Documentos secretos do Itamaraty comprovam que a ditadura brasileira sabia do golpe de estado no Chile mais de um mês antes do presidente Salvador Allende (foto) ser deposto, reforçam a tese de que os golpistas brasileiros foram, ao lado dos Estados Unidos, os principais articuladores do golpe que derrubou o primeiro presidente socialista eleito pelo voto popular no mundo, e ainda demonstram o intenso monitoramento das atividades dos exilados brasileiros que viviam naquele país.
Najla Passos - Brasília
Brasília - Documentos secretos do Itamaraty, agora abertos
à consulta pública no Arquivo Nacional, comprovam que a ditadura brasileira
sabia que iria ocorrer um golpe de estado no Chile mais de um mês antes do
presidente Salvador Allende ser deposto, em 13 de setembro de 1973. E reforçam a
tese defendida por pesquisadores da Operação Condor de que os militares
brasileiros e seus aliados civis foram, ao lado dos Estados Unidos, os
principais articuladores do golpe que derrubou o primeiro presidente socialista
eleito pelo voto popular no mundo.
Os documentos foram produzidos pelo
Centro de Informações do Exterior (Ciex), o serviço secreto criado pelo
Itamaraty em 1966 para auxiliar a ditadura brasileira a combater o chamado
“perigo vermelho”. Além de demonstrarem a proximidade entre a diplomacia
brasileira e os militares golpistas chilenos, revelam que os exilados e banidos
brasileiros no Chile tiveram todos seus passos monitorados pelo Ciex, a serviço
do Serviço Nacional de Informação (SNI), o temido órgão central de inteligência
do governo ditatorial.
No dia 8 de agosto de 1973, 35 dias antes do
golpe, o Informe nº 389, não assinado, alertava a ditadura brasileira de que os
altos chefes militares chilenos haviam realizada uma reunião secreta, seis dias
antes, na base aérea El Bosque, em Santiago, para examinar “as várias medidas
adotadas pelos militares brasileiros quando da revolução de 31 de março de 1964,
a fim de determinar em que tal experiência poderia ser útil ao Chile”. Conforme
o documento, eles discutiram também a conjuntura chilena e o papel das forças
armadas do país perante a crise.
Pelo relato do Ciex, estiveram
presentes à reunião o comandante-chefe da Força Aérea Chilena, general-aviador
Cesar Ruiz, o comandante da 1ª Zona Naval, Ernesto Jobet, representando o
vice-almirante José Turíbio, e o diretor da Aviação Naval, comandante Ernesto
Huber Von Hapen, além de diversos oficiais reformados da Marinha e da
Aeronáutica. Ruiz havia afirmado que o Chile “estava sob o fio da navalha” e que
a adesão a um possível golpe militar se alastrava pelas forças
armadas.
No informe, os diplomatas brasileiros avaliam que, desde que
começaram a discutir um possível golpe contra o “governo marxista de Allende”,
as forças armadas chilenas sempre respeitaram a hierarquia militar e procuraram
firmar a maior coesão possível entre elas para derrotar o presidente marxista.
O documento termina elogiando uma entrevista coletiva concedida à
imprensa chilena pelo general Alfredo Canales, que lançara as bases para a
constituição da Junta Unificadora Nacional (JUN), o partido político que viria a
dar sustentação à ditadura. Segundo o informe, “essa coroação pode servir para
coroar os esforços, até aqui desenvolvidos clandestinamente, de motivar os
militares para uma intervenção contra o governo marxista de Salvador Allende”.
Ao final, o Ciex registra a seguinte nota: “O presente informe não poderá ser
difundido para serviços de informações estrangeiros”.
No mesmo dia, o
Ciex emitiu o Informe nº 390, sobre o agravamento da situação no Chile. “Mais
uma vez, em menos de 60 dias, a situação política chilena torna-se gravíssima. O
governo parece ter perdido virtualmente o controle do país”, diz o documento. De
acordo com o Itamaraty, o fracasso das conversações entre Allende e o presidente
do Partido Democrata Cristão (PDC), a continuidade da greve nos transportes, a
anunciada adesão do comércio à paralisação e a escalada terrorista, que teria
somado mais de 200 atentados nos últimos 15 dias, seriam o pano de fundo para a
crise.
O Informe relata ainda que Allende estaria planejando realizar
uma reforma ministerial para incluir militares no seu staff, como forma de
responsabilizá-los pela manutenção da ordem no país. Para o Itamaraty, a medida
prejudicaria uma possível “intervenção” (termo a que se referiam ao golpe).
Após relatar o desgaste do governo perante os militares, com a
antecipação da reforma de dois generais e outras medidas, o documento do CIEX
alerta que circulam boatos de que o golpe poderá ocorrer nas próximas 24 horas.
No dia seguinte, o Informe nº 393 se desculpa pelas informações
contraditórias do dia anterior, justificadas pelo “rápido desenrolar dos
acontecimentos”. Relata que, de fato, conforme antecipado, foram designados
quatro militares para os cargos de ministros de estado. Um deles era o próprio o
comandante-chefe da Força Aérea Chilena, general-aviador Cesar Ruiz, que havia
participado da reunião secreta para discutir o golpe, no dia 2.
E mesmo
apesar dos militares terem aceitado integrar o staff do governo socialista de
Allende, o documento era taxativo: “atualmente existe um verdadeiro consenso da
oficialidade das forças armadas chilenas no sentido de que a única solução para
o país é a intervenção militar, porém o problema continua sendo o de uma
liderança efetiva para o movimento”. O Itamaraty avalia, também, que a falta de
uma liderança era o motivo pelo qual, desde a tentativa frustrada de golpe em
junho, três outras rebeliões estiveram a ponto de estourar, mas foram abortadas.
