sábado, 8 de setembro de 2012

Os conteúdos escolares e a ideologia dominante



Por Cátia Lapeiro

É uma opinião largamente difundida pelo sistema capitalista que a educação seja algo de apolítico, ou, como se costuma frequentemente dizer, seja «neutra». Esta afirmação reflete uma concepção de educação que prescinde dos elementos sociológicos que a condicionam, e cria o conceito de «educação pela educação», naquilo que é um espaço social. Ao contrário, se considerarmos a educação como determinada pela forma social dentro da qual se constituem as suas finalidades, e na qual deve ser realizada, este conceito acha-se imediatamente envolvido nos contrastes reais da sociedade, ou seja, inserido no contexto da luta de classes. A educação preenche um lugar insubstituível nas sociedades humanas, na construção da sua história e na estruturação das relações entre os homens. Por isso, a educação de massas é um dos mais potentes instrumentos de controle das mesmas, como também pode ser um poderoso instrumento para a sua libertação. A edificação da consciência humana está profundamente interligada com a educação e a forma como se aprende e com o que se aprende. Assim, dominar sistemas educativos no quadro actual do sistema capitalista é um enorme passo para a consolidação do seu poder. As teses marxistas fundamentais que dizem respeito à educação baseiam-se no seu caráter de classe, ou seja, na ideia de que a educação é um instrumento da classe dominante ao serviço dos seus interesses de classe.

A questão da educação constituída para perpetuar o sistema não se prende só com a sua clara e cada vez maior elitização, que afasta per si os filhos dos trabalhadores dos mais elevados graus de ensino. Este é um dos fatores fundamentais, mas a utilização da Educação pelo capitalismo consegue ir mais longe. E a temática deste texto prende-se sobretudo com os conteúdos escolares. Este é um tema que pode ser muito abrangente, do ponto de vista do tipo de conteúdos e da forma como podem ser incutidos. Apenas serão dados alguns exemplos, dando preponderância aos manuais escolares, que são dos elementos mais paradigmáticos de transmissão de conteúdos; assim como ao ensino da História, tendo em conta o seu papel de relevo para a formação de representações sociais e concepções do mundo.

São diversos os recursos didáticos disponíveis em cada escola para apoio à prática letiva dos docentes, mas nenhum deles conseguiu a centralidade e o destaque no quotidiano escolar, que têm os manuais escolares, ao longo de várias gerações. O manual escolar transformou-se num dos recursos didáticos mais utilizados, constituindo suporte ao trabalho do professor, delineando a natureza da sua atividade, e tendo-se tornado, em alguns casos, um substituto do próprio programa da disciplina. Corrêa (1), refere-se aos manuais escolares como configurando um objeto em circulação, sendo por isso veículos de circulação de ideias que traduzem valores e comportamentos que alguns desejam que sejam ensinados. E vai mais longe, falando mesmo numa política do manual escolar, que visa a formação das massas populares com base em conhecimentos que alguns acham que deveriam ou não ter acesso, significando assim o controle sobre os conteúdos escolares e, de certo modo, o controle sobre as práticas escolares e a produção dos próprios manuais.

Uma das questões que se coloca é a seletividade do conhecimento na Escola. A forma como, entre todo um vasto campo possível de passado e presente, se escolheram como importantes determinados significados e práticas, enquanto outros são negligenciados e excluídos. E muitas vezes, alguns desses significados são reinterpretados, diluídos ou colocados em formas que fundamentam a cultura dominante. Outra das questões é a estrutura constitutiva da maioria dos currículos escolares centrar-se em torno do consenso. Poucas são as tentativas sérias de lidar com o conflito, sendo que em vez disso «investiga-se» uma ideologia do consenso que revela-se pouco semelhante com os significados e contradições complexas que envolvem o controlo e a organização da vida social. Deste modo, a chamada «tradição selectiva» prescreve que não se ensine, ou irá seletivamente reinterpretar a verdadeira história da classe operária ou a história da mulher (por exemplo). A Escola, a pretexto de ser neutra, não aborda muitas vezes questões que estão na base da existência das classes dominadas: os salários, as greves, o desemprego, as guerras coloniais. Também ocorre que considerações sobre a justiça da vida social surjam progressivamente despolitizadas e transformadas em enigmas supostamente «neutros». Como disse Marx (1843), não se devem aceitar as ilusões de uma época, as próprias abordagens das participantes fundamentadas no senso comum sobre as atividades intelectuais e programáticas, mas sim o investigador deve «situar» tais atividades no campo mais vasto do conflito econômico, ideológico e social.

