terça-feira, 20 de maio de 2014

Passado remexido

A volta de "A Lata de Lixo da História"
ENTREVISTA COM ROBERTO SCHWARZ

Por SYLVIA COLOMBO

RESUMO Crítico literário lança nova edição de peça escrita, no auge da ditadura brasileira, a partir de "O Alienista". Falando à Folha, comenta relações entre universidade e artistas e explica por que preferiu ressaltar, na obra, o aspecto de revolta política, em vez do viés da loucura, mais associado ao texto de Machado de Assis.


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"Está havendo uma recomposição de classe no Brasil que as manifestações de junho do ano passado refletiram. Toda recomposição de classe é também fermento cultural e algo novo nesse sentido deve surgir por aí. Estamos vendo o florescimento da poesia de periferia. Se será bom ou ruim, não sei, mas algo virá daí", diz o crítico literário Roberto Schwarz.

O autor, que lança no final deste mês uma nova edição da peça "A Lata de Lixo da História" [Companhia das Letras, R$ 39, 120 págs.], afirma que essa nova movimentação cultural deve substituir aquela da qual foi um dos protagonistas, nos anos 60.

"A diferença de fundo entre aquele período e este era que ali havia um movimento popular em ascensão e que uma parte, formada especialmente pelos estudantes, estava procurando a outra parte. A cultura foi infiltrada por isso e ganhou um interesse incrível, próprio daquele momento", diz. "Foi uma transgressão das barreiras de classe e isso animou a cultura brasileira por 50 anos. Foi uma coisa bastante peculiar da vida brasileira. A cultura fez uma nova aliança de classe. E é uma coisa que está se extinguindo agora. A minha geração, eu estou com 75 anos, é uma demonstração disso."

Schwarz frisa que começou a escrever a obra no Brasil, em 1968, pouco antes da promulgação do AI-5, quando a repressão ganhou contornos mais sangrentos --mas terminou de escrevê-la na França.

"Eu tentava imaginar qual seria o fim disso tudo. E pensei que deveria ter um olhar irônico da situação, embora não quisesse que minha obra fosse escapista, como creio que não é. Imaginei que o desenlace da reabertura democrática seria conservador. Foi assim que se deu. O Brasil é conservador."

Ao longo de todo o texto, fica implícito certo ceticismo, que Schwarz diz ser duplo: somou ao seu próprio o de Machado de Assis, cuja novela "O Alienista" serviu de matriz à peça.

Leia a seguir a entrevista que o crítico deu à Folha em dois tempos: por e-mail e ao vivo, na casa onde vive, em São Paulo.

Folha - No final da década de 60, o teatro tinha marcante presença no debate político, haja vista a montagem que Zé Celso fez de "O Rei da Vela". Acredita que o teatro poderia exercer papel semelhante hoje?

Roberto Schwarz - O clima participante e irreverente não era só do teatro. Ele estava também no cinema, na canção e nas artes visuais, sem falar na agitação estudantil.

O movimento popular do pré-64, que fora calado à força, persistia na memória tanto da esquerda como da direita, pondo pimenta na discussão. Juntaram-se naquele final de década a luta contra a ditadura, o sentimento do atraso brasileiro, o experimentalismo estético e o espírito "meia-oito", ligado às revoluções libertárias que estavam pipocando no mundo. Ou seja, havia um combate em muitas frentes, difusamente anticapitalista, em sintonia com a linha avançada mundial.

A combinação era vibrante, além de subversiva. Ela foi derrotada em política, ou melhor, à força bruta, mas era culturalmente imbatível e alimentou a maior parte do que se fez de bom nos decênios seguintes.

O quadro hoje é outro, mas a dimensão coletiva está dando sinais de vida. Resta ver como o teatro vai lidar com isso.

Ainda em relação ao teatro, o sr. considera que, quando "A Lata de Lixo da História" foi escrita, a relação entre a universidade e as artes era mais ativa e fecunda?

Se entendi bem, você está sugerindo que de lá para cá a universidade perdeu contato com a vida artística e se isolou. Com sua licença, vou discordar.

Naquele tempo o contato era ocasional, uma iniciativa de umas poucas vanguardas. Hoje ele está institucionalizado. A universidade está em toda parte, e as próprias artes estão dentro dela, onde são ensinadas em departamentos especializados. O que faz falta de fato é o espírito crítico.

É verdade que nos anos 60 houve a confluência, muito brilhante, ou também a confrontação, entre vanguardas estudantis, estéticas, intelectuais e políticas. É certo também que um dos lugares naturais para esses encontros era a universidade. Entretanto, não acho que a razão principal dessas aproximações, ou dos afastamentos posteriores, esteja em atitudes tomadas pela universidade ela mesma. Foi a força geral do processo que promoveu a fusão e, mais tarde, a separação. Quando a estrutura de classes de um país entra em movimento, tudo o mais responde, para bem ou para mal.

O que fez diferença foi que, em 1969, depois do AI-5, o movimento cultural perdeu os mínimos de liberdade necessários, passando a viver confinado, sob censura e ameaça policial permanente. Os contatos entre a universidade, a vida artística e a política se reduziram a muito pouco e, se acaso continuaram a frutificar, foi na clandestinidade ou dentro da cabeça de intelectuais semi-isolados.

A minha "Lata de Lixo" foi escrita nessas circunstâncias, começada no Brasil e concluída na Europa. Não tem cabimento idealizar as condições daquele momento.

