Por Otaviano Helene
Entre os problemas quantitativos do nosso sistema educacional estão, por exemplo, a pequeníssima taxa de atendimento na educação infantil (cerca de 20% na faixa etária até os 4 anos), a altíssima evasão escolar antes mesmo do término do ensino fundamental, da ordem de 30%, e a baixa taxa de conclusão do ensino médio (apenas cerca de 50% daqueles que ingressam no sistema escolar concluem esse nível educacional). Isso significa, por exemplo, que, a cada ano, perto de um milhão de pessoas entram na idade adulta sem, sequer, o ensino fundamental completo e outras cerca de 700 mil sem o ensino médio, números assustadores e capazes de comprometer significativamente nossas possibilidades de desenvolvimento social e cultural, e com graves repercussões em nossas possibilidades econômicas futuras.
Nas décadas recentes, quando esses problemas quantitativos foram enfrentados, o foram em detrimento dos aspectos qualitativos. Exemplo marcante disso é o que ocorreu ao longo da segunda metade da década de 1990. Nesse período, as taxas de matrícula e de conclusão dos ensinos fundamental e médio aumentaram significativamente. Entretanto, esse aumento ocorreu sem que fossem fornecidos ao sistema educacional os meios necessários para atender ao aumento do número de estudantes. Esses meios são formados, basicamente, por recursos financeiros, necessários para a contratação de mais profissionais e para construir, equipar e manter escolas.
Durante aquele período de crescimento das matrículas, os recursos públicos, medidos como percentual do PIB, não apenas não cresceram como apresentaram reduções em alguns anos. Como resultado, o desempenho médio dos estudantes foi significativamente reduzido ao longo do período, como mostra a média das pontuações das avaliações feitas pelo Sistema de Avaliação da Educação Básica dos estudantes das quarta e oitava séries do ensino fundamental e terceira do ensino médio, em matemática e português. Em resumo: mais estudantes com os mesmos recursos resultam em pior desempenho, o que parece óbvio.
A correlação entre indicadores quantitativos, qualitativos e de recursos, observada na segunda metade de década de 1990, é corroborada pelo que ocorreu depois disso. Ao longo da década que se iniciou em 2000, os números de concluintes e matrículas nos ensino fundamental e médio praticamente se estagnaram (e em patamares bastante baixos). Entretanto, nesse mesmo período, em especial na sua segunda metade, os recursos destinados à educação pública (onde está a enorme maioria dos estudantes da educação básica) aumentaram. Esse aumento é explicável pela melhora nas arrecadações de impostos havida no período e esta, por sua vez, explicável pelo aumento da produção econômica por meio do setor formal. Como os gastos com educação são definidos, constitucionalmente, com base na arrecadação de impostos, eles também aumentaram. Assim, passou‑se a atender a um mesmo número de estudantes com mais recursos, acontecendo o inverso do que vimos na década anterior: o desempenho, agora medido pelo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), melhorou entre 2005 e 2009 de uma média 3,6 para 4,1. Entretanto, pagamos um preço muito alto por essa melhora: deixamos de incluir no sistema educacional enormes contingentes de jovens e crianças.
Quando o desempenho dos nossos estudantes é comparado com o desempenho dos estudantes de outros países, nossos problemas qualitativos assustam ainda mais. Há um programa internacional de comparação do desempenho de estudantes de 15 anos de idade e que tenham menos do que três anos de defasagem idade-série, o PISA (programa da OCDE que examina a proficiência em leitura, matemática e ciências (1)), que, em sua versão de 2009, avaliou estudantes de 65 países. Menos do que 1% dos nossos estudantes de 15 anos de idade atinge os dois níveis superiores de uma escala que vai de 1 a 6, padrão atingido por cerca de 10% dos estudantes dos países mais desenvolvidos.
No outro extremo, daqueles que sequer atingiram o primeiro nível da escala, estão 21% dos nossos estudantes de 15 anos, contra 5% dos países da OCDE (e 3% dos membros da OCDE que fizeram parte do bloco socialista e apenas 1% dos finlandeses). A diferença é muito grande, e seria ainda maior se fossem incluídos na amostra todos os nossos jovens de 15 anos de idade, muitos dos quais não foram considerados no levantamento por já terem sido excluídos da escola ou apresentarem defasagem idade-série superior a dois anos, problemas que praticamente inexistem nos países mais desenvolvidos.
Nessa comparação internacional, o objetivo não é fazer um ranqueamento dos países para ilustrar como estamos mal. O objetivo é entender as nossas possibilidades de inserção soberana entre as demais nações quando países muito menos populosos que o nosso ou pequenas regiões dos países mais populosos têm um número maior de estudantes bem preparados (níveis 5 e 6 na escala do PISA) do que o Brasil como um todo.
No ensino superior, a qualidade é comprometida pelo pequeno número de estudantes bem preparados que conclui o ensino médio e pela enorme privatização do setor. De fato, o Brasil é um dos recordistas mundiais em privatização e, talvez para desgosto dos defensores do liberalismo, os EUA não estão entre eles. E, pior, privatização dominada por instituições mercantis que, como regra, oferecem cursos com apelo mercadológico, em regiões geográficas e áreas do conhecimento que não correspondem nem às necessidades de profissionais do país nem às carências das diferentes regiões. Essa privatização fez com que, em comparação com os demais países, tenhamos uma concentração muito alta de estudantes em cursos de baixos retornos cultural, social e econômico e poucos (ou pouquíssimos) em áreas relacionadas ao desenvolvimento do setor produtivo e à promoção do bem estar da população.
Assim, a expansão do ensino superior por meio do setor privado, coisa para a qual todos os governos federais e muitos dos estaduais e municipais contribuíram durante o último meio século, não só não foi suficiente para nos colocar em uma posição quantitativa compatível com nossa realidade econômica e social, como comprometeu, de forma gravíssima, a qualidade do sistema.
É fundamental reverter essa situação, enfrentando simultaneamente os problemas qualitativos e quantitativos. Entretanto, para que essa tarefa faça parte das agendas governamentais (dos municípios, dos estados e da União), muita luta ainda é necessária, inclusive e especialmente com o objetivo de aumentar os recursos públicos dirigidos ao setor educacional.
Notas:
(1) Program for International Student Assessment (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes). Os percentuais citados correspondem a valores médios dos desempenhos em leitura, matemática e ciências.
Otaviano Helene, professor no Instituto de Física da USP, foi presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
FONTE: Correio da Cidadania
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