Para Silva (2), os discursos escolares sobre a história, estão «embrenhados» de uma concepção de historicidade onde o principal nexo interpretativo está nos encadeamentos cronológicos, sem que seja atribuída qualquer importância aos intérpretes, às relações de poder que sustentam o seu trabalho, e aos problemas construídos pelo processo de conhecimento. Neste modo de conceber a aprendizagem não há espaço para considerar o estudante como um agente capaz de propor questões ou dispor conhecimento a partir da sua própria experiência social. Stephanou (3), aborda três características do conhecimento histórico contemplado nos currículos, que se podem eventualmente aplicar aos currículos portugueses: a) o fato de deter-se sobre fatos passados, acentuando a atuação de personagens especiais, cujas intenções, propósitos e vontade são propulsores dos eventos históricos destacados nos cenários das diferentes épocas. Aparece claramente uma concepção de sujeito autônomo nestas formulações; b) o destaque dado aos acontecimentos oficiais; c) a apresentação dos fatos por meio da sucessão cronológica, dispostos linearmente, convergindo para a noção de evolução e de relações de causa-efeito.

Podemos dizer que o caráter evolutivo da História faz parte de uma leitura humana do real, e não de um dado concreto e objetivo. O social é movimento, e essa noção constitui um critério fundamental da explicação científica, uma vez que permite desnaturalizar os fenômenos históricos e sociais, demonstrando que não são imutáveis, e não se repetem(4). Uma suposição básica parece ser a de que o conflito entre grupos de pessoas é inerente e fundamentalmente mau, e que nos deveríamos esforçar para o eliminar dentro do quadro estabelecido das instituições, em vez de ver o conflito e a contradição como «forças propulsoras» da sociedade, enquadrado na luta de classes.

Passemos a alguns exemplos concretos. Olhando para o conjunto de manuais escolares de História do 9.º ano, que mais foram utilizados entre 2005 e 2008, em escolas do distrito de Coimbra, podemos retirar várias conclusões, somente analisando os conteúdos da abordagem ao regime fascista em Portugal, à Guerra Colonial e à Revolução de Abril, momentos tão relevantes na história do nosso país.

Comecemos pelo tema da Guerra Colonial. Um dos exemplos mais flagrantes reporta-se à contextualização da Guerra, nomeadamente a referência aos seus antecedentes ou causas. O ponto de vista dos países colonizados que é apresentado nesta categoria é na maioria das vezes apenas a descrição do surgimento dos movimentos independentistas. Ou mesmo os confrontos e ataques que surgiram nas colônias. Pouco relevadas são as causas destes confrontos ou as causas do surgimento de movimentos independentistas organizados. Quase nenhum manual se refere às características das condições de vida dos povos colonizados, à forma como foram explorados e quiseram resistir, como razão para o desencadeamento dos confrontos. Tal confirma-se igualmente quando analisamos a categoria das consequências da Guerra Colonial. No que concerne às consequências para os países colonizados, é claramente dada menos relevância aos custos humanos dos países colonizados. Para além dos custos humanos, em vários manuais, a única consequência que aparece refere-se à construção de infra-estruturas nos países colonizados que contribuiriam para o desenvolvimento das colônias. Poderíamos dizer ainda, que o ônus do desencadeamento da Guerra Colonial aparenta ser colocado várias vezes nos movimentos independentistas. Vários manuais deixam claro que o início da guerra pertence aos movimentos independentistas, talvez esquecendo que esta é o desencadeamento de várias causas. É aqui patente a confirmação do que dizia Apple (5), quando se referia à seletividade do conhecimento na Escola, que se reflete nos currículos e manuais escolares. Ou seja, a forma como se escolhem determinados significados e práticas, enquanto outros são negligenciados e excluídos. A própria caracterização dos movimentos independentistas reflete a opção por um determinado tipo: uma caracterização intimamente ligada a conceitos de caráter mais agressivo – a maioria das vezes são caracterizados como guerrilheiros, e mesmo como atacantes e rebeldes.

Quando é analisada a caracterização de Portugal e das políticas do regime fascista do ponto de vista econômico, é de referir que é dado destaque ao atraso econômico e agrícola, mas são os Planos de Fomento Econômico que merecem um maior destaque na maioria dos manuais. Pouco ou nada é referido acerca da política monopolista, apenas surgindo uma componente num único manual escolar, que poderia pressupor o monopolismo – «favorecimento dos grandes industriais e banqueiros». Quando analisamos o chamado «marcelismo», do ponto de vista econômico, apenas são feitas referências, ainda que em poucos manuais, a um incentivo à industrialização e abertura da economia ao estrangeiro, referenciando apenas elementos positivos do contributo deste governo para a economia.

Do ponto de vista social, durante o governo de Salazar, é claramente destacada a questão da emigração e do êxodo rural, em detrimento da descrição de outros aspectos sociais. Vários aspectos sociais, que são certamente fatores deste fenômeno migratório, são na maioria dos manuais apresentados genericamente como «más condições de vida que levaram à emigração ou ao êxodo rural». Ou seja, os manuais escolares referenciam várias componentes de aspectos sociais – os baixos salários, a falta de instrução ou a falta de condições de habitabilidade – mas estas referências são breves e muito pouco descritas, seja no texto genérico, seja nos documentos apresentados. A descrição das políticas sociais durante o «marcelismo» resume-se à Reforma do Ensino e ao alargamento da Providência Social. É evidente que dos aspectos mais referenciados com conotação negativa, e descritos como fatores de descontentamento relativamente ao governo de Salazar, são os ataques às liberdades democráticas, para além da Guerra Colonial. A descrição das questões sociais é pouca, comparativamente a este aspecto e aos aspectos da economia. No que diz respeito ao governo de Marcelo Caetano, a generalidade dos manuais refere-se a aspectos de abertura do regime do ponto de vista das liberdades democráticas, sendo várias as componentes encontradas – «regresso de alguns exilados políticos»; «abrandamento da censura»; «abrandamento da repressão»; ou «organizações políticas foram legalizadas para ir às urnas».

