quarta-feira, 28 de maio de 2014

Smith, Marx e alienação

por Prabhat Patnaik [*]


Entre não marxistas há sempre uma tendência a ignorar a especificidade das percepções de Marx no âmago da economia política e reduzi-las, ao invés, a ideias semelhantes mas anteriores que podem ser encontradas em Adam Smith ou David Ricardo. O economista Paul Samuelson exprimiu esta tendência da maneira mais flagrante, se não deliberadamente provocatória, quando se referiu a Marx como um "pós ricardiano menor".

O problema com esta tendência é que ela perde o salto que Marx deu sobre os seus antecessores e portanto interpretou-o muito mal. O caso clássico de tal má interpretação é a teoria de valor de Marx, a qual é erradamente tomada como não diferente daquela de David Ricardo (um erro que conforma a caracterização de Marx feita por Samuelson). Um erro análogo é cometido também quanto à visão de Marx da alienação.

Adam Smith, seria de recordar, enfatizou o significado profundo da divisão do trabalho tanto na sociedade como um todo como também dentro da fábrica. Em relação a esta última, ele deu o famoso exemplo da fábrica de alfinetes onde o trabalho de manufacturar alfinetes era segmentado em numerosas actividades separadas e diferentes trabalhadores eram assinalados a estas diferentes actividades, o que resultava num enorme aumento da produtividade por trabalhador. Smith havia sustentado que tal aumento de produtividade e o rácio no qual o total da força de trabalho era dividido em "trabalhadores improdutivos" (tais como servidores domésticos) e "trabalhadores produtivos" (os quais produziam valor excedente) como os dois factores chave que determinavam o aumento da riqueza das nações.

Mas tendo enfatizado o papel da divisão do trabalho como causa do progresso económico, no sentido de aumentar a "riqueza das nações", Smith avançou para destacar o facto de que tal especialização tendia a causar a "mutilação mental" dos trabalhadores, uma vez que cada um deles estava restrito a desempenhar uma única tarefa repetitiva. Vale a pena aqui citar Smith na íntegra:
"O homem cuja vida inteira é gasta no desempenho de umas poucas operações simples, das quais os efeitos são talvez sempre os mesmos, ou muito aproximadamente os mesmos, não tem oportunidade de exercer o seu entendimento ou de exercitar o seu poder inventivo na descoberta de expedientes para remover dificuldades que nunca ocorrem. Ele naturalmente perde, consequentemente, o hábito de tal esforço e torna-se geralmente tão estúpido e ignorante quanto é possível tornar-se uma criatura humana. O torpor da sua mente torna-o não só incapaz de desfrutar ou participar de qualquer conversação racional, nem de conceber qualquer sentimento generoso, nobre ou delicado e, consequentemente, de formar qualquer julgamento justo referentes mesmo a muitos dos deveres comuns da vida privada... Mas em toda sociedade aperfeiçoado e civilizada isto é o estado no qual os trabalhadores pobres, isto é, o grande conjunto do povo, deve necessariamente cair, a menos que o governo faça alguns esforços para impedi-lo".
Se bem que esta visão de Smith sem dúvida apreenda um aspecto importante da produção capitalista, um aspecto acerca do qual muitos marxistas também escreveram e que de modo impressionante foi captado no filme Tempos Modernos de Charlie Chaplin, ela é frequentemente mantida como sendo a precursora da teoria da "alienação" de Marx e como contendo a sua ideia central. Esta última afirmação no entanto é errónea e enganosa, não obstante a perspicácia contida nas observações do próprio Smith.

Smith queria que os "governos" nas "sociedades civilizadas" impedissem este torpor da mente que sobrevém aos pobres trabalhadores, como complemento necessário ao progresso económico da nação. Comunistas pré-marxistas como Proudhon também trataram das consequências adversas da divisão do trabalho e exprimiram-se sobre como ultrapassar este torpor. Marx resumiu a visão de Proudhon sobre isto, em A pobreza da filosofia, com as seguintes palavras;
"O sr. Proudhon ... propõe ao trabalhador que faça não só um doze avos do alfinete, mas sucessivamente todas as doze partes dele. O trabalhador viria então a conhecer e compreender o alfinete. Isto é a síntese do trabalho do sr. Proudhon... ele não pode pensar em nada melhor do que em levar-nos de volta ao artesão ou, no máximo, ao mestre-artífice da Idade Média".
Portanto a alienação, como Smith ou mesmo Proudhon a viam, não exige a transcendência do capitalismo para ser ultrapassada (isto apesar do facto de que o próprio Proudhon era comunista). O entendimento de Marx da alienação, embora não negando a percepção que Smith e, a seguir a ele, Proudhon, haviam avançado, era no entanto completamente diferente disto; e a ultrapassagem exigia uma transcendência do capitalismo.

A ULTRAPASSAGEM DA ALIENAÇÃO NECESSITA DA TRANSCENDÊNCIA DO CAPITALISMO 

Em Smith, eram apenas os trabalhadores que eram alienados desta maneira. Mas em Marx, a alienação era uma característica universal do sistema, afectando todos, não apenas os trabalhadores mas também os capitalistas. E a universalidade da alienação caracterizando o sistema significa que ela não podia ser ultrapassada dentro do próprio sistema; ela necessariamente exigia a sua transcendência.

