sábado, 7 de setembro de 2013

Um filme sobre O capital de Karl Marx em tempos de crise: ou a volta dos que não foram

Por Demian Melo

Filmar O capital de Marx foi um dos projetos não realizados pelo grande cineasta russo Sergei Eisenstein (OutubroEncouraçado Potemkin e A Mãe). Logo após concluir o seuOutubro, em 1927, Eisenstein rumou para a França onde se encontrou com o escritor James Joyce, encantado com seu livroUlisses. Do diálogo com Joyce e diante do desafio de transformar seu livro em filme, o diretor russo teria chegado a outra conclusão: “A decisão está tomada: irei filmar O capital, segundo o roteiro de Karl Marx – esta é a única saída formal possível.”

Em meio à crise internacional do capitalismo iniciada em 2008, o interesse pela obra do mais importante critico deste sistema inspirou o reexame destas “velharias ideológicas”, como se referiu parte da mídia corporativa e seus agentes quando ironizaram esse novo interesse em Karl Marx. Numa reportagem da BBC, se anotou:

A atual crise financeira global parece estar aumentando a busca por obras de um dos mais conhecidos e ferozes críticos do capitalismo: o pai do comunismo, Karl Marx. A editora alemã Karl Dietz, dedicada a livros de pensamento de esquerda disse já ter vendido, neste ano, 1,5 mil cópias da obra mais famosa de Marx, O Capital,escrita em 1867. Só no mês passado foram vendidas 200 cópias, o mesmo número que, no passado, costumava ser vendido em um ano.1
Nesse contexto, o diretor alemão Alexander Kluge decidiu retomar o antigo projeto de Eisenstein em 2008, realizando o filme Notícias de Antiguidades Ideológicas: Marx, Eisenstein, O capital, lançado no Brasil em 2011. São oito horas de filme e mais uma entrevista com o legendário cineasta francês Jean-Luc Godard, que claramente inspira a montagem da obra. “Teria conseguido Kluge filmar o magnum opus de Marx?” Essa não parece ser a questão mais importante, mas sim o fato de que o mesmo esteja contribuindo para a crítica deste sistema de irracionalidades.

Lançado originalmente em 1867, Marx definiu o seu livro I como “um todo artístico”, o que certamente está implícito na importância da forma de exposição do raciocínio do livro: do início pela mercadoria, forma da produção social que torna-se o nexo-fetiche do social, ao último capítulo, com a lei geral da acumulação capitalista, suas tendências históricas, as condições históricas do surgimento deste modo de produção e a forma como o capital coloniza o mundo. No livro III, publicado postumamente por Engels em 1894, Marx aborda a dinâmica das crises como um momento do modo de ser do capital onde se “testemunha[m] a limitação e o caráter tão-somente histórico e transitório do modo de produção capitalista”.2

Neste ano de 2013, o lançamento do livro I d’O capital pela editora Boitempo, no interior de uma coleção que tem primado pela qualidade nas traduções, e que tem buscado verter do original alemão – presente na MEGA (Marx-Engels-Gesamtausgabe) – disponibiliza para o público brasileiro algo bem superior que as duas edições anteriores.3 Antes dele, em 2011 a mesma editora contribuiu com uma enorme lacuna publicando os manuscritos preparatórios de 1857-1858 conhecidos como Grundrisse, texto onde pela primeira vez aparecem os conceitos chave da crítica marxiana à Economia Política, o mais-valor.4 Além da Boitempo, o renovado interesse na obra de Marx no Brasil também pode ser visto na publicação de outro manuscrito inédito dos anos 1861-18635 e de uma clássica biografia escrita por Franz Mehring.6 Além do Brasil, no próprio âmbito da MEGA, acaba de ser editado o livro III de O capital a partir dos manuscritos deixados por Marx, outrora editados por Engels que o publicou pela primeira vez em 1894.7

Para Marx esse modo de produção é a produção incessante de mais-riqueza (mais-valor) e a produção incessante da própria miséria. Vejamos o que tem ocorrido desde o início da recente crise, onde cerca de trinta trilhões de dólares foram transferidos das receitas públicas dos Estados para salvar empresas em dificuldades, enquanto os cidadãos comuns perderam e estão perdendo seus empregos e suas casas. Já no início da crise esse cenário assim foi se definindo, como pode ser observado segundo um relatório do FMI de maio de 2009, onde constata-se que o volume de recursos transferidos dos Estados para capitalistas em dificuldade já chegava a nove trilhões de dólares.8 Enquanto isso, por contraste, a OIT anunciou no início de 2010 que o volume de novos desempregados do capitalismo global deveria subir em cinqüenta milhões, isso num universo de mais de 200 milhões de desempregados.9 Neste ano de 2013, a mesma OIT afirma que até 2015 o número pode chegar a 208 milhões de pessoas sem emprego no mundo, sendo importante lembrar que nunca devem ser desconsiderados as evidentes sub-notificações comuns encontradas a esse tipo de dado, que não podem considerar aqueles que desistiram de procurar emprego, ou aqueles que estão em empregos precários. Em suma, a tragédia social criada pela lógica incontrolável do capital é bem maior que esse número.

Recentemente, o Government Accountability Office (um instituto do congresso dos EUA) descobriu que o Tesouro norte-americano entregou 16 trilhões de dólares em empréstimos secretos às grandes empresas, tanto dos EUA quanto também estrangeiras.10 A intenção dos Estados era injetar capacidade de investimento nas empresas, que voltariam a produzir, gerando demanda, produzindo novos empregos etc. Em suma, a idéia era ativar a ação anti-cíclica do Estado para a retomada do crescimento econômico. Só que isto não só não funcionou, como esta forma de tentar resolver a crise do capitalismo acabou por gerar a sua atual fase. Afinal, qual seria o resultado desta farra senão o aumento exponencial das já gigantescas dívidas públicas?

