quinta-feira, 12 de junho de 2014

O império em construção

O direito estado-unidense impõe-se em território europeu

Por Jean-Claude Paye (Mondialisation)

O mito da UE como bloco político-económico autónomo em relação aos EUA desvanece-se em todos os campos. Mesmo no plano jurídico, é o direito dos EUA que prevalece, mesmo que contrarie o direito dos Estados nacionais e o da própria UE.

A Bélgica e os Estados Unidos acabam de assinar um acordo para aplicar na Bélgica uma lei estado-unidense que luta contra a fraude fiscal, a Foreign Account Tax Compliance Act (FACTA). A assinatura do acordo teve lugar no passado dia 23 de Abril. Vários países, como o Reino Unido, França, Alemanha e Japão, assinaram já acordos com os Estados Unidos para aplicar esta lei no seu território. A partir de 1 de Janeiro de 2015 os estabelecimentos financeiros [belgas] terão de declarar às autoridades estado-unidenses os movimentos das contas cujo proprietário seja um cidadão estado-unidense. Quando o volume da conta supere os 50.000 ou tenha tido lugar determinada quantidade de movimentos com o território estado-unidense o banco terá que estabelecer um relatório preciso das entradas e saídas de fundos. Se um banco não se submete a este procedimento, todas as suas actividades nos Estados Unidos serão sobretaxadas em 30%. A sanção pode chegar até à retirada da licença bancaria nos Estados Unidos.

Estes acordos assinados por países membros da União Europeia (UE) com o governo estado-unidense violam tanto as leis nacionais de protecção de dados pessoais como a Directiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 24de Outubro de 1995 «relativa à protecção das personas físicas relativamente ao tratamento dos dados de carácter pessoal e à livre circulação de estes dados», directiva integrada no direito de todos os Estados membros. A aplicação da FACTA no território do velho continente viola tanto o direito nacional dos países europeus como o da UE. Estas legislações não são suprimidas mas são suspensas. Acordam que não sejam tomadas em conta nas relações com os Estados Unidos.

Acordos anteriores que legalizavam a captura por parte das autoridades estadunidenses de dados de cidadãos europeus procediam da mesma maneira. Desde os atentados de 11 de Setembro de 2001 a sociedade estado-unidense de direito belga Swift enviou clandestinamente ao Departamento do Tesouro estado-unidense dezenas de milhões de dados confidenciais concernentes a operações financeiras dos seus clientes. Esta captura nunca foi objecto de processo judicial apesar de violar de forma flagrante os direitos europeu e belga. Pelo contrário, a UE e os Estados Unidos assinaram vários acordos destinados a legitimá-la [1].

La sociedade Swift estava submetida ao direito belga e ao da comunidade europeia devido a que a sua sede estava localizada em La Hulpe (Bélgica). Esta sociedade também estava submetida ao direito estado-unidense uma vez que o seu segundo servidor estava localizado em território estado-unidense, o que permitia ao governo estado-unidense apropriar-se directamente dos dados. Assim, esta sociedade escolheu violar o direito europeu para se submeter às exigências do executivo estado-unidense. Entretanto, desde 2009 os dados Swift intereuropeus já não são transferidos para os Estados Unidos, mas para um segundo servidor europeu. Mas embora os estadunidenses já não tenham acesso directo aos dados, estes são transmitidos, a seu pedido, em «pacotes» e apenas eles controlam tecnicamente o processo de tratamento das informações. Para além disso, logo após a assinatura dos acordos já os estado-unidenses tinham colocado novas exigências. Já em 2009 o governo estado-unidense tinha declarado «que se tinham que captar as transacções entre os bancos europeus e estado-unidenses mesmo que não houvesse uma necessidade provada».

