sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Marx e Engels e as avaliações estratégicas após a derrota da Comuna de Paris

Por Valerio Arcary (*)


“O direito à revolução é o único 'direito histórico' real, o único sobre o qual repousam todos os Estados modernos sem exceção” (1)
Friedrich Engels


As discussões teóricas entre marxistas nunca são, politicamente, inocentes. E a discussão sobre a democracia – se a estratégia socialista deve se limitar à luta por reformas ou não - foi, possivelmente, uma das mais ásperas de todas. Não é um exagero reconhecer que o Prefácio que Engels escreveu em 1895 para o livro As lutas de classes em França de Marx, ao qual foi atribuído até o estatuto de “Testamento”, foi um dos textos que provocou na história da esquerda socialista mais controvérsias. O balanço da derrota da Comuna é uma das referências de Engels em 1895 para pensar a teoria da revolução. O argumento deste artigo é a crítica da estratégia de “radicalização da democracia”, o programa que surgiu na tradição socialista na Alemanha de Bernstein e Kautsky, e permanece a referência teórica do reformismo, ou seja, a chamada via inglesa.

A via inglesa e o debate sobre a transição pacífica

A questão da via inglesa em Marx esteve restrita à possibilidade de conquistar a democracia, em suas palavras, o sufrágio universal, contra regimes ditatoriais sem recorrer aos métodos da revolução, o que é muito diferente, evidentemente, de pensar a transição ao socialismo sem ruptura da ordem legal. O que se poderia afirmar é que: (a) ao contrário do continente, ou seja, a Europa, em países, como a Inglaterra e os EUA onde as resistências históricas das forças sociais aristocráticas e das forças políticas absolutistas eram menores ou residuais, Marx considerava razoável pensar, a partir da experiência do Cartismo, na conquista da democracia sem que uma revolução política fosse necessariamente indispensável, hipótese, aliás, a da excepcionalidade, confirmada pela história, embora curiosamente por um caminho inesperado, porque nos EUA, um dos países onde as limitações ao sufrágio no século XIX eram menores, uma revolução foi necessária, finalmente, para enterrar a escravidão e impedir a secessão, assim como na Alemanha, que só derrubou o regime bonapartista do Kaiser com a revolução de 1918; (b) a hipótese de que o partido operário se constituir em força política majoritária nos países mais desenvolvidos, se o sufrágio eleitoral fosse alargado sem restrições censitárias, o que não deixaria de colocar o desafio da revolução, mas o redefiniria, necessariamente, no terreno da tática. A perspectiva de Marx era a revolução democrática como ante-sala da revolução anticapitalista.

No que se refere ao continente, não há muitas dúvidas. Marx pensava os deslocamentos colocados à escala internacional a partir de duas premissas estratégicas: (a) a identificação de um núcleo duro da contra-revolução absolutista na Rússia dos czares, que seria o centro da reação européia, inimiga irreconciliável de uma revolução democrática na Alemanha, que se colocaria irremediavelmente a tarefa da unificação nacional, irradiando como um rastilho de pólvora a revolução democrática por toda a Europa central, sob as ruínas do Império austro-húngaro; (b) um núcleo histórico da revolução social proletária, com três componentes fundamentais, as três classes operárias com maior desenvolvimento, experiência e peso social, a francesa, a alemã e a inglesa. Mas sempre articulava a reflexão sobre a dialética da permanência da revolução em duas dimensões: como uma revolução européia e como duas revoluções, a primeira política e a segunda social. Esta é a interpretação de Draper:

