O depoimento de Claudio Guerra, em "Memórias de uma guerra suja", detalha o envolvimento de empresários com a ditadura. Esse é o aspecto que mais impressionou ao escritor e jornalista Bernardo Kucinski. Sua irmã, Ana Rosa Kucinski, e o cunhado, Wilson Silva, foram sequestrados em 1974 e integram a lista dos desaparecidos. Bernardo atesta: "Está tudo lá: empresas como Gasbras, White Martins, Itapemirim, grupo Folha e o banco Sudameris; o dinheiro dos empresários jorrava para custear as operações clandestinas e premiar bandidos com bonificações generosas".
Saul Leblon
São Paulo - O livro "Memórias de uma guerra suja",
depoimento do ex-delegado do DOPS, Claudio Guerra, a Marcelo Netto e Rogério
Medeiros, foi recebido inicialmente com certa incredulidade até por setores
progressistas. Há revelações ali que causam uma rejeição visceral de
auto-defesa. Repugna imaginar que em troca de créditos e facilidades junto à
ditadura, uma usina de açúcar do Rio de Janeiro tenha cedido seu forno para
incinerar cadáveres de presos políticos mortos nas mãos do aparato repressivo.
O acordo que teria sido feito no final de 1973, se comprovado, pode se
tornar o símbolo mais abjeto de uma faceta sempre omitida nas investigações
sobre a ditadura: a colaboração funcional, direta, não apenas cumplicidade
ideológica e política, mas operacional, entre corporações privadas, empresários
e a repressão política. Um caso conhecido é o da "Folha da Tarde", jornal da
família Frias, que cedeu viaturas ao aparato repressivo para camuflar operações
policiais.
Todavia, o depoimento de Guerra mostra que nem o caso da
usina dantesca, nem o repasse de viaturas da Folha foram exceção. Esse é o
aspecto do relato que mais impressionou ao escritor e jornalista Bernardo
Kucinski, que acaba de ler o livro. Sua irmã, Ana Rosa Kucinski, e o cunhado,
Wilson Silva, foram sequestrados em 1974 e desde então integram a lista dos
desaparecidos políticos brasileiros. Bernardo atesta: "Esta tudo lá: empresas
importantes como a Gasbras, a White Martins, a Itapemirim, o grupo Folha e o
banco Sudameris, que era o banco da repressão; o dinheiro dos empresários
jorrava para custear as operações clandestinas e premiar os bandidos com
bonificações generosas".
No livro, Claudio Guerra afirma que Ana Rosa e
Wilson Campos - a exemplo do que teria ocorrido com mais outros oito ou nove
presos políticos -tiveram seus corpos incinerados no imenso forno da Usina
Cambahyba, localizada no município fluminense de Campos.
A incredulidade
inicial começa a cair por terra. Familiares de desaparecidos políticos tem feito
algumas checagens de dados e descrições contidas no livro. Batem com informações
e pistas anteriores. Consta ainda que o próprio governo teve acesso antecipado
aos relatos e teria conferido algumas versões, confirmando-as. Tampouco o livro
seria propriamente uma novidade para militantes dos direitos humanos que
trabalham junto ao governo.
O depoimento de Guerra, de acordo com alguns
desses militantes, teria sido negociado há mais de dois anos, com a participação
direta de ativistas no Espírito Santo. A escolha dos jornalistas que assinam o
trabalho - um progressista e Marcelo Netto, ex-Globo simpático ao golpe de 64 -
teria sido deliberada para afastar suspeitas de manipulação. Um pedido de
proteção para Claudio Guerra já teria sido encaminhado ao governo. Sem dúvida, o
teor de suas revelações, e a lista de envolvimentos importantes, recomenda que o
ex-delegado seja ouvido o mais rapidamente possível pela Comissão da
Verdade.
Bernardo Kucinski, autor de um romance, "K", - na segunda edição
- que narra a angustiante procura de um pai pela filha engolida no sumidouro do
aparato de repressão, respondeu a quatro perguntas de Carta Maior sobre as
"Memórias de uma Guerra Suja":
Carta Maior - Depois de ler a
obra na íntegra, qual é a sua avaliação sobre a veracidade dos
relatos?
Kucinski - As confissões são congruentes e não
contradizem informações isoladas que já possuíamos. Considero o relato
basicamente veraz, embora claramente incompleto e talvez prejudicado pelos
mecanismos da rememoração, já que se trata da confissão de uma pessoa
diretamente envolvida nas atrocidades que relata.
CM - Por que
um depoimento com tal gravidade continua a receber uma cobertura tão rala da
mídia? Por exemplo, não mereceu capa em nenhuma revista semanal
'investigativa'.
Kucinski - Pelo mesmo motivo de não termos
até hoje um Museu da Escravatura , não termos um memorial nacional aos mortos e
desaparecidos da ditadura militar, e ainda ensinarmos nas escolas que os
bandeirantes foram heróis; uma questão de hegemonia de uma elite de formação
escravocrata.
CM - Do conjunto dos relatos contidos no livro,
quais lhe chamaram mais a atenção?
Kucinski - O episódio
específico que mais me chamou a atenção foi a participação direta do mesmo grupo
de extermínio no golpe organizado pela CIA para derrubar o governo do MPLA em
Angola, com viagem secreta em avião da FAB.
CM - O que mais
ele revela de novo sobre a natureza da estrutura repressiva montada no país,
depois de 64?
Kucinski - Fica claro que as Forças Armadas
montaram grupos de captura e extermínio reunindo matadores de aluguel, chefes de
esquadrões da morte, banqueiros do jogo do bicho, contrabandistas e
narcotraficantes. Chamaram esses bandidos e seus métodos para dentro de si.
Esses criminosos, muitos já condenados pela justiça, dirigidos e controlados por
oficiais das Forças Armadas, a partir de uma estratégia traçada em nível de
Estado Maior, executavam operações de liquidação e desaparecimento dos presos
políticos, o que talvez explique o barbarismo das ações. Também me chamou a
atenção a participação ampla de empresários no financiamento dessa repressão,
empresas importantes como a Gasbras, a White Martins, a Itapemirim, o grupo
Folha - que emprestou suas peruas de entrega para seqüestro de ativistas
políticos -, e o banco Sudameris, que era o banco da repressão; dinheiro dos
empresários jorrava para custear as operações clandestinas e premiar os bandidos
com bonificações generosas . Está tudo lá no livro.
FONTE: Carta Maior
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