”, a nova dimensão da barbárie histórica dentro do capitalismo. Ela altera os referentes histórico-epistemológicos da luta de classes, colocando novas tarefas políticas para a luta anticapitalista e para o pensamento radical comprometido com a critica do capital (o que veremos mais adiante).



Mas, como podemos caracterizar efetivamente o conceito de “barbárie social”?



Em primeiro lugar, trata-se de um conceito sociológico que diz respeito a uma forma histórica de metabolismo social – um modo social de troca orgânica entre o homem e a natureza – que se constitui na etapa histórica da crise estrutural do capital.



Metabolismo social significa a ineliminável troca orgânica entre homem e natureza onde a natureza implica tanto a (1) “natura naturans”, como diria Spinoza, isto é, o mundo do ecossistema natural ou meio-ambiente que abriga a espécie humana, quanto (2) a “natura naturata”, ou seja, o mundo social dos homens, as relações sociais dos homens com outros homens e também as relações sociais dos homens consigo mesmo, ou seja, o homem em sua auto-referencia pessoal. Deste modo, o modo de produção capitalista não é apenas um modo de produção de mercadorias, mas também modo de reprodução social ou modo de controle do metabolismo social ou troca orgânica historicamente determinado.



Na fase histórica da crise estrutural do capital desenvolve-se com intensidade e amplitude, o sociometabolismo da barbárie que possui como traço histórico-ontológico, a degradação estrutural da troca orgânica entre homem e natureza no sentido amplo de “natura naturans” e “natura naturata”. Por isso, temos por um lado, a crise ecológica; e por outro lado, a crise do humano. A dinâmica histórica posta pelo novo metabolismo social do trabalho com a nova precariedade salarial instaura o que podemos considerar como sendo a crise do humano como crise do trabalho vivo. Ela se compõe do complexo de crises que decorrem do processo de precarização-do-homem-que-trabalha: crise da vida pessoal; crise de sociabilidade; crise de auto-referência humano-pessoal.



A vigência plena do capitalismo manipulatório sob a dominância do capital financeiro, com a precarização estrutural do trabalho, caracterizada pela presença do desemprego de massa e a nova precariedade salarial compõem o cenário de barbárie como metabolismo social, isto é, processo cotidiano de desefetivação do ser genérico do homem. Deste modo, dessocialização e manipulação reflexiva dilaceram o devir humano dos homens, obliterando tendencialmente sua capacidade de “negação da negação” – eis o sentido da barbárie social.



O estado de barbárie social é a nova condição histórica no interior da qual os homens e mulheres fazem a história. É uma etapa de crise social irremediável contínua e persistente que afeta a ordem burguesa global. Contra o estado de barbárie social, as multidões se insurgem. Mas trata-se ainda de multidões com insurgências contingentes que expressam, com seu movimento de rebeldia, a presença efetiva e ampliada da condição de proletariedade. Não se trata da classe do proletariado, apesar da multidão estar imersa na condição de proletariedade.



A presença da desefetivação humano-genérica que caracteriza o sociometabolismo da barbárie não implica anulação da capacidade de resposta e a dessocialização e manipulação reflexiva que caracteriza o sistema do capitalismo manipulatório não conduz irremediavelmente à inércia coletiva. O estado de barbárie social não significa o colapso da história, mas sim, pelo contrário, a necessidade radical de fazer história. Entretanto, os obstáculos objetivos para a “negação da negação” na perspectiva da consciência de classe se colocam tendo em vista o estado de barbárie social.



A etapa histórica de crise do capitalismo global que assistimos hoje põe com intensa candência a contradição radical entre a necessidade do controle social – isto é, o socialismo – e os obstáculos efetivos à democratização radical das sociedades humanas postos pelo estado de barbárie social. O controle social e a democratização radical das sociedades humanas implica a formação efetiva da classe social do proletariado como sujeito histórico-coletivo constituído por individualidades pessoais humano-genéricas capazes de “negação da negação” da ordem sociometabólica do capital.



Com a nova etapa de crise do capitalismo global surge nos países capitalistas mais desenvolvidos – como EUA e Europa – os movimentos sociais das multidões imersas na condição de proletariedade que expressam em si e para si, carecimentos radicais de democratização efetiva da vida social num cenário de barbárie histórica de alta intensidade. Na verdade, as multidões de “indignados”, compostos em sua maioria por jovens e adultos precários, desempregados, sem perspectiva de futuro no interior da ordem burguesa. Trata-se de multidões de proletários histórico-mundiais, como diria Marx e Engels (inclusive proletários de “classe média”, órfãos do Estado de bem-estar social). Entretanto, os “indignados” não são capazes de expressar em si e para si, a “negação da negação” no sentido de ser o sujeito histórico-político de classe capaz de operar o salto qualitivamente novo no plano sócio-político e inclusive sociometabólico. Os “indignados”, como o espectro de Hamlet, clamam nas praças que há algo de podre no reino do capitalismo desenvolvido (o dito “Primeiro Mundo”). Ou como o menino da fábula de Hans Christian Andersen, exclama que o rei está nu. É a resposta humana possível – hoje – à ordem da barbárie social.