Os documentos não fazem nenhuma referência ao general Augusto Pinochet,
que viria a ser a principal liderança do golpe. tido até então por muitos como
pessoa ligada à Allende.
O documento também tece comentários sobre a
situação econômica do Chile e a criação da JUR. “É inevitável concluir que um
movimento armado contra o governo marxista de Salvador Allende é inevitável,
porém tanto poderá ocorrer nos próximos dias como em um prazo mais
longo”.
No dia 13 de agosto, exato um mês antes do golpe, o Informe nº
396 levanta a insatisfação das forças armadas chilenas com a nomeação dos quatro
militares para o staff do governo. “Consideram os militares que Allende teria,
com esta manobra, visado a um duplo objetivo: ganhar tempo para que as esquerdas
continuem se fortalecendo e provocar a desmoralização das forças armadas”, diz o
documento.
Segundo o Itamaraty, a impressão predominante nas forças
armadas chilenas é que os ministros militares nada poderão fazer para resolver a
crise chilena e que, procurando tomar medidas acertadas, tudo o que lograrão é
desgastar ou comprometer as devidas forças. “Por isso mesmo, a única solução
para o problema chileno é o golpe militar, ao qual só o Exército ainda se
mostra, em parte, hesitante”, defende.
O Informe nº 402, de 20 de
agosto, é decisivo para demonstrar a proximidade das autoridades diplomáticas
brasileiras e os militares insurgentes, que planejavam o golpe. O nível de
detalhamento das informações obtidas pelo Itamaraty é revelador. O documento
relata o agravamento da crise, com o pedido de demissão do general Cesar Ruiz do
cargo de ministro de Obras Públicas.
Segundo o Ciex, era possível
observar forte inquietação na marinha e na aeronáutica. A exceção era o exército
chileno, em função do forte respeito hierárquico a figura do general Carlos
Pratz e outros cinco ou seis generais simpatizantes do regime ou defensores da
tese legalista. “Diante desta quadro, fontes idôneas e bem situadas consideram
possível um desenlace nos próximos dias, podendo culminar com a queda do governo
Allende”.
Monitoramento dos exilados
Outro Informe, produzido no dia
seguinte, demonstra que o Itamaraty mantinha total controle das atividades dos
exilados e banidos brasileiros que, à época, vivam no país. O Informe nº 404
relata que, durante as 48 horas que precederam a posse do novo ministério, toda
a esquerda chilena em condições de atuar fora mobilizada para evitar uma nova
tentativa de golpe contra Allende.
O documento afirma também que,
segundo alguns asilados brasileiros ligados ao Partido Comunista Chileno (PCCh),
a tática do partido à época era tentar equilibrar a situação, pelo menos pelos
próximos seis meses, porque a pior crise econômica estaria por vir, em novembro
próximo. Ainda segundo o informe, após fevereiro de 1974, haveria um alívio
considerado, devido à ação do governo. Os brasileiros responsáveis pelas
informações grampeadas seriam Almino Afonso, Ulrich Hoffman reger e Armando
Ziller.
O Informe observava ainda que a tática do Partido Socialista
(PS) era
reprimir os militantes de ultraesquerda para justificar a repressão
também contra a direita. O comunicado atribui à deputada Carmem Lazo a avaliação
de que, se Allende superar 1973, o ano seguinte seria bem mais tranquilo e a
Unidade Popular (UP) poderia vencer as eleições de 1976, tendo a sua frente uma
figura como o general Carlos Pratz ou Gabriel Valdez (PDC). Ambos de tendências
constitucionalistas. A UP foi a coalizão de esquerda que elegeu Allende e deu
sustentação ao seu breve governo.
Participação brasileira
O
médico e político Salvador Allende foi eleito presidente do Chile em outubro de
1970. Governou com muita dificuldade até 11 de setembro de 1973, quando foi
deposto por um golpe de estado comandado por seu chefe das forças armadas,
Augusto Pinochet. Morreu no Palácio de La Moneda, durante a invasão das tropas
ditatoriais. Até hoje não se sabe se foi assassinado ou se teria cometido
suicídio.
A participação do Brasil no golpe é defendida por pesquisadores
como a jornalista e escritora chilena Mónica Gonzalez, autora do livro “La
Conjura - Os Mil e Um Dias do Golpe”, o ex-assessor de Allende e atual diretor
do Programa da ONU para o Desenvolvimento (PNUD), Heraldo Muñoz, autor de “A
Sombra do Ditador - Memórias Políticas do Chile sob Pinochet”, e o historiador
brasileiro Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira, autor de “Fórmula para o
Caos”.
Nessas obras, os autores relatam a intensa relação entre o
embaixador brasileiro no Chile à época, Antônio Castro de Alcântara Canto, com
os militares golpistas. Há denúncias de que reuniões preparativas para o
chegaram a ocorrer na sede da embaixada brasileira e de que Castro foi o único
brasileiro presente à posse de Pinochet, entre outras evidências.
No
Seminário Internacional sobre a Operação Condor, realizado pela Comissão
Parlamentar Memória, Verdade e Justiça, na Câmara, no mês passado, Mónica Gonzalez cobrou do governo brasileiro a apuração sobre
a participação do país no golpe. “Nós sabemos foram os empresários brasileiros
que financiaram a junta militar responsável pelo golpe. E que as primeiras armas
que chegaram ao Chile para apoiar Pinochet saíram do Exército brasileiro.
Queremos que essa história seja esclarecida e os culpados, punidos”,
reivindicou.
FONTE: Carta Maior
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