Do mesmo modo a UE nunca se opôs à entrega dos dados das listas de passageiros por parte das companhias aéreas situadas no seu território. As informações comunicadas compreendiam os apelidos do passageiro, o seu nome, endereço, número de telefone, data de nascimento, nacionalidade, número de passaporte e sexo, bem como o endereço durante a estadia nos Estados Unidos, o itinerário das deslocações, os contactos em terra e os seus dados médicos. Também estavam incluídas informações bancárias (como a forma de pagamento, o número do cartão de crédito) e os hábitos alimentares que permitissem revelar práticas religiosas. A iniciativa unilateral estado-unidense de se apoderar destes dados foi imediatamente aceite pela parte europeia, que teve que suspender as suas legislações para responder às exigências estado-unidenses [2].

A técnica é idêntica nestes dois casos, o dos passageiros de linhas aéreas e o caso Swift. De facto, não se trata de acordos jurídicos entre duas partes, entre duas potências formalmente soberanas. Apenas existe uma parte, o governo estado-unidense que de facto se dirige directamente aos cidadãos europeus. Em ambos textos o poder executivo estado-unidense reafirma o seu direito a dispor dos seus dados pessoais e dessa forma exerce directamente a sua soberania sobre os cidadãos da UE.

O primado do direito estado-unidense no território europeu é também um dos desafios das negociações para estabelecer um grande mercado transatlântico, o Acordo Transatlântico sobre Comercio e Investimento (Transatlantic Trade and Investment Partnership, TTIP).

Em nome da livre concorrência as empresas estadunidenses poderão, graças ao TTIP, denunciar um Estado que lhes negue autorização de exploração de gás de xisto* ou que imponha normas alimentares ou padrões sociais. Este sistema de resolução de divergências poderia permitir aos estado-unidenses abolir partes inteiras da regulamentação europeia criando precedentes jurídicos perante a justiça privada estado-unidense. Com efeito, o princípio de introduzir este mecanismo foi aceite pelos europeus na competência de negociação outorgada à Comissão em Junho de 2013 pelos ministros do comércio europeus. A instância privilegiada para estas arbitragens é o Centro Internacional de Resolução de Divergências relativas a Investimento (CIADI), um órgão dependente do Banco Mundial e com sede em Washington, cujos juízes, advogados ou professores de direito são nomeados caso por caso: um árbitro designado pela empresa demandante, um pelo Estado de Washington e o terceiro pelo secretário-geral do CIADI [3].

Se este procedimento, parcialmente aceite, entra em jogo no quadro de um futuro grande mercado transatlântico, o direito europeu desvanecer-se-á uma vez mais, neste caso perante uma jurisdição privada situada em território estado-unidense, em que a parte estado-unidense desempenhará um papel determinante.

*Jean-Claude Paye é sociólogo, autor de El final del Estado de derecho, Hondarribia, Hiru, 2010, e de L’Emprise de l’image. De Guantanamo à Tarnac. Editions Yves Michel, Novembro 2011.

Notas:

[1] Jean-Claude Paye, “Las transacciones financieras internacionales bajo control estadounidense”, 30 de Maio de 2009, http://www.rebelion.org/noticia.php?id=86205
[2] Jean-Claude Paye, «L’espace aérien sous contrôle impérial», Mondialisation.ca, 15 de Outubro de 2007, http://www.mondialisation.ca/l-espace-a-rien-sous-contr-le-imp-rial/7080 [Veja-se em castelhano sobre o mesmo tema, “Pasajeros europeos bajo el control de EEUU”, http://www.rebelion.org/noticia.php?id=57828].
* O gás de xisto é o que é extraído por meio de fractura hidráulica (fracking).
[3] Convenção para a resolução de divergências relativas ao investimento entre Estados e cidadãos de outros Estados, International Centre for Settlement of Investissement Disputes (ICSID), capítulo da arbitragem, Artigo 37, https://icsid.worldbank.org/ICSID/StaticFiles/basicdoc-fra/partA-chap04.htm#s02

FONTE: O Diario.Info

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