Desde as suas origens como modo de produção social, a barbárie histórica tem caracterizado o capitalismo. Massacres, genocídios e múltiplas formas de degradação humana caracterizam a civilização do capital em seu desenvolvimento histórico como traço indelével da história das sociedades de classes, caracterizada pela divisão entre explorados e explorados, oprimidos e opressores. A barbárie histórica dentro da civilização do capital é um traço ineliminável do desenvolvimento contraditório do capitalismo histórico. Entretanto, o que salientamos é que, em sua etapa de crise estrutural, o capital explicita outra dimensão particular-concreta de barbárie histórica: o que denominamos de “barbárie social”, a barbárie como metabolismo social, que emerge, com vigor, na época da decadência histórica do capitalismo mundial e que se caracteriza pela desefetivação do ser genérico do homem.



Como Karl Marx e Friedrich Engels, concebemos a barbárie como dizendo respeito, por um lado, a uma temporalidade histórica da evolução cultural da espécie humana (a barbárie é uma etapa do desenvolvimento histórico que antecede a civilização); e por outro lado, como uma dimensão intrínseca do modo de produção capitalista, sendo ela, deste modo, um traço compositivo essencial do capitalismo industrial como modo de produção de mercadorias (é o que Marx observou como sendo a “barbárie dentro da civilização”). Portanto, buscamos salientar a percepção da barbárie como traço histórico compositivo da civilização do capital. Ao invés de serem antípodas, para Marx, a barbárie é determinação reflexiva da forma histórica de civilização do capital.



Deste modo, podemos distinguir a “barbárie exterior a civilização” e a “barbárie interior a civilização” ou “barbárie histórica” propriamente dita. Um detalhe: a “barbárie social” que temos salientado acima seria uma dimensão compositiva da barbárie histórica na etapa da crise estrutural do capital e vigência do capitalismo manipulatório.



1. A“barbárie exterior a civilização” é identificada como etapa do desenvolvimento histórico da espécie humana (por exemplo, a barbárie dos povos primitivos). Deste modo, Marx concebeu a barbárie como estágio de desenvolvimento histórico quando, por exemplo, nas suas notas etnológicas (“Ethnological Notebooks”), assumiu o conceito de barbárie como estágio do desenvolvimento com base no trabalho de Lewis Henry Morgan (na sua “Ancient Society”, Morgan identificou a Barbárie Inferior com a manufatura da cerâmica; a Barbárie Média com a domesticação de animais no hemisfério oriental, a irrigação e a utilização do tijolo de adobe e da pedra na arquitetura do hemisfério ocidental, e Barbárie Superior com a manufatura do ferro e a invenção do alfabeto fonético). Em “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”, Friedrich Engels assumiu grande parte do esquema antropológico de Morgan, incluindo o seu tratamento da barbárie como um estágio entre a Selvajaria e a Civilização.



2. A“barbárie interior a civilização do capital” ou barbárie histórica pode ser identificada com os modos de brutalidades que vigoram nas sociedades de classes (guerras, massacres, degradação humana e destruiçãoem massa). Ocapitalismo histórico como a sociedade de classes mais desenvolvida, reiterou, em escala planetária, brutalidades terríveis a serviço da expansão do capital. Por exemplo, nas etapas do colonialismo e imperialismo, os atos de brutalidades são inomináveis, expondo com vigor a concepção de Marx da “barbárie interior a civilização do capital”. Deste modo, a barbárie que ressurge no interior da civilização burguesa aparece como “barbárie histórica”.



É interessante observar que ao criticar o colonialismo, Marx trata não os povos colonizados como bárbaros, mas o contrário – os burgueses como aqueles que levam a barbárie interior da civilização do capital, para a periferia capitalista. A burguesia exporta barbárie na medida em que “…podem modelar o mundo conforme a sua própria imagem sem qualquer interferência”. Diz Marx, em 1853, no artigo “Os futuros resultados do domínio britânico na Índia”: “A profunda hipocrisia e a barbárie inerente da civilização burguesa jazem desvelados diante dos nossos olhos, quando os desviamos do seu lar, onde ela assume formas respeitáveis, para as colônias, onde ela está nua”.



Para Marx, o colonialismo inglês na Índia expunha, derrubando a máscara de hipocrisia burguesa, a barbárie inerente a civilização do capital. Seria na periferia capitalista que a burguesia metropolitana liberal e democrática, exporia sua face bárbara, criando aquilo que Mike Davis iria denominar de “holocaustos vitorianos”, tendo em vista a expropriação imperialista do excedente da sociedade indiana, provocando ondas massivas de fome e a imposição de salários miseráveis aos trabalhadores indianos. Por exemplo, no livro “Holocaustos coloniais”, Davis observa que as rações que os britânicos proporcionavam a trabalhadores ocupados em trabalhos árduos em Madras, na Índia, em 1877, tinham um valor calórico inferior àquele que os nazistas vieram a proporcionar aos prisioneiros forçados a trabalho árduo no campo de concentração de Buchenwald em 1944.



