domingo, 16 de agosto de 2015

A sociologia da literatura de Lucien Goldmann


Lucien Goldmann

Por Ricardo Musse.

 
A sociologia da literatura de Lucien Goldmann, apesar de pouco citada atualmente, situa-se inegavelmente entre as mais profícuas contribuições a essa área de estudos. Na confluência de algumas vertentes decisivas do pensamento do século XX – o marxismo, a sociologia do conhecimento, o estruturalismo –, tornou-se ponto de referência quase incontornável. No Brasil, em especial, seu impacto pode ser detectado na obra dos principais historiadores e críticos do fenômeno literário.

Sem descuidar do aspecto epistemológico, Goldmann prioriza o fator histórico – genético, em sua terminologia – na abordagem do fenômeno literário. Destaca, por exemplo, que a compreensão e a interpretação da obra ficcional exigem enfoques distintos, conforme a época do objeto em análise. Seus textos estabelecem uma clivagem bem nítida entre a arte produzida durante a vigência do Antigo Regime e a situação posterior à Revolução de 1789.

Para ele, a hipótese de uma homologia entre as estruturas das obras literárias e as estruturas mentais de determinados grupos sociais aplica-se com mais exatidão a sociedades estáticas, como a França do século XVII. Na vertente aberta por Wilhelm Dilthey – apoiando-se ainda nos desdobramentos oriundos das teorias do jovem Lukács e de Karl Mannheim –, Goldmann procura determinar uma tipificação sistemática das visões de mundo (mentalidades) predominantes nesse período, associando-as aos cinco grupos principais da sociedade de então: os grandes senhores, a nobreza da corte, a magistratura, o terceiro estado enriquecido e o povo.

A complexidade da dinâmica social posterior à Revolução Francesa, leva Goldmann a deixar em segundo plano essa homologia e a concentrar-se no enfrentamento da “reificação” – desdobrando a reativação feita por Lukács, em História e consciência de classe, do conceito de “fetichismo da mercadoria”, presente em O capital. Desloca também sua atenção de gêneros estabilizados (como “o drama”) para o romance, forma esta mais aberta e indefinida.

O autor de Sociologia do romance acompanha a dialética entre reificação e romance, ou melhor, a mediação que insere a estrutura e a mentalidade reificada no tema e no âmago da forma romance, a partir do quadro histórico e social resultante dos desdobramentos da sociedade capitalista.

Na fase inicial do capitalismo industrial, caracterizada economicamente pela concorrência e politicamente pela disseminação do ideário liberal (um padrão que Goldmann visualiza até os primórdios do século XX), o lamento e o protesto contra a reificação configuram-se no predomínio de personagens descritos – na chave de A teoria do romance, de Lukács – como “heróis-problemáticos”. O embate desse herói com a sociedade reificada reflete-se na própria estrutura – precária e problemática – do gênero romance.

Na fase dita imperialista, o aprofundamento da reificação social, seu avanço sobre a subjetividade burguesa, modifica a configuração da personagem romanesca. A tipificação do herói problemático é substituída por múltiplos e diferentes processos de dissolução do herói romanesco, como é o caso das obras literárias de Kafka, Joyce, Musil etc.

No “capitalismo de organização”, como Goldmann nomeia o Welfare State, registra-se o predomínio incontestável das estruturas reificantes e a quase nula resistência a esse avanço. O sintoma mais característico desse estado de coisas configura-se no noveau roman, descrito como uma modalidade de “fechamento da linguagem sobre si mesma pela ruptura com o referente”.

Uma crítica imanente dessa teoria, indicando suas aporias, não pode deixar de ressaltar dois aspectos: (1) a prevalência de uma concepção de grupo social excessivamente estática, na análise do século XVII francês, e (2) uma insuficiente compreensão do teor ambivalente da forma romance no capitalismo, em sua capacidade em ser ao mesmo tempo – como bem entenderam os teóricos da Escola de Frankfurt –, foco e resistência, expressão e negação da estrutura reificante.

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Nos anos 1960 e 1970, a obra de Goldmann tornou-se bibliografia essencial na Universidade francesa, e também na brasileira. Seu livro Ciências humanas e filosofia foi adotado por toda uma geração como uma introdução obrigatória à sociologia. Na passagem do século, no entanto, as marcas de seu trabalho foram desaparecendo. Salvo engano, a última reedição de uma de suas obras, no Brasil, data de 1993. Ausente dos currículos, das livrarias, sua obra deixou de ser referência e mesmo objeto de pesquisas acadêmicas.

A novidade, neste início de século – ainda insuficiente para retomar as necessárias reedições de sua obra – consistiu na publicação de dois livros sobre ele. Michael Löwy (seu orientando de doutorado), com a colaboração de Sami Naïr, editou pela Boitempo, Lucien Goldmann ou a dialética da totalidade, uma apresentação geral de sua vida intelectual, acompanhada de uma seleção de textos. Celso Frederico, em Sociologia da cultura: Lucien Goldmann e os debates do século XX (Cortez) discute, numa chave crítica, a sua obra em relação às linhagens predominantes na França, na segunda metade do século XX: existencialismo, marxismo e estruturalismo.

Além disso, traduziu-se um notável artigo sobre Goldmann na coletânea de Raymond Williams, Cultura e materialismo (Unesp). Nele, o crítico inglês compara a situação da sociologia da cultura na Inglaterra e na França, tecendo considerações sobre a gênese, o substrato e o alcance da sociologia da cultura, tendo como mote e norte a sociologia de Goldmann.

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Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Doutor em filosofia pela USP (1998) e mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992). Atualmente, integra o Laboratório de Estudos Marxistas da USP (LEMARX-USP) e colabora para a revista Margem Esquerda: ensaios marxistas, publicação da Boitempo Editorial. 

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