terça-feira, 11 de março de 2014

O retorno dos intérpretes esquecidos do Brasil

Por Francisco Carlos Teixeira da Silva
O Globo | Prosa e Verso, 09/03/2014.
Ao reabilitar pensadores heterodoxos ao lado de clássicos, coletânea abre debate sobre outros nomes que recebem pouca atenção da academia

É com o subtítulo “Clássicos, rebeldes e renegados” que dois professores da USP, Luís Bernardo Pericás e Lincoln Secco, apresentam seu novo livro:Interpretes do Brasil (Boitempo). O trabalho reúne — para realizar o balanço proposto — 26 coautores, entre jovens e consagrados pesquisadores de diversas universidades do país. Lincoln Secco, um pesquisador de longa trajetória, e Luiz Pericás, um jovem brilhante e inquieto, optam na organização do livro por nomes heterodoxos e inovadores. Ao lado de pensadores reconhecidamente “clássicos” e que de forma cotidiana frequentam as bibliografias universitárias, tais como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior e Darcy Ribeiro, buscaram outros pensadores que foram, em especial no ambiente universitário, relegados como “autores menores”. Na expressão própria dos autores, são renegados, “marginalizados”.
As trajetórias, carreiras e obras de homens como Octávio Brandão, Astrojildo Pereira, Leôncio Basbaum, Heitor Ferreira Lima, Rui Facó e Everardo Dias emergem em ensaios de grande valia, na busca de corrigir tais falhas. As escolhas são bem marcadas e bem explicitadas pela dupla organizadora do livro: são autores que, mesmo tendo se debruçado sobre variadas temáticas — a organização nacional, política, instituições, artes, literatura, educação e partidos políticos —, foram considerados “menores” e “não aceitos ou não incorporados pelo mundo acadêmico”. Assim, autores que pensaram o Brasil, que participaram ativa e valentemente de tais debates — muitos desde os anos de 1920 e 1930 — são, cada vez mais, esquecidos na elaboração de bibliografias, dissertações e teses universitárias.
O ‘ESTABLISHMENT’ INTELECTUAL EM QUESTÃO
A proposta de resgatar tais autores — quase uma denúncia contra o “establishment” universitário brasileiro (e a expressão é dos organizadores) — faz justiça, necessária, a homens que de forma intensa doaram suas vidas e carreiras ao Brasil e mesmo ao sofrido e lutador continente latino-americano. Surge daí, de tais escolhas, no mínimo dois frutíferos debates. Aceitando que o “establishment” universitário brasileiro se torna, cada vez mais, tecnicista, fechado e com escolhas restritas e dirigidas nos seus quadros e nos seus projetos, caberia pensar se tal fenômeno é de fato generalizado e atinge o conjunto do mundo universitário.
A própria organização do livro, com jovens pesquisadores de universidades de São Paulo, Bahia, Rio Grande do Sul e Pernambuco, por exemplo, nos mostra que, talvez, o pessimismo crítico dos autores, embora muito bem-vindo como instrumento metodológico, é exagerado. Afinal, são das universidades, do mesmo “establishment”, que emergem os jovens autores, incluindo um dos organizadores da obra, e que propõe os nomes e carreiras dos esquecidos a serem resgatados. Assim, a universidade brasileira não seria tão “conservadora”, e haveria (ainda) espaço, aqui e acolá, para estudos sérios e rigorosos sobre tais autores “malditos”. Talvez, uma ou outra universidade tenha se fechado ao debate; alguns departamentos tenham, de fato, escolhido “deuses tutelares”, e deixado “decair” autores seminais, como os aqui evidenciados. Mas, com certeza, nem todas.
Em segundo lugar, emerge do livro um outro debate, difícil e necessário: por que os clássicos fazem companhia aos “rebeldes” e aos “renegados”? Talvez um livro só sobre os “esquecidos” fosse, em si mesmo, mais contundente, e abrisse espaço para outros tantos “esquecidos”, “rebeldes” e “renegados”. Assim, nomes como Anísio Teixeira faltam nesta lista de “esquecidos” — ao lado de outros, ainda uma vez, esquecidos. O homem que permitiu a emergência de Darcy Ribeiro e Paulo Freire, perseguido pelo Estado Novo e pela ditadura civilmilitar, exilado e morto de forma vergonhosa para o Brasil, deveria constar desta lista de “rebeldes” e de “esquecidos”. Indo além, temos ainda dívidas com Guerreiro Ramos e Josué de Castro, homens que “explicaram” o Brasil e que, por isso mesmo, tiveram sua “morte intelectual” decretada pelas elites. Guerreiro Ramos e Josué morreram de tristeza, a tristeza dos tempos de chumbo. Poderíamos citar mais dois ou três nomes, mas pode-se, também, objetar que seria algo como organizar a lista dos “melhores livros” já escritos. Ninguém jamais concordaria. Correto, seria isso mesmo. Mas, insisto, poderíamos, com certeza, sem nenhuma injustiça com os mestres já consagrados — inclusive contemplados num livro recente de Fernando Henrique Cardoso — abrir algumas páginas, mais espaço, para estes outros nomes, nomes daqueles que explicaram e sofreram o Brasil, e continuam no silêncio. Teríamos, então, um livro com sabor de resposta e de desafio.
Sem Anísio Teixeira, sem Josué de Castro e sem Guerreiro Ramos (e ainda Álvaro Vieira Pinto e, claro, um brasileiro que explicou os atavismos do coronelismo e do mandonismo, Victor Nunes Leal, e foi punido por isso, ou um rebelde de todo o sempre, Carlos Marighella, lido em todo o mundo e esquecido entre nós como pensador), o Brasil “rebelde” fica bem menor.
Em vez de repetir aqueles que frequentam com assiduidade as nossas bibliografias, talvez valeria dar voz a homens que morreram de “tiro, bala ou susto” — sem esquecer a tristeza, como diria o poeta — para construir um país mais justo, tais como Teixeira, Castro, Pinto, Ramos. Este último, aliás, foi um intelectual negro ridicularizado pelos agentes da repressão por sua negritude — e abrir espaço para vozes negras, como Ramos ou Abdias do Nascimento, por exemplo, talvez fosse uma estratégia “ainda” mais rebelde. Está aberta a porta ao debate.
O livro de Lincoln Secco e de Luís Bernardo Pericás, desafiador, constitui-se, neste passo, indispensável em direção a fazer justiça aos verdadeiros esquecidos.
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Francisco Carlos Teixeira da Silva é historiador e professor titular do Iuperj
FONTE: Boitempo
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Release - Intérpretes do Brasil


