domingo, 10 de maio de 2020

"Com o russo em Berlim"

Poema de Carlos Drummond de Andrade vibrando com o avanço soviético sobre a Alemanha nazista

Por Marcos Cesar de Oliveira Pinheiro
Professor Adjunto da FEBF/UERJ

Neste mês de maio de 2020, em que se comemora os 75 anos do fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), segue abaixo o poema de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) intitulado "Com o russo em Berlim", em que o poeta lamenta não estar participando diretamente da derrota do nazismo e vibra com as perspectivas de vitória "com o russo em Berlim". O poema, escrito em 1ª pessoa, é composto por 17 estrofes, sempre concluídas com a expressão “com o russo em Berlim”, ora em tom de afirmação, ora em forma interrogativa. 

Cabe chamar a atenção de que a participação das forças soviéticas, geralmente minorada pela historiografia tradicional, ainda hoje não é colocada em suas reais dimensões. Embora prevaleça a versão de que o nazismo só foi derrotado graças à participação norte-americana e o dia D (6/6/1944), quando os aliados ocidentais (EUA, Inglaterra e Canadá) desembarcaram na Normandia (França), versão que se fez disseminada por décadas de cinema e reportagens em tom de Guerra Fria, como também nos livros didáticos de História, a evidência dos fatos demonstra que a virada aconteceu mesmo em solo soviético, onde os nazistas sofreram sua primeira grande derrota. Como bem sintetiza o historiador Eric Hobsbawm, no seu livro Era dos Extremos: o breve século XX(1914-1991), em que afirma: “De Stalingrado em diante, todo mundo sabia que a derrota da Alemanha era só uma questão de tempo” (p. 47).

O trabalho de construção da História Oficial é incessante no sentido de contribuir, na luta ideológica – uma das formas em que se dá a luta de classes –, para a construção do consenso dominante,  mesmo quando tal situação é mascarada, não estando explicitada e encoberta pelo conflito entre diversos revisionismos empreendidos pelos intelectuais orgânicos a serviço das classes dominantes. Por História Oficial, entende-se aquela elaboração histórica que convém aos grupos dominantes na sociedade e que se encontra consagrada e difundida principalmente nos livros escolares e na mídia. A História Oficial é expressão da ideologia dominante, ou seja, dos interesses das classes dominantes numa determinada sociedade dividida em classes antagônicas. Por isso mesmo, a História Oficial procura proclamar e difundir as vitórias e os sucessos alcançados pelos donos do poder, de hoje e do passado, nos permanentes conflitos sociais presentes na história mundial. Em outras palavras, veladamente ou não, trata-se de consagrar o capitalismo, comumente, com o nome fantasia de "democracia", para encobrir o conteúdo de classe da ordem burguesa (capitalista). Assim, a lógica da História Oficial, ainda que revestida com uma aparência "sofisticada" da renovação historiográfica, é esquecer, silenciar, deturpar e combater os ideais e as lutas dos setores, que não obtiveram êxito em seus propósitos revolucionários e transformadores e, muitas vezes, sofreram duras derrotas. Isto é, liquidar qualquer tradição revolucionária.

Como afirma a historiadora Anita Prestes, ao chamar a atenção da importância crescente da elaboração da História Oficial nas sociedades contemporâneas:

Em nossas sociedades contemporâneas, são os intelectuais orgânicos, comprometidos com a burguesia que cumprem a função de produzir tal História Oficial. Dessa forma, são consagradas inúmeras deformações históricas, inúmeras inverdades históricas e silenciados numerosos acontecimentos que não são do interesse dos setores dominantes que sejam do conhecimento da grande maioria das pessoas e, em particular, das novas gerações. (Anita Prestes, "O historiador perante a História Oficial", Germinal: Marxismo e Educação em Debate, v. 1, n. 2, jan. 2010, p. 94)