Portanto, o colonialismo inglês na Índia devastou a indústria daquele país, difundindo a miséria e a degradação, enquanto transformava a Índia num simples produtor de matérias-primas agrícolas para a Grã-Bretanha. De fato, o imperialismo britânico serviu como força de destruição, demolindo as forças produtivas da Índia e provocando subdesenvolvimento mesmo quando introduzia as forças da indústria moderna dentro da sociedade indiana.



Ao discorrer sobre “A gênese do capitalista industrial (no livro I de “O Capital”), Marx citou a obra “Colonisation and Christianity”, de William Howitt, que escrevera: “As barbaridades e as atrocidades desesperadas da assim chamada raça cristã, em toda a parte do mundo, e sobre todos os povos que foram capazes de subjugar, não têm paralelo em outros de qualquer outra raça, mesmo feroz, mesmo analfabeta, e mesmo despida de compaixão e de vergonha, em qualquer era da Terra”.



Entretanto, a “barbárie histórica dentro da civilização do capital” se expressa também por meio da exploração e espoliação vinculada diretamente ao modo de produção de mercadorias nos primórdios da Revolução Industrial. Por exemplo, nos “Manuscritos Econômico-Filosóficos” (de 1844), Marx, referindo-se à degradação do trabalho vivo que sobreveio com a ascensão do capitalismo nos primórdios da Revolução Industrial, observou: “As formas (e instrumentos ) mais brutais de trabalho humano reaparecem [sob o capitalismo]; por exemplo, o moinho de castigo (tread-mill) utilizado pelos escravos romanos tornou-se o modo de produção e o modo de existência de muitos trabalhadores ingleses”. Mais tarde, em 1847, num discurso sobre “Salários”, Marx referiu-se metaforicamente à utilização do moinho de castigo na moderna produção capitalista (e nos sistemas prisionais) como uma doença. Diz ele: “O moinho de castigos re-emergiu outra vez dentro da civilização. A barbárie reaparece, mas criada no regaço da própria civilização e pertencendo-lhe, portanto barbárie leprosa, uma barbárie que é a lepra da civilização”. No “Manuscrito econômico de 1861-3”, Marx citou uma passagem do economista russo Heinrich Friedrich von Storch que denunciava a degradação das condições de trabalho e o enfraquecimento da saúde dos trabalhadores assalariados como um reflexo do retorno à barbárie que freqüentemente acompanhou o crescimento da civilização burguesa.



Na medida em que a civilização burguesa possui a barbárie inerente a si, ela – a barbárie – tende sempre a reaparecer no interior do desenvolvimento critico do capitalismo histórico. Nossa hipótese é que a crise estrutural do capital alterou o espaço-tempo da barbárie histórica. Ela não se restringe tão-somente aos movimentos territoriais do neocolonialismo e imperialismo que acompanham a nova ordem global do capital sob a hegemonia político-militar dos Estados Unidos da América; nem ao “momentum” de interregno da acumulação de capital e crises de superprodução que caracterizaram o capitalismo histórico; nem apenas a exploração e espoliação vinculada diretamente ao trabalho estranhado e a produção de mercadorias. Os territórios da barbárie histórica – a barbárie inerente a civilização burguesa – extrapolam os registros sócio-territoriais originais.



Na verdade, a barbárie histórica permeia hoje, com a crise do capitalismo global, a totalidade do metabolismo social do sistema produtor de mercadorias. Com a crise estrutural do capital, o sociometabolismo da barbárie assume uma dimensão global, instalando-se no próprio núcleo territorial orgânico do sistema mundial do capital e centro dinâmico de acumulação de valor.



Com a precarização estrutural do trabalho, que se torna traço ineliminável e recorrente da dinâmica social capitalista, a barbárie histórica em sua dimensão de barbárie social, aparece como crise da vida pessoal das individualidades de classe cada vez mais imersas na condição de proletariedade. É a crise pessoal que, nos marcos da nova precariedade salarial, decorre da insegurança social para adultos e corrosão da futuridade e frustração irremediável para jovens licenciados.



Com a precarização do homem-que-trabalha, a barbárie social aparece como barbárie interior, corroendo, como “lepra”, a percepção lúcida e o entendimento racional de homens e mulheres sobre os outros (crise de sociabilidade) e sobre si mesmo (crise de auto-referencia pessoal). Na verdade, explicita-se com vigor o estranhamento caracterizado por Georg Lukács como sendo a contradição insana entre o desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, o desenvolvimento da capacidade humana, e o desenvolvimento da personalidade humana. Na época da barbárie social, o desenvolvimento da capacidade humana que se manifesta no desenvolvimento espetacular das forças produtivas do trabalho social, tende a potencializar tão-somente capacidades singulares, desfigurarando, aviltando, etc, a personalidade do homem.

 
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Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET) e do Projeto Tela Crítica. É autor de vários livros e artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011).

 
 

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