Intérpretes do Brasil

Clássicos, rebeldes e renegados

Lincoln Secco e Luiz Bernardo Pericás (orgs.)


"Clássicos, rebeldes e renegados" é o subtítulo de Intérpretes do Brasil, livro que os professores de História da USP Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco organizaram para traçar um amplo panorama do pensamento crítico político-social brasileiro dos séculos XX e XXI. São ao todo 27 estudos e ensaios escritos por reconhecidos especialistas acadêmicos que se debruçaram sobre a vida e a obra de alguns dos principais intérpretes da história e da cultura no Brasil. "Acreditamos que este livro é um aporte importante sobre vários intelectuais emblemáticos e suas teorias. Para isso, pudemos contar com a generosa colaboração de diversos estudiosos que se dispuseram a escrever sobre esses pensadores do Brasil.", enfatizam os organizadores.
Para o historiador Herbert S. Klein, professor emérito das universidades de Columbia e Stanford, o volume a ser publicado pela Boitempo constitui um manual básico para os estudos de história intelectual e da história moderna do Brasil. "A coleção de ensaios Intérpretes do Brasil representa um guia fundamental para o entendimento dos mais influentes pensadores brasileiros do século XX", afima.
Os autores escolhidos compõem um amplo e rico panorama dos pensamentos social e historiográfico nacional da década de 1920 até o começo dos anos 1990, alguns dos quais muito pouco discutidos em outras obras do gênero. A seleção traz alguns pensadores já clássicos, mas em abordagens inovadoras, como Antonio Candido, Caio Prado Júnior, Celso Furtado, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, entre outros representantes da intelligentsia nacional.
O mérito maior da obra, no entanto, é que os organizadores também trazem para o centro do debate figuras que estavam de certo modo à sombra, a despeito de seu importante papel histórico. Entre os renegados, normalmente esquecidos como pensadores do Brasil, ora por não se enquadrarem nos cânones, ora por serem contrários à abordagem majoritária, estão homens pioneiros como Octávio Brandão, Heitor Ferreira Lima, Astrojildo Pereira, Leôncio Basbaum, Rui Facó, Luís da Câmara Cascudo e Everardo Dias.
Também são contemplados autores mais “novos” e menos compendiados, como os heterodoxos e brilhantes Maurício Tragtenberg, Jacob Gorender, Ruy Mauro Marini, Milton Santos, o laborioso Edgard Carone e ainda personalidades da importância histórica de Paulo Freire e Ignácio Rangel.
Como lembra o historiador Carlos Guilherme Mota, na orelha do livro, cada geração analisa e “redescobre” o Brasil, interpretando o processo de nossa formação dentro das condições e debates de sua época, porém poucos vão além, como fizeram os organizadores Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco. “Verifica-se nesta obra uma significativa abertura de foco dos estudos sobre o pensamento brasileiro, não apenas em termos geracionais como também na variedade de visões teóricas e abordagens pronunciadamente ideológicas”, afirma Mota. “Este livro, portanto, vem ampliar de modo crítico e significativo os horizontes e o debate histórico-historiográfico nesta quadra difícil de nossa história, tão marcada por ambiguidades, desacertos e, já agora, também por profundas revisões para uma retomada rumo a um futuro melhor.”
SUMÁRIO
Octávio Brandão, João Quartim de Moraes | Heitor Ferreira Lima, Marcos Del Roio | Astrojildo Pereira, Antonio Carlos Mazzeo | Leôncio Basbaum, Angélica Lovatto | Nelson Werneck Sodré, Paulo Ribeiro da Cunha | Ignácio Rangel, Ricardo Bielschowsky | Rui Facó, Milton Pinheiro | Everardo Dias, Marcelo Ridenti | Sérgio Buarque de Holanda, Thiago Lima Nicodemo | Gilberto Freyre, Mario Helio Gomes de Lima | Câmara Cascudo, Marcos Silva | José Honório Rodrigues, Paulo Alves Junior | Caio Prado Júnior, Luiz Bernardo Pericás e Maria Célia Wider | Edgard Carone, Marisa Midori Deaecto e Lincoln Secco | Florestan Fernandes, Haroldo Ceravolo Sereza | Ruy Mauro Marini, Guillermo Almeyra | Jacob Gorender, Mário Maestri | Antonio Candido, Flávio Aguiar | Celso Furtado, Carlos Mallorquín | Rômulo Almeida, Alexandre de Freitas Barbosa | Darcy Ribeiro, Agnaldo dos Santos e Isa Grinspum Ferraz | Mário Pedrosa, Everaldo de Oliveira Andrade | Maurício Tragtenberg, Paulo Douglas Barsotti | Paulo Freire, Ângela Antunes | Milton Santos, Fabio Betioli Contel
Orelha: Carlos Guilherme Mota
FONTE: Boitempo

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