Num enquadramento que se procura fazer do ponto de vista internacional, nomeadamente falando das pressões da ONU ou das questões da II Guerra Mundial, não deixa de ser questionável que apenas em dois manuais escolares seja feita referência à relação de Salazar com os regimes fascistas de Hitler e Mussolini.

A caracterização da oposição ao regime está muito centralizada na questão da participação nas eleições, como forma de protesto contra regime. No entanto, ações concretas de combate ao regime fascista que ocorreram e tiverem uma importância fundamental, como as manifestações e greves de trabalhadores e estudantes, são muito pouco mencionadas. Este fato pode fazer-nos colocar a hipótese que Snyders (6) colocou: a escola não aborda muitas vezes questões que estão na base da existência das classes dominadas, como a luta geral dos trabalhadores. Trata-se de qualquer modo de mais um exemplo de seletividade. É também evidente a pessoalização da oposição. Quando se fala na ação dos opositores existe uma tendência para centrar a caracterização só em determinadas personagens (isto é claramente evidente com o general Humberto Delgado). Confirma-se aqui uma das características apontadas por vários autores acerca dos programas e currículos de história: a centralização dos processos históricos em «heróis», individuais. É evidente que com isto está a ser negligenciado o papel do «coletivo» na maioria dos avanços históricos das sociedades ao longo dos tempos.

A caracterização do processo revolucionário do 25 de Abril, na generalidade dos manuais escolares, reflete claramente uma das características apontadas por Stephanou e por Felgueiras (7) aos currículos e programas de História: a apresentação de fatos por sucessão cronológica, dispostos linearmente, que normalmente é vista como um todo contínuo, mas que é várias vezes pobre em conteúdo e na descrição. Relativamente ao desencadeamento da Revolução, o enfoque é praticamente dado apenas ao golpe militar protagonizado pelo MFA. Maioria dos manuais referem o apoio popular, mas muito pouco descrevem o que foi este contributo fundamental e determinante.

Relativamente às consequências da Revolução, são focados os aspectos essenciais das conquistas na maioria dos manuais, mas na generalidade das vezes nada é aprofundado. Em todos os casos, nomeadamente nas conquistas sociais e das liberdades democráticas, apenas é designada a conquista, não sendo descrito mais nada, nem como a conquista se efetivou na vida da população. No quadro da importância que teve a Revolução de Abril para a consagração das mais vastas liberdades democráticas e direitos, a referência nos manuais escolares a estes direitos e à sua concretização é quase nenhuma, sendo dada mais ênfase à instabilidade político-social no pós- 25 de Abril, do que à descrição da efetivação dos direitos consagrados.

Muitos outros exemplos podiam ser dados neste plano, desde as descrições feitas da União Soviética ou a descrição do que foi a II Guerra Mundial e os seus principais atores, ou mesmo conteúdos de outras disciplinas. Podíamos enveredar pelo conteúdo dos exames nacionais, aos quais hoje a formação está «agarrada». Ou poderíamos entrar nos conteúdos dados nas diversas áreas do Ensino Superior, claramente perpetuando modelos únicos e que ajudam a perpetuar a perspectiva do sistema.

Este é um tema muito vasto e que nos dias de hoje continua a estar cada vez mais presente na vida das escolas, de tal modo «entranhado» que é preocupante pensarmos nas suas consequências. No sistema capitalista, o uso da escola como aparelho ideológico e tentando de forma «institucionalizada» moldar consciências e perspectivas do mundo e da sociedade é uma arma poderosa que a classe dominante tem nas mãos. A vida, as suas condições, o trabalho de consciencialização feito, a organização da resistência, será sem dúvida o maior contributo que se poderá dar para a alteração desta situação. Num sistema diferente, na democracia avançada, no socialismo, irá florescer a educação e os seus conteúdos como um fator de libertação e emancipação do Homem, como impulsionadora do progresso. E tal teria também um profundo cunho ideológico, sem dúvida…, mas que estaria do outro lado da barricada.

Notas

(1) Corrêa, Rosa Lydia Teixeira (2000), «O livro escolar como fonte de pesquisa em História da Educação», Cadernos CEDES, 20, n.º 52.
(4) Idem.
(5) Apple, Michael W. (1999), «Ideologia e Currículo», Porto Editora, Porto.
(6) Snyders, George (1977), «Escola, Classes e lutas de classes», 1.ª ed., Moraes editores, São Paulo. 
(7) Stephanou, Maria (1998), op. cit.



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