Mais adiante, quando veio a abertura, nos demos conta de que o período da ditadura havia criado enquadramentos novos, que mudavam a situação e que não foram embora com os militares. Agora, o que aprisionava a inteligência e a criatividade não era mais a repressão policial, mas o avanço paralelo da burocratização e da mercantilização, ou seja, o aprofundamento do capitalismo. São essas as causas, até onde vejo, do presente pouco inspirador que está por trás de sua pergunta.

No novo prefácio à peça, o sr. diz que ela é uma adaptação de "O Alienista", escrita de olho no golpe de 1964 e no AI-5 de 1968. Por que lançar mão de Machado de Assis? Não é estranho usar um conto cômico para falar de uma ditadura?

De fato, é esquisito, mas tem cabimento. Como se tratava de contornar a censura, o recurso ao "Alienista" era oportuno, pois seria incômodo para os censores ficar contra uma das obras ilustres da literatura brasileira.

Além disso, havia a incrível adequação. "O Alienista" conta a instalação de uma ditadura "modernizante" em Itaguaí --um mini-Brasil--, seguida duma rebelião popular e de um período de terror total. Para concluir, caído do céu, um final feliz que deixa tudo como antigamente, como se nada tivesse acontecido.

Em fins de 1968, que é quando "A Lata de Lixo" foi concebida, as primeiras três etapas do conto já se haviam cumprido. Só faltava o "happy end", sarcástico e completamente inverossímil, que ficava para um futuro sem data.

Também a prosa do conto, com sua estranha mistura de futilidade provinciana e terror policial, se adaptava ao presente. Em mais truculento, a autossatisfação idiota da direita vencedora em 64 era uma réplica do que Machado havia percebido muitos anos antes.

Com sua licença, vou contar uma anedota ilustrativa. Outro dia fui assistir a um documentário, o "Cidadão Boilesen", que reconstitui a vida de um executivo que na época do terror se envolveu com a repressão e a tortura, inclusive metendo a mão na massa.

Na saída do cinema ouvi uma conversa de mãe e filha, em que uma dizia que aquele homem, pelo jeito um conhecido da família, era horrível, enquanto a outra respondia que o filme era injusto, que Boilesen era um cavalheiro e que era um prazer estar com ele em festas de sociedade. Nada mais machadiano que essa comédia macabra. Basta pensar nos parágrafos iniciais de "Pai contra Mãe", nos quais um senhor muito civilizado, além de proto-brechtiano (quer dizer, maldosamente didático), explica a utilidade dos instrumentos de ferro necessários ao funcionamento da escravidão.

Na sua "Lata de Lixo" há bonecos de escravos espalhados pelo palco, que vão apanhando ao acaso das circunstâncias. Já em "O Alienista" praticamente não há escravos. O que essa diferença indica?

De fato, na obra inteira de Machado há poucos escravos. Quando aparecem, entretanto, eles são uma presença aguda, que desequilibra o quadro decoroso e bem-falante em que decorre a vida das classes altas, com suas pretensões de civilidade.

Para dar um exemplo, em "Dom Casmurro", a certa altura, Bentinho arrisca uma conversa nostálgica com um ex-escravo, a quem pergunta se lembra dos velhos tempos. A resposta vem brevíssima, abrindo uma perspectiva infinita: "Alembro". A meu ver, a crítica não se compenetrou suficientemente do caráter de classe do sarcasmo machadiano.

Foi esse escândalo desqualificador que procurei fixar através da presença dos bonecos e das surras periódicas a que são submetidos, a troco de nada, sem maior conexão com a intriga e o diálogo. Sobre esse pano de fundo mudo e brutal, à vista de todos, mas não comentado, as veleidades científicas de Simão Bacamarte e as artimanhas políticas das classes bem postas mudam de caráter, adquirindo uma tonalidade grotesca.

Embora não tenhamos mais escravidão, a desigualdade insustentável entre as classes faz que o esquema continue vivo.

O sr. não forçou a mão ao colocar o levante popular no centro da intriga? Afinal de contas, "O Alienista" gira em torno das teorias da loucura de Simão Bacamarte.

No conto de Machado, a pacata Itaguaí é abalada por duas revoluções modernizantes. Uma científica, que desemboca na ditadura do doutor Simão. Outra social, vagamente calcada na Revolução Francesa e oposta à primeira.

A ideia machadiana de ambientar episódios de inovação científica e de luta social moderna nos cafundós do Brasil naturalmente era satírica. Respondia a nossos complexos de ex-colônia e ao anseio de pular para a linha de frente do mundo.

Os leitores, até onde sei, se interessaram mais pelas teorias da loucura, que de fato organizam o primeiro plano do conto e têm a vantagem de estar na moda, graças a certo ar de família com os temas do celebérrimo Foucault. Mas a dinâmica da revolução num fim de mundo, com seus fluxos, refluxos e líderes oportunistas, não é menos interessante.

Se a referência dominante forem as teorias da loucura, a revolução aparecerá como um exemplo a mais de maluquice. Se a dominante for a rebelião popular, as teorias de Bacamarte aparecerão como elementos no jogo do poder, o que é mais sutil (e igualmente foucaultiano). As duas leituras são possíveis, e o melhor é balançar entre elas. Para as finalidades de alusão a 1964, a ênfase na luta social, entre cômica e tétrica, prometia mais.

    FONTE: Folha de São Paulo, 18 de maio de 2014.

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