Com base na "tese dos totalitarismos", muito em voga  no pensamento social liberal como também entre os muitos grupos ditos de "esquerda" e muito conveniente ao consenso e à hegemonia construídos pela burguesia nas sociedades contemporâneas, foi aprovada, no dia 19/09/2019, uma resolução do Parlamento Europeu em que se "equipara e condena nazi-fascismo e comunismo". Uma falsificação histórica que junta opressores e oprimidos, vítimas e carniceiros, invasores e libertadores. Trata-se de mais um capítulo de impor uma elaboração histórica que convém aos grupos dominantes da geopolítica europeia, mas também mundial, num tempo de um crescimento perigoso de fascismo, racismo e nacionalismo. Importante lembrar as palavras do escritor alemão Thomas Mann, que, em 1945, avisou: "Colocar comunismo russo no mesmo plano moral que o nazifascismo, porque ambos seriam totalitários, é, na melhor das hipóteses, superficial; na pior, é fascismo. Quem insiste nesta equiparação pode considerar-se a si próprio um democrata mas, na verdade e no fundo do seu coração, é um fascista, e irá seguramente combater o fascismo de forma aparente e hipócrita, e deixa para o comunismo todo o ódio."

Mas vamos ao poema de Drummond.

Com o russo em Berlim* (1945)

Carlos Drummond de Andrade

Esperei (tanta espera), mas agora,
nem cansaço nem dor. Estou tranquilo,
Um dia chegarei, ponta de lança,
com o russo em Berlim.

O tempo que esperei não foi em vão.
Na rua, no telhado. Espera em casa.
No curral; na oficina: um dia entrar
com o russo em Berlim.

Minha boca fechada se crispava.
Ai tempo de ódio e mãos descompassadas.
Como lutar, sem armas, penetrando
com o russo em Berlim?

Só palavras a dar, só pensamentos
ou nem isso: calados num café,
graves, lendo o jornal. Oh, tão melhor
com o russo em Berlim.

Pois também a palavra era proibida.
As bocas não diziam. Só os olhos
no retrato, no mapa. Só os olhos
com o russo em Berlim.

Eu esperei com esperança fria,
calei meu sentimento e ele ressurge
pisado de cavalos e de rádios
com o russo em Berlim.

Eu esperei na China e em todo canto,
em Paris, em Tobruc e nas Ardenas
para chegar, de um ponto em Stalingrado, 
com o russo em Berlim.

Cidades que perdi, horas queimando
na pele e na visão: meus homens mortos,
colheita devastada, que ressurge
com o russo em Berlim.

O campo, o campo, sobretudo o campo
espalhado no mundo: prisioneiros
entre cordas e moscas; desfazendo-se
com o russo em Berlim.

Nas camadas marítimas, os peixes
me devorando; e a carga se perdendo,
a carga mais preciosa: para entrar
com o russo em Berlim.

Essa batalha no ar, que me traspassa
(mas estou no cinema, e tão pequeno
e volto triste à casa; por que não
com o russo em Berlim?).

Muitos de mim saíram pelo mar.
Em mim o que é melhor está lutando.
Posso também chegar, recompensado,
com o russo em Berlim.

Mas que não pare aí. Não chega o termo.
Um vento varre o mundo, varre a vida.
Este vento que passa, irretratável,
com o russo em Berlim.

Olha a esperança à frente dos exércitos,
olha a certeza. Nunca assim tão forte.
Nós que tanto esperamos, nós a temos
com o russo em Berlim.

Uma cidade existe poderosa
a conquistar. E não cairá tão cedo.
Colar de chamas forma-se a enlaçá-la,
com o russo em Berlim.

Uma cidade atroz, ventre metálico
pernas de escravos, boca de negócio,
ajuntamento estúpido, já treme
com o russo em Berlim.

Esta cidade oculta em mil cidades,
trabalhadores do mundo, reuni-vos
para esmagá-la, vós que penetrais
com o russo em Berlim.

* ANDRADE, Carlos Drummond de. A Rosa do Povo. 21ª Ed- Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 176-178.


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