Lucien Goldmann
Por Ricardo Musse.
A sociologia
da literatura de Lucien Goldmann, apesar de pouco citada atualmente,
situa-se inegavelmente entre as mais profícuas contribuições a essa área
de estudos. Na confluência de algumas vertentes decisivas do pensamento
do século XX – o marxismo, a sociologia do conhecimento, o
estruturalismo –, tornou-se ponto de referência quase incontornável. No
Brasil, em especial, seu impacto pode ser detectado na obra dos
principais historiadores e críticos do fenômeno literário.
Sem
descuidar do aspecto epistemológico, Goldmann prioriza o fator histórico
– genético, em sua terminologia – na abordagem do fenômeno literário.
Destaca, por exemplo, que a compreensão e a interpretação da obra
ficcional exigem enfoques distintos, conforme a época do objeto em
análise. Seus textos estabelecem uma clivagem bem nítida entre a arte
produzida durante a vigência do Antigo Regime e a situação posterior à
Revolução de 1789.
Para ele, a
hipótese de uma homologia entre as estruturas das obras literárias e as
estruturas mentais de determinados grupos sociais aplica-se com mais
exatidão a sociedades estáticas, como a França do século XVII. Na
vertente aberta por Wilhelm Dilthey – apoiando-se ainda nos
desdobramentos oriundos das teorias do jovem Lukács e de Karl Mannheim
–, Goldmann procura determinar uma tipificação sistemática das visões de
mundo (mentalidades) predominantes nesse período, associando-as aos
cinco grupos principais da sociedade de então: os grandes senhores, a
nobreza da corte, a magistratura, o terceiro estado enriquecido e o
povo.
A
complexidade da dinâmica social posterior à Revolução Francesa, leva
Goldmann a deixar em segundo plano essa homologia e a concentrar-se no
enfrentamento da “reificação” – desdobrando a reativação feita por
Lukács, em História e consciência de classe, do conceito de “fetichismo da mercadoria”, presente em O capital. Desloca também sua atenção de gêneros estabilizados (como “o drama”) para o romance, forma esta mais aberta e indefinida.
O autor de Sociologia do romance acompanha
a dialética entre reificação e romance, ou melhor, a mediação que
insere a estrutura e a mentalidade reificada no tema e no âmago da forma
romance, a partir do quadro histórico e social resultante dos
desdobramentos da sociedade capitalista.
Na fase
inicial do capitalismo industrial, caracterizada economicamente pela
concorrência e politicamente pela disseminação do ideário liberal (um
padrão que Goldmann visualiza até os primórdios do século XX), o lamento
e o protesto contra a reificação configuram-se no predomínio de
personagens descritos – na chave de A teoria do romance, de
Lukács – como “heróis-problemáticos”. O embate desse herói com a
sociedade reificada reflete-se na própria estrutura – precária e
problemática – do gênero romance.
Na fase dita
imperialista, o aprofundamento da reificação social, seu avanço sobre a
subjetividade burguesa, modifica a configuração da personagem
romanesca. A tipificação do herói problemático é substituída por
múltiplos e diferentes processos de dissolução do herói romanesco, como é
o caso das obras literárias de Kafka, Joyce, Musil etc.
No “capitalismo de organização”, como Goldmann nomeia o Welfare State,
registra-se o predomínio incontestável das estruturas reificantes e a
quase nula resistência a esse avanço. O sintoma mais característico
desse estado de coisas configura-se no noveau roman, descrito como uma modalidade de “fechamento da linguagem sobre si mesma pela ruptura com o referente”.
Uma crítica
imanente dessa teoria, indicando suas aporias, não pode deixar de
ressaltar dois aspectos: (1) a prevalência de uma concepção de grupo
social excessivamente estática, na análise do século XVII francês, e (2)
uma insuficiente compreensão do teor ambivalente da forma romance no
capitalismo, em sua capacidade em ser ao mesmo tempo – como bem
entenderam os teóricos da Escola de Frankfurt –, foco e resistência,
expressão e negação da estrutura reificante.
* * *
Nos anos
1960 e 1970, a obra de Goldmann tornou-se bibliografia essencial na
Universidade francesa, e também na brasileira. Seu livro Ciências humanas e filosofia
foi adotado por toda uma geração como uma introdução obrigatória à
sociologia. Na passagem do século, no entanto, as marcas de seu trabalho
foram desaparecendo. Salvo engano, a última reedição de uma de suas
obras, no Brasil, data de 1993. Ausente dos currículos, das livrarias,
sua obra deixou de ser referência e mesmo objeto de pesquisas
acadêmicas.
A novidade,
neste início de século – ainda insuficiente para retomar as necessárias
reedições de sua obra – consistiu na publicação de dois livros sobre
ele. Michael Löwy (seu orientando de doutorado), com a colaboração de
Sami Naïr, editou pela Boitempo, Lucien Goldmann ou a dialética da totalidade, uma apresentação geral de sua vida intelectual, acompanhada de uma seleção de textos. Celso Frederico, em Sociologia da cultura: Lucien Goldmann e os debates do século XX (Cortez)
discute, numa chave crítica, a sua obra em relação às linhagens
predominantes na França, na segunda metade do século XX:
existencialismo, marxismo e estruturalismo.
Além disso, traduziu-se um notável artigo sobre Goldmann na coletânea de Raymond Williams, Cultura e materialismo
(Unesp). Nele, o crítico inglês compara a situação da sociologia da
cultura na Inglaterra e na França, tecendo considerações sobre a gênese,
o substrato e o alcance da sociologia da cultura, tendo como mote e
norte a sociologia de Goldmann.
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Ricardo Musse
é professor no departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Doutor
em filosofia pela USP (1998) e mestre em filosofia pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (1992). Atualmente, integra o Laboratório
de Estudos Marxistas da USP (LEMARX-USP) e colabora para a revista Margem Esquerda: ensaios marxistas, publicação da Boitempo Editorial.
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FONTE: Blog da Boitempo
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