sábado, 14 de junho de 2014

Uma releitura do poeta Gregório de Matos

Boca do Paraíso
Novos livros com poemas atribuídos a Gregório de Matos e análise da obra desmontam imagem popular do 'Boca do Inferno', que seria uma invenção de críticos e historiadores
NELSON DE SÁDE SÃO PAULO
Ilustração de manuscrito do séc. 18 que reuniu poemas de Gregório de Matos, supostamente



O que se sabe do homem Gregório de Matos e Guerra (1663?-1699?) é muito pouco. Por exemplo, de próprio punho, sobrevive uma única assinatura, no livro de matrícula do curso de direito canônico na Universidade de Coimbra, em Portugal.

Mas ele foi, mais do que um homem, um gênero literário na Bahia do século 17, dizem João Adolfo Hansen, 72, da USP, e Marcello Moreira, 47, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia.

No final deste mês, chegam às livrarias cinco volumes com os poemas atribuídos a Gregório, editados e analisados por ambos. Reproduzem o códice (manuscrito em pergaminho com as folhas unidas como num livro) "Asensio-Cunha", reunido no século 18, antes da lenda.

O Gregório proto-nacionalista e obsceno, imagem que resiste até hoje, teria sido uma invenção dos críticos e historiadores românticos do século 19, diz Hansen. "Eles transformaram a poesia na expressão psicológica de um indivíduo-autor."

Assim, Silvio Romero (1851-1914) "vai dizer que Gregório não era nem índio nem branco nem negro: já era mazombo, um autêntico nacionalista". E José Veríssimo (1858-1916) "vai dizer que é um canalha, um neurótico".

SISTEMA

As visões românticas culminam em Antonio Candido, de "Formação da Literatura Brasileira" (1957), "que afirma que não existe, na Colônia, um sistema coeso de autor-obra-público". É exatamente o que a nova edição de Gregório refuta.

Autor da história literária mais influente ou, como descreve Hansen, "totem que já virou tabu", Candido vê ausência de condições materiais no século 17 para a disseminação literária --da proibição de imprensa pela Coroa portuguesa ao analfabetismo.

"Mas hoje a gente sabe que existia um sistema absolutamente consistente", questiona Hansen. Havia outros modos de escrever e ler, na Salvador então com 30 mil habitantes e no Recôncavo Baiano com 150 mil.

Muitos dos poemas de Gregório são descritos como "Tonilhos para cantar" ou "Letrilhas para cantar". O próprio levava consigo uma viola de cabaça. "Era prática difusa entre a população pouco letrada", diz Moreira. "Escravos memorizavam e cantavam as poesias, acompanhando-se de viola."

Mais importante, as poesias circulavam na Bahia em forma manuscrita, nas folhas volantes que seriam recolhidas depois no códice "Asensio-Cunha". "As sátiras eram lançadas sob frinchas de portas, à noite, e afixadas em lugares públicos, para serem lidas em voz alta."

TARADO

Junto com os manuscritos, por vezes, aparecia uma "Vida" do poeta, que "não é uma biografia, como compreendida hoje". Servia como prólogo, introduzia o poeta como um personagem.

"O que aconteceu a partir do século 19 é que a Vida' deixou de ser lida como gênero literário e passou a ser lida como documento empírico", diz Hansen. "E a partir daí a psicologia entrou. O homem era um doente, um nevropata, um tarado."

A poesia atribuída a Gregório, na realidade, "propõe muitas deformações dos tipos que ela ataca". Segue as convenções clássicas da sátira, em que "o poeta deve usar maledicência, pornografia, termos chulos".

Quando desqualifica os índios "pela ideia de que seu pênis é pequeno", é para atingir "os descendentes de Diogo Álvares e Catarina Paraguaçu, que haviam recebido títulos de nobreza da Coroa".

O que Gregório --ou quem quer que tenha escrito-- afirma é que "a verdadeira aristocracia é branca, católica, tem sangue, família". Em outras palavras, diz Hansen, "a desigualdade era algo evidentemente natural".

Distante do Gregório antropofágico dos concretistas ou do "arauto da independência", o poeta que surge na nova edição "tem a racionalidade da Corte, é integrado à hierarquia, exige que a boa ordem seja mantida".

Poemas acompanham hierarquia da sociedade colonial na Bahia

Diferentemente de outras edições, a Coleção Gregório de Matos evita extrair e reagrupar os poemas. "Mantivemos a disposição tal como foi pensada no século 18", diz Marcello Moreira.

Pela ordem, vêm primeiro os poemas com "louvores e vitupérios à nobreza". Depois, "louvores e vitupérios aos agentes da Igreja Católica, clérigos, freiras".

Por fim, os poemas "dedicados às mulheres, algumas de qualidade, outras, não". Entram aí "as putas da Bahia, que merecem castigo, a Babu, a Andresona".

Uma passagem: "Puta Andresona [...] Tu te finges não ser senão honrada,/ E nunca eu vi mentira mais provada [...] Entram na tua casa a seus contratos/ Frades, Sargentos, Pajens, e Mulatos,/ Porque é tua vileza tão notória,/ Que entre os homens não achas mais que escória".

A sequência dos poemas "faz uma encenação de toda a hierarquia" colonial, diz João Adolfo Hansen, questionando edições contemporâneas que recortam e alteram a ordem, como a de James Amado (Record, 1990).

"Ele escreveu texto dizendo que Caetano Veloso era cavalo do exu Gregório", critica. "Vi na Bahia o movimento negro dizendo que Gregório era abolicionista."

O quinto volume da coleção traz um longo ensaio de Hansen e Moreira, em que detalham não só as opções da edição, mas as diferenças com a crítica literária hoje predominante sobre Gregório de Matos e Guerra.

      FONTE: Folha de São Paulo,  Caderno Ilustrada, 14 de junho de 2014.

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