A alienação era imanente na própria forma mercadoria. Uma mercadoria é naturalmente um valor de uso e um valor de troca; mas ela não é um valor de uso para o produtor. Enquanto para o comprador ela é tanto um valor de troca, representando uma certa soma de dinheiro como um valor de uso, com certas propriedades físicas e químicas as quais satisfazem suas exigências, para o vendedor ela é só um valor de troca, só uma certa soma de dinheiro. As propriedades físicas e química da mercadoria são inúteis para ele pessoalmente.

Isto é um ponto básico de diferença entre a economia política marxiana e a economia política burguesa "convencional"("mainstream"), uma vez que esta última é fundamentada sobre a presunção de que a mercadoria que é trocada por dinheiro entre o vendedor e o comprador constitui um valor de uso para ambos (além naturalmente de ser um valor de troca para ambos). Mas se a mercadoria é apenas um valor de troca, não um valor de uso, para o produtor, então o produtor não pode simplesmente retirar-se do mercado e consumir sua própria mercadoria. Venha o inferno ou a tempestade ele deve vendê-la por uma certa soma de dinheiro; se não puder vender então está condenado, a menos que tenha algumas reservas de cash a que recorrer.

Uma vez que todos os vendedores sabem disto, construir tais reservas pela ampliação do negócio a expensas de rivais torna-se essencial para cada um. A competição, por outras palavras, introduz uma luta darwiniana entre produtores de mercadorias; e isto transmite-se ao capitalismo, o qual é nada mais que a produção generalizada de mercadorias (onde o próprio valor-trabalho tornou-se uma mercadoria). É a esta luta darwiniana que está subjacente o impulso para a acumulação de capital e para a introdução do progresso tecnológico.

O que isto significa é que não são apenas os trabalhadores que têm de competir uns contra outros pelo emprego num mundo caracterizado pelo desemprego (isto é, pela presença perene de um exército de reserva do trabalho), mas os capitalistas também têm de competir uns contra os outros. Em suma, todos os participantes neste sistema têm de representar papeis particulares, quer gostem ou não; pois se não o fizerem então dão-se por vencidos. Cada um deles pode conservar a sua posição dentro do sistema, não importa se essa posição implica ser um explorador ou quem é explorado, só representando um certo papel, actuando e comportando-se de uma maneira particular. Cada participante individual no sistema aparece como tendo "arbítrio" ("agency") no sentido de ser aparentemente livre para fazer o que preferir fazer; mas de facto esta aparência é enganosa porque o modo da sua acção é determinado pela sua posição dentro do sistema e o papel deste impõe-se sobre ele ou ela. É digno de nota que Marx chamou o capitalista de "capital personificado", isto é, as tendências imanentes do sistema actuam elas próprias entre outras através do "arbítrio" nominal dos capitalistas (tal como efectivamente dos trabalhadores).

O capitalismo, por outras palavras, não é apenas um sistema explorador; não é apenas um sistema anárquico onde a resultante agregada das acções de indivíduos revela-se diferente do que pretendiam; ele é também, além disso, um sistema "espontâneo", onde o modo de influir sobre parte dos próprios indivíduos não é determinada pela sua vontade mas é-lhes imposta pela posição que ocupam dentro do sistema.

A LÓGICA COERCIVA DO SISTEMA 

A alienação sob o capitalismo está basicamente ligada a isto, isto é, ao facto de que as acções dos indivíduos não são baseadas na sua própria vontade mas derivam da lógica coerciva do sistema. O capitalista acumula não porque goste mas porque não tem outra opção dentro da lógica do sistema se não quiser dar-se por vencido. Os trabalhadores obedecem ordens porque se não o fizessem seriam despedidos e postos à margem. O progresso tecnológico é introduzido porque se um capitalista com acesso à nova tecnologia não a introduzisse, então algum outro o faria; e o primeiro capitalista ficaria fora da competição e seria descartado. É esta coerção que é alienante, o facto de que o arbítrio nominal não implique arbítrio autêntico, mas seja meramente a mediação através do qual funcionaa lógica imanente do sistema.

Contudo é precisamente esta espontaneidade que é desafiada pelos trabalhadores através de "combinações" que impõem cada vez mais complexidade política (com a ajuda de teoria trazida de "fora"). Tais combinações, por outras palavras, constituem passos para ultrapassar a alienação imposta pelo sistema sobre os trabalhadores. Mas as tendências imanentes do mesmo (ex. a tendência rumo à centralização do capital, sua formação em blocos cada vez maiores), actua sempre para frustrar e reverter estes esforços em direcção à ultrapassagem da alienação dentro do próprio sistema.

O facto de que a globalização do capital, a qual é expressão do mais alto nível de centralização até hoje alcançado, tenha servido para minar os movimentos sindicais por todo o mundo capitalista, e com isto o movimento político de esquerda, só confirma esta afirmação. Disto se segue que a ultrapassagem da alienação, como entendida por Marx, não é possível dentro do próprio sistema; ela só é possível através da sua transcendência. Este facto apenas enfatiza a diferença básica entre o entendimento smithiano e o entendimento marxiano da alienação.


[*] Economista, indiano, ver Wikipedia . 

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2014/0323_pd/smith-marx-and-alienation . Tradução de JF. 


FONTE: Resistir.Info

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