O que se tem agora é uma imensa montanha de dívidas públicas impagáveis, cujos dados são alarmantes. A dívida federal do governo dos EUA passou de 9,2 trilhões de dólares em 2007 para 14,5 trilhões em 2011, o que corresponde a 100% do PIB. A dívida alcança nos países europeus 63% do PIB da Espanha, 76,5% na Inglaterra, 81,7% na França, 93% em Portugal, 114% da Irlanda, 120% da Itália e 152% do Grécia. Além disso, vemos agora ações no sentido de aumentar, ainda mais, a capacidade de endividamento dos Estados, como nos EUA. Isso tudo formou uma imensa bolha, ou como Marx chamou no livro III do Capital, uma montanha de “capital fictício”.

Por outro lado, em relação ao “cidadão comum” da classe trabalhadora, os Estados tem sido bem menos caridosos do que para com os capitalistas. Logo no início do filme Capitalism, love story de Michael Moore (2009) aparece uma das faces mais dramáticas desta atual crise: o despejo das famílias de suas casas no país mais rico do mundo. Além do mais, uma grita generalizada da mídia corporativa em razão de ajustes fiscais pauta outro aspecto do programa de enfrentamento da crise por parte dos governos, que agora corta gastos sociais e, em alguns casos mais dramáticos como a Grécia, anuncia cortes de salários, cortes de direitos sociais (como 13º salário, férias, aposentadoria etc.), além da privatização do restante do patrimônio público. Ou seja, mais uma vez a estratégia do capital para superar as suas crises passa pela destruição do que resta de “Estado de bem estar social” na Europa, dos serviços públicos e dos direitos sociais duramente conquistados por mais de um século de movimento operário. Em suma, é o neoliberalismo puro que está em prática, e não a “volta do Estado” e do “keynesianismo” como alguns desavisados tentaram caracterizar a ação dos Estados em 2008-2009.

Além dessa dinâmica da crise, o aumento exponencial do protesto social, de greves gerais européias às insurreições de caráter diverso que tomaram conta do Norte da África desde a queda de Mubarak em 2011, outro tema caro a obra de Marx e do marxismo, a Revolução, voltou à agenda. Protestos e insurgências tem tomado um mundo onde cada vez mais as instituições ligadas à reprodução deste modo de produção encontram-se em xeque, pelo no plano moral. Um mundo onde, mais do que nunca, a retórica liberal que outrora anunciou pela milésima vez o “fim da História”, não tem sido um exemplo no que diz respeito ao respeito aos direitos civis, políticos e muito menos sociais, que são seu objeto primordial de desmonte. Obama vigia o mundo: essa é a cara do “mundo livre” que a vinte anos havia enterrado a URSS e anunciava o futuro. É feio, muito feio esse mundo cada vez mais parecido com as distopias que nos anos 1980 invadiram os filmes de ficção científica onde era mais fácil imaginar um futuro em que a Humanidade podia desaparecer da face da terra (seja em razão de uma hecatombe nuclear, ou da crise ambiental) do que o fim do capitalismo, como pontuaram àquela altura Fredric Jameson e Slavoj Žižek.11

A presente crise é bem mais que um pretexto para filmar O capital (embora não tenhamos dúvidas em saudar essa iniciativa), e parece estar sendo muito mais do que a reiteração da lógica que preside esta forma de sociabilidade. Ainda que continue a ser. Todavia, e isso é talvez sintomático, é que foi enterrado de vez foi o argumento de que “não precisamos mais ler Marx”.


1 “Crise aumenta a procura por obras de Karl Marx na Alemanha.” BBC Brasil, 20 de outubro de 2008.
2 MARX, Karl. O capital: critica da economia política. Livro III. São Paulo: Nova Cultural, 1984, p.184.
3 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013. Muito problemática é a tradução de Reginaldo Santana, publicada pela Civilização Brasileira a partir de 1967, enquanto que a editada pela Abril Cultural, traduzida por Flávio Kothe (com supervisão de Paul Singer), embora muito mais fiel ao original alemão, encontrava-se fora do mercado a mais de 20 anos, desde que parou de ser editada na coleção “Os Economistas”.
4 MARX, Karl. Grundrisse. Manuscritos de 1857-1858. São Paulo: Boitempo, 2011.
5 MARX, Karl. Para a crítica da economia política. Manuscritos de 1861-1863. Cadernos I a IV. Terceiro Capítulo – O capital em geral. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
6 MEHRING, Franz. Karl Marx – A vida de sua vida. São Paulo: Sundermann, 2013.
7 GRESPAN, Jorge. “Marx antes do marxismo.” Caderno Prosa & Verso, O Globo, 13 de julho de 2013. Disponível em http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2013/07/13/marx-antes-do-marxismo-503356.asp
8 SAMPAIO JR, Plínio de Arruda (org.). O capitalismo em crise. A natureza e dinâmica da crise econômica mundial. Apresentação do organizador. São Paulo: Sundermann, 2009, p.16.
9 “Desemprego global atinge recorde de 212 mi de pessoas, diz OIT.” Folha Online, 26 de janeiro de 2009. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u684773.shtml
10 United States Government Accountability Office. Federal Reserve System. Opportunities Exist to Strengthen Policies and Processes for Managing Emergency Assistance. July 2011, p.131. Disponível em http://www.gao.gov/new.items/d11696.pdf
11 JAMESON, Fredric. “As antinomias da pós-modernidade.” In. A virada cultural: reflexões sobre o pós-moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p.91. ŽIŽEK, Slavoj. “Introdução. O espectro da ideologia.” In. ŽIŽEK, Slavoj (org,). O mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p.7.


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