“Marx nunca esperou que a revolução em 1848 pudesse vencer na atrasada Alemanha sozinha, se limitada às forças alemãs. Ele olhou para a Alemanha como um campo de batalha em uma guerra européia (a revolução) e, normalmente, um campo secundário. Isso acrescenta outra dimensão ao conceito de revolução permanente, pois vê o curso da revolução a nível europeu, processo "em permanência" (em ondas ininterruptas) de um país para outro. Há dois aspectos nesta interação de país para país: o papel do mais avançado (mais industrializados) dos países em relação a outros onde a burguesia ainda não tinha ganhado o poder político e o papel dos países opressores em relação às nacionalidades oprimidas ( ...) a expressão mais conhecida no início de Marx é a última frase da sua introdução a uma crítica da Hegel em 1844: "Quando todas as condições internas estiverem preenchidas, o dia da ressurreição alemã será anunciado pelo cantar do galo gaulês ". (Ele continuou a expressar essa opinião através de 1848.) (...) Podemos lembrar a observação precoce de Marx de que Napoleão tinha substituído a "revolução permanente pela guerra permanente”. A importância histórica das guerras napoleônicas foi espalhar a revolução burguesa para outras partes da Europa, isto é, eles fizeram a revolução "permanente" em escala internacional, mesmo limitando a revolução em casa (...) Ainda mais do que em dias de Napoleão, a revolução de 1848-1849 apresentou o espetáculo da revolução contagiosa, inflamando-se em ondas de um país para o outro, com um impacto interagindo. Pela primeira vez em uma escala tão grande, o internacionalismo não era apenas uma aspiração, um "valor moral", um devaneio, ou uma noção filosófica, mas uma prática, a matéria da força social” (2) (tradução e grifo nosso).


A questão central, tanto do ponto de vista teórico quanto histórico, é o problema do intervalo de tempo histórico entre as duas revoluções, ou seja, como Marx pensava os mecanismos de operação da permanência da revolução. Os defensores de uma democratista “via inglesa” em Marx, comprometidos com a estratégia gradualista da “democratização da democracia”, precisam, por suposto, de um Marx etapista. O tema pode ser apresentado como uma engrenagem ou complexa dialética entre três fatores: (a) a pressão das tarefas que a revolução deveria resolver (questão nacional, democracia, reforma agrária, e suas articulações com as reivindicações socialistas); (b) a pressão dos sujeitos sociais, quais as classes em mobilização e as frentes e acordos que poderiam ser capazes de estabelecer para a luta; (c) a centralidade ou não dos sujeitos políticos, em outras palavras, a questão da relação dos trabalhadores com suas organizações e lideranças, portanto, o lugar da consciência, do programa e da direção.

Engels e a estratégia da revolução depois da derrota da Comuna


O argumento forte de Engels no Prefácio é a insistência nas vantagens políticas que a utilização da legalidade trouxe ao fortalecimento do partido operário alemão. A necessidade de explorar até o limite máximo as possibilidades das novas liberdades como parte de um processo de acumulação de forças é a tônica do texto. Esta preocupação tem permitido uma polêmica sobre uma nova atitude, presumidamente, mais reformista face à democracia. Não parece ser o caso.

Marx e Engels sempre consideraram a democracia um regime progressivo contra o absolutismo, e não cansaram de escrever incontáveis páginas em sua defesa, inclusive lamentando a covardia histórica da burguesia alemã, de lutar por uma revolução política burguesa contra o regime de Bismarck. O que há de novo no Testamento é a defesa clara da tática alemã para todo o movimento operário internacional, onde as reservas face às vantagens do sufrágio universal ainda existiam, à exceção do partido francês. Engels insiste:

“Mesmo que o sufrágio universal não tivesse produzido outros benefícios que o de permitir contar-nos a nós mesmos cada três anos, que o de aumentar, pelo ascenso regularmente verificado e extremamente rápido do número de votos, a certeza dos operários na vitória, bem como na mesma medida o pavor entre seus adversários, tornando-se assim nosso melhor meio de propaganda; mesmo que só servisse para nos informar exatamente nossa própria força (...) preservando-nos tanto de um inoportuno temor como de uma louca audácia igualmente despropositada, e esse fosse o único benefício que tivéssemos tirado do direito de sufrágio, já seria mais do que suficiente. Mas ele nos deu muito mais. Forneceu-nos, com a agitação eleitoral, um meio inigualável para entrar em contacto com as massas populares onde elas ainda estão afastadas de nós, para obrigar todos os partidos a de­fender diante do povo suas opiniões;(...) ademais abriu a nossos representantes no Reichstag uma tribuna do alto da qual podem falar não apenas a seus adversários no Parlamento mas também às massas do lado de fora com maior autoridade e maior liberdade que na imprensa e nas reuniões” (3) (grifo nosso).


Eis aqui o entusiasmo com a tática do partido alemão. Com sua vigorosa implantação social e sucessos eleitorais, por um lado, e, talvez, com uma avaliação crítica do balanço da derrota da Comuna de Paris. Estas linhas pareceriam indicar que o velho Engels (de quem se disse que nos anos 90 viveu uma velhice feliz) acreditava que, pelo menos na Alemanha, estaria caduco o modelo teórico das duas revoluções, tal como tinham pensado à luz do processo de 1848. A hipótese de duas revoluções, encadeadas em processo permanente uma na outra, foi uma inspiração teórica que nasceu do estudo da Revolução Francesa de 1789. A revolução democrática seria assim a ante-sala de uma nova revolução política, que agora desloca o poder de classe, e vai além da mudança de regime político, porque a conquista do poder pelos trabalhadores é por sua vez a abertura de uma revolução social. É ignorado, freqüentemente, que o processo aberto em 1848 na forma de uma onda européia era pensado por Marx como um processo de revolução permanente, também, na dimensão internacional, sem a qual seria insólita a perspectiva de uma revolução na Alemanha (4).

A questão de poder se colocava diante de novas possibilidades e novas dificuldades. Possibilidades abertas, sobretudo, pelo crescente peso social do proletariado. Sua capacidade de elevar a consciência de classe mais rapidamente e, em conseqüência, a conquista de patamares de auto-organização com a utilização hábil das margens de liberdade, a participação eleitoral, enfim a escola de aprendizagem sindical-parlamentar. Dificuldades que resultavam do esgotamento histórico das revoluções burguesas, da acomodação da burguesia com os regimes bonapartistas ou semi-bonapartistas, do deslocamento e divisão inexorável das camadas médias, ou seja, a ruptura da frente de “todo o povo pela democracia”, tal como ocorreu na primeira fase de fevereiro de 1848.

As análises históricas de Hobsbawm podem ser inspiradoras. No fragmento que segue encontramos uma classificação do pensamento de Marx e Engels sobre o tema da teoria da revolução organizada em um processo evolutivo de três fases com as várias sub-hipóteses mais importantes de cada fase. Esta interpretação parece convincente, mesmo quando aborda o tema difícil das relações de Marx com a Comuna de Paris. Não se pode concluir que a derrota da Comuna tenha produzido uma mudança, para o fundamental, nas apreciações que os dois alimentavam sobre as perspectivas da revolução na Europa. Ela entretanto foi decisiva como experiência para reforçar a convicção de Marx sobre o papel do Estado no período imediatamente pós revolucionário: o Estado dos trabalhadores não poderia renunciar ao uso da violência de classe, e nas linhas de A Guerra civil na França, pode-se encontrar uma certa perplexidade com a excessiva tolerância dos Cummunards, por exemplo, com as reservas de ouro no banco de França:


“Pode-se distinguir três fases no desenvolvimento da sua análise: uma, entre a metade dos anos 40 e o começo da década de 50; a segunda, nos vinte e cinco anos seguintes, nos quais as perspectivas imediatas não indicavam uma vitória duradoura do proletariado; e, finalmente, os últimos anos de Engels, quando a formação de partidos operários de massa pareceu abrir novas perspectivas de transi­ção nos países capitalistas desenvolvidos(...) Marx e Engels continuaram a esperar e mesmo a prever uma nova edição revista de 1848, até que a crise capitalista mundial se revelasse impotente para gerar a revolução em alguns países. Daí por diante eles não nutriram qualquer esperança em uma iminente revolução proletária vitoriosa, por cerca de duas décadas; embora Engels, mais ainda que Marx, conseguisse manter o seu permanente otimismo juvenil. Sem duvida não esperavam muito da Comuna de Paris, e durante a sua breve vida evitaram cuidadosamente qualquer juízo otimista” (5). (grifo nosso)

Engels sublinha no Testamento as novas necessidades políticas subjetivas que surgiam como obstáculos para o proletariado. A revolução não podia contar com triunfos fáceis nas barricadas como em fevereiro de 1848. Engels é categórico na conclusão de que a mudança histórica na Europa - a consolidação de regimes democráticos - criou mais dificuldades sociais, políticas e militares na luta pelo poder. Essa é a leitura mais comum destes trechos. Mas essas interpretações partem de um equívoco. Não se deveria concluir destes trechos que Engels estivesse mais céptico em relação às possibilidades de triunfo da revolução. A reflexão central no texto parece ser outra. A preocupação em alertar para uma nova centralidade da política:

Do lado dos insurretos, contrariamente, todas as condições pioraram. Dificilmente ocorrerá uma insurreição que tenha a simpatia de todas as camadas do povo; na luta de classes todas as camadas médias nunca se gruparão de modo inteiramente exclusivo em torno do proletariado, a tal ponto que o partido reacionário reunido, em torno da burguesia, desapareça quase complemente. O "povo" aparecerá, portanto, sempre dividido e, assim, faltará uma alavanca poderosa, tão eficaz em 1848” (6).
Em primeiro lugar, é pouco lembrado que Engels não considerava o regime bismarquista senil do Kaiser uma democracia. Ao contrário, considerava que as limitadas liberdades estavam ameaçadas justamente pelo crescente peso do SPD e, por isso, baralhava a hipótese de uma revolução em legítima defesa contra uma aventura neo-bonapartista do regime, ou seja, uma revolução democrática defensiva tendo como sujeito social o proletariado, contra um autogolpe da monarquia. Em suas palavras:

“Ocorra o que ocorrer nos outros países, a social-democracia alemã tem uma situação particular e, em decorrência pelo menos no momento, uma tarefa também particular. Com dois milhões de eleitores que ela envia às urnas, neles incluídos os jovens e as mulheres que estão por detrás dos sufragantes na qualidade de não eleitores, constituem a massa mais numerosa, mais compacta, a "força de choque" decisiva do exército proletário internacional(...)Ora, só há um meio de poder conter durante certo prazo o crescimento continuo das forças combatentes socialistas na Alemanha, e mesmo de fazê-las retrogredir momentaneamente: um choque de grande envergadura com as tropas, uma sangria como a de 1871, em Paris" (7). (grifo nosso)
Engels alerta, portanto, para uma reação burguesa contra-revolucionária impiedosa, com recursos renovados, bases sociais de apoio ampliadas, capacidade de iniciativa política e até um dispositivo militar moderno, muito superior aos que se abateu sobre a Comuna de Paris. Assim, destacava que as revoluções proletárias encontrarão necessariamente um obstáculo em uma renovada base de massas da contra-revolução; insiste que a revolução não assumirá provavelmente a forma do combate de barricadas, nem poderá confiar no sempre imprescindível fator de surpresa histórica; e, por outro lado, sublinha a nova importância da política, da democracia, dos processos eleitorais, como uma escola de aprendizagem sindical-parlamentar da classe.

Mas repete uma e outra vez que o maior perigo pode ser um confronto precipitado antes do momento oportuno e alerta, severamente, contra as aventuras. Quem poderia duvidar, cem anos depois, quando ainda não triunfou nenhuma revolução proletária em um país central, da importância destes alertas? Nas palavras de Engels:
“Já podemos contar hoje com dois milhões e um quarto de eleitores. Se este avanço prosseguir, conquistaremos aí no fim do século a maior parte das camadas médias da sociedade, tanto os pequenos burgueses como os pequenos camponeses, e cresceremos até nos converter na força decisiva do país, força diante da qual terão de se inclinar, queiram ou não, todas as outras. Manter incessantemente este crescimento, até que por si mesmo ele se torne mais forte que o sistema de governo atual, não desgastar em combates de vanguarda essa "força de choque" que se reforça cotidianamente, mas conservá-la intacta para o dia decisivo, eis nossa tarefa principal” (8) (grifo nosso).
Entretanto, Engels pondera que é fundamental aprender as lições do período histórico anterior, sendo a principal a necessidade de conquistar o apoio entre a maioria das camadas dominadas e oprimidas, e escolher o momento político do confronto, evitando a qualquer preço um combate decisivo, sem que as melhores condições estivessem reunidas. E conclui:
Só poderão conter a subversão social-democrática, que no momento se dá tão bem respeitando a lei, mediante a subversão dos par­tidos da ordem, os quais não podem viver sem violar as leis(....) Não vos esqueçais, porém, de que o Império Alemão, como todos os pequenos Estados e, em geral, todos os Estados modernos, é produto de um pacto; primeiramente, de um pacto de príncipes entre si e, depois, dos príncipes com o povo. Se uma das partes quebra o pacto, todo ele é nulo e a outra parte está desobrigada. Bismarck demonstrou isso brilhantemente em 1866. Portanto, se violais a Constituição do Reich, a social-democracia ficará livre para fazer o que lhe parecer melhor a vosso respeito. Mas o que fará então não há de vos dizer hoje” (9) (grifo nosso).
Vale a pena conferir o trecho que se segue, que alimentou conclusões opostas à da citação anterior do Testamento, mas foi repetido à exaustão e, por isso, é muito mais conhecido. É um momento infeliz do Testamento:

“A ironia da história mundial pôe tudo de pernas para o ar. Nós, os "revolucionários", os "subversivos", florescemos muito melhor pelos meios legais que pelos ilegais e a subversão. Os partidos da ordem, como se denominam eles, perecem em virtude da legalidade que eles próprios criaram (10) (grifo nosso).

Acrescentamos também um fragmento de Téxier, que retira conclusões opostas às que estamos expondo, e conclui que Engels de fato estaria defendendo mais que uma nova hipótese estratégica, uma nova fórmula programática, o gradualismo democrático. A seguir o texto de Texier:

"Sobre a França, eu ainda tenho que relatar uma mudança que irá ocorrer muito depois de 1850 e após 1871. Engels, de fato, em 1891, em seus comentários críticos sobre o projeto de programa de Erfurt, irá adicionar a França à lista de países onde é possível conceber a possibilidade de uma transição pacífica para o socialismo.E Marx, de sua parte, em um artigo em 1872, questionou se a Holanda não era um dos países onde tal desenvolvimento fosse possível. Deve acrescentar-se que na última parte do século, Engels após a morte de Marx, observa uma mudança de grande importância, que ele vai considerar na elaboração de uma nova tática: sempre que se possa desfrutar a conquista de uma série de liberdades (mesmo que as instituições não sejam as da soberania popular), a classe trabalhadora constata que ela prospera na legalidade. Dois perigos ameaçam as perspectivas reais de vitória: o da guerra, cujas consequências são imprevisíveis, mas certamente interrompe a marcha contínua em direção à "hegemonia", e o do golpe preventivo(...). Em 1891 e novamente de forma mais acentuada em 1895, Engels recomenda uma tática pacífica e legal para ganhar tempo e ser capaz de acumulação de forças(...) As condições sob as quais ele escreveu seu último grande texto político subvertem a questão da "revolução social" e relativisam a distinção entre o "continente" e os anglo-saxões.A via pacífica não era senão uma possibilidade para a Inglaterra. Em 1895, uma tática de luta pacífica e legal se impunha, pelo menos temporariamente, na Alemanha” (11) (tradução e grifo nosso).
Assim, muito além de um processo de acumulação de forças, Téxier afirma que o Testamento de conjunto seria uma apologia da possibilidade de uma transição pacífica na Alemanha. Esta leitura não parece sustentável. Basta recordar que o debate sobre a transição pela via de reformas se abriu depois da morte de Engels. Bernstein aguardou a morte de Engels para precipitar a discussão da via pacífica, admitindo sem tergiversações que estava revisando Marx. Não parece razoável atribuir a Engels uma estratégia bernsteiniana “avant la lettre”.

A passagem sobre os métodos legais, no entanto, é de fato imprecisa. Não porque a experiência histórica tenha negado que as possibilidades de fortalecimento das posições de classe sejam superiores para os trabalhadores sob a democracia. Mas pela conclusão oposta. A que generaliza, a partir da experiência alemã, que a burguesia teria dificuldades de dominar sob a democracia. Essa peremptória conclusão histórica não se confirmou. Aliás, já no final do XIX ela não era válida para a França e Inglaterra, por exemplo.

De qualquer maneira, ela diminui e encobre as terríveis pressões “democráticas” que já se abatiam sobre a social-democracia alemã. Claro que este processo só pode ser compreendido dentro do marco histórico. Marx e Engels viveram a maior parte de suas vidas em uma Europa onde, à exceção da Inglaterra, a democracia era inexistente. Logo, a experiência do movimento operário do seu tempo com as pressões oportunistas da legalidade, o peso das bancadas parlamentares nos partidos, os interesses próprios do aparelho sindical, a adaptação social da intelectualidade marxista, e outros era muito reduzida, senão exclusiva à fase heróica do Cartismo britânico.


O destino editorial do próprio Testamento é revelador da subestimação das pressões sociais hostis, e do excesso de confiança de Engels no SPD alemão. Como se sabe, ele foi publicado com cortes, suavizado de qualquer passagem mais vermelha, a pretexto de não provocar medidas de represália do governo contra o partido, ao que parece por decisão de August Bebel, o que levou Engels a dirigir uma carta furiosa exigindo a sua divulgação integral. Essa publicação, que deveria ter sido feita na revista do partido, já na época sob os cuidados de Kautsky, nunca ocorreu, o que também é uma ironia da história.

Destes fragmentos se conclui que segundo Engels: (a) as revoluções proletárias sendo revoluções de maioria, seriam, paradoxalmente, socialmente mais poderosas, mas politicamente mais difíceis que as revoluções burguesas, porque seria impossível uma frente de todo o povo contra o Estado, em especial, se o regime político fosse a democracia; (b) a conquista da democracia repousaria agora nas mãos do proletariado, superando a hipótese de 1848 das duas revoluções, ainda que naquelas circunstâncias pensadas como um processo ininterrupto de revolução em permanência; (c) que a nova hipótese estratégica exigiria a capacidade dos partidos de utilizar os espaços de legalidade, por reduzidos que sejam, para acumular forças, estimular a auto-organização e elevar o nível de atividade, confiança e consciência de classe, mas também evitar, em particular na Alemanha, um confronto precipitado; (d) que a luta pelo poder deveria ser buscada no melhor momento, e se possível, em condições de legítima defesa, em resposta defensiva à iniciativa contra revolucionária do regime que seria incapaz de conviver de forma perene com um forte movimento operário na legalidade.

Destes quatro postulados que resultaram da reflexão sobre o Balanço da derrota da Comuna de Paris somente o último não sobreviveu à prova do balanço histórico.

(*) Valerio Arcary é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), professor do IFSP (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia) e um reputado intelectual marxista. Ex-líder estudantil durante a revolução portuguesa de 1974-75, voltando ao Brasil tornou-se dirigente nacional do Partido dos Trabalhadores (PT) até 1991, sendo depois fundador do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU). É autor de ‘As esquinas perigosas da História - Situações revolucionárias em perspectiva marxista’ (Ed. Xamã, São Paulo, 2004, prefácio de César Benjamin) e ‘O encontro da revolução com a História’ (Editora Sundermann e Xamã, São Paulo, 2006).

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NOTAS:
(1) ENGELS, Friedrich, “Introdução à A Luta de classes na França” In MARX e ENGELS. Obras escolhidas. São Paulo, Alfa-Omega, Volume 1, p. 108.

(2) DRAPER, Hal. Karl Marx’s theory of revolution. New York, Monthly Review Press, 1978. p. 241.

(3) ENGELS, Friedrich. Ibidem. Obras escolhidas. São Paulo, Alfa-Omega, volume 1. p. 104.
(4) Uma excelente referência sobre este tema é a obra de Hal Draper: Karl Marx’s theory of revolution. New York, Monthly Review Press, 1978. A passagem sobre este tema pode ser encontrada na p. 241.

(5) HOBSBAWM, Eric. "Aspectos políticos da transição do Capitalsimo ao Socialismo",in HOBSBAWM, Eric, História do Marxismo, O marxismo no tempo de Marx, volume 1, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983, p. 319/321.
(6) ENGELS, Friedrich. Ibidem. p. 105.
(7) ENGELS, Friedrich, Ibidem p. 108.

(8) ENGELS, Friedrich. Ibidem. p. 108.

(9) ENGELS, Friedrich. Ibidem. p. 108.
(10) ENGELS, Friedrich. Ibidem. p. 108.
(11) TEXIER, Jacques. Révolution et démocratie chez Marx et Engels. Paris, PUF, Actuel Marx Confrontation, 1998, p. 340.

FONTE: O